quinta-feira, julho 28, 2005

Concertação e responsabilidade

Entre a contestação social ao Governo, a sucessão de candidatos a candidatos a Presidente da República e um inusitado artigo de um ministro a pôr em causa o programa do executivo de que fazia parte e que os portugueses haviam sufragado há meia dúzia de meses, passou despercebida a assinatura de um acordo de concertação tripartido. Contudo, quando o nosso modelo económico enfrenta importantes bloqueios, tal facto é merecedor de atenção. E é-o, não apenas por ser relevante em si, mas, essencialmente, pelo seu potencial demonstrativo.

Vale a pena recuar um pouco no tempo. Durante a campanha eleitoral, José Sócrates, contra os conservadorismos de parte da esquerda e contra o radicalismo liberalizador de parte da direita, anunciou reiteradamente a sua intenção de não revogar o “código do trabalho”, procedendo antes à revisão de algumas das suas dimensões. À cabeça, importava resolver com urgência o problema da caducidade das convenções colectivas, criando as condições para ultrapassar a actual situação de paralisia. Foi este o objectivo do acordo, recentemente assinado entre Governo e Parceiros Sociais, se bem que com a importante excepção da CGTP.

O acordo assume, claramente, que a caducidade das convenções colectivas de trabalho é indesejável, pelo que devem ser criadas todas as condições que evitem a sua ocorrência. Apenas quando tal não acontece é que cabe à lei intervir, salvaguardando a especificidade das relações laborais. Mas não se pense que este objectivo assenta em qualquer tipo de paternalismo negocial da parte do Estado.

Pelo contrário, é reconhecido que a decisão alcançada autonomamente pelas partes é preferível a qualquer outra solução; que a conciliação é melhor do que a mediação e esta preferível à arbitragem. No fundo, trata-se de responsabilizar sindicatos e patrões pela busca de soluções negociadas, sempre que possível libertas da tutela da arbitragem obrigatória, ficando esta circunscrita a situações de excepção.

A solução encontrada para o problema da caducidade das convenções colectivas representa um progresso em relação à situação actual. Isto porque protege face à má conduta negocial de uma das partes, diminui a discricionariedade da intervenção governamental e consagra um núcleo de aspectos fundamentais (por ex., remuneração e tempo de trabalho) cujos efeitos se mantém, mesmo que uma convenção caduque. Mas, a principal virtude do acordo alcançado, prende-se com o reforço dos mecanismos de concertação e de diálogo social.

Ter-se avançado primeiro para a revisão da contratação colectiva significa reconhecer o papel da negociação como instrumento preferencial de regulação no mundo do trabalho. Pelo caminho, num período de acentuada contestação social e de falta de horizontes modernizadores para o nosso tecido económico, valoriza-se o entendimento entre trabalhadores e patrões, como parte da saída para a situação em que nos encontramos. É que uma coisa é clara: se é difícil vislumbrar a saída para os bloqueios que o País enfrenta, sem diálogo social institucionalizado tal objectivo torna-se impossível de alcançar. Ou as partes se entendem ou podemos estar condenados ao declínio progressivo.

Aliás, numa altura em que os exemplos estrangeiros são frequentemente mobilizados - muitas das vezes sem atender às especificidades da realidade portuguesa -, convém recordar que, um pouco por toda a Europa, as trajectórias de ajustamento seguidas com sucesso caracterizaram-se invariavelmente por uma revalorização do diálogo social.

Sendo certo que o acordo assinado tem uma incidência restrita, e que só foi possível porque foi adiada a discussão de um conjunto de matérias relevantes (designadamente a norma sobre o “tratamento mais favorável”), tem, ainda assim, a virtude de, num momento particularmente complexo para Portugal, valorizar os mecanismos de concertação social. O próximo passo é fazer com que a disponibilidade negocial contamine o conjunto das relações laborais.

No entanto, muito por força da fraca cultura negocial das partes - sempre mais veementes na defesa intransigente da sua posição de partida do que na busca de soluções assentes na cedência - não será fácil fazer avançar o diálogo social em Portugal. Desse ponto de vista, a relutância sistemática da CGTP em participar nos acordos, designadamente se considerarmos a sua representatividade, levanta obstáculos importantes.

O passo dado a semana passada, ainda que limitado e restrito, abre boas perspectivas. O essencial é que, após o Verão, Governo, empregadores e sindicatos saibam fazer avançar outras dimensões do processo negocial. É em alturas como as que vivemos que a institucionalização da concertação se torna mais necessária. Mas esta é mais uma daquelas áreas em que não basta a boa-vontade do Estado. É preciso que todos saibam fazer cedências e ultrapassar a posição imobilista de que partem. A concretização do discurso abstracto sobre a responsabilidade colectiva passa por aí.
publicado no Diário Económico.

quarta-feira, julho 27, 2005

De novo, o tempo da coragem

Até este fim de semana, José Sócrates insistiu em secundarizar as eleições presidenciais. De acordo com o Primeiro-Ministro, o assunto não estava na agenda política imediata. Um erro de avaliação. Não apenas a sucessão de acontecimentos da última semana se encarregou de demonstrar que, de facto, não era assim, como a próxima eleição presidencial é decisiva para o futuro do actual Governo.
O que se passou desde Março passado é revelador do que se passará daqui para a frente. Quando tomou posse, o Governo beneficiou de um “estado de graça” que não encontra paralelo nos tempos mais recentes. As primeiras medidas de austeridade, bem como aquelas que visavam pôr fim a privilégios relativos, foram aplaudidas com uma inusitada unanimidade. Contudo, mal se passou dos discursos à prática e quando os portugueses sentiram a austeridade na pele, o “estado de graça” terminou. Ainda assim, a legitimidade do Governo mantém-se em alta. Hoje, José Sócrates tem todas as condições objectivas e subjectivas para governar. Resta saber se será assim depois do Verão.
É que o resultado das eleições autárquicas não deixará de ter repercussões no executivo. E, desse ponto de vista, o que se vislumbra não é positivo. Ainda que seja verdade que o Governo vale bem mais do que o conjunto dos candidatos autárquicos do Partido Socialista, um mau resultado em Outubro abalará a capacidade do executivo para prosseguir, sem desvios, o seu caminho. Se à contestação social que se vive juntarmos uma derrota eleitoral autárquica, o cenário da governação pode começar a mudar.
Neste contexto, as Presidenciais serão um marco decisivo. Das duas uma: ou o bloco social e político que apoia o Governo sofre uma derrota e o executivo vê diminuída a sua capacidade política – e, em última análise, pode não cumprir o mandato até ao fim – ou, pelo contrário, reconquista legitimidade para continuar as necessárias políticas de austeridade. Os dois candidatos que se vislumbram representam, pelos seus perfis, claramente, os dois lados desta moeda. Cavaco Silva será um factor de instabilidade. Mário Soares, pelo contrário, uma garantia de que o Governo poderá continuar a pôr em prática o seu programa. Como diria Pacheco Pereira, “só não vê quem não quer ver”.
Não por acaso, mal foi conhecida a disponibilidade de Mário Soares em avançar, alguns dos apoiantes de Cavaco Silva vieram sublinhar que o “professor” seria um garante de estabilidade. A preocupação é justificada. Quando escolherem o Presidente, os portugueses quererão alguém capaz de assegurar estabilidade governativa, ao mesmo tempo que mantém autonomia face ao Governo. Ora Cavaco tem autonomia, mas tem também um perfil interventivo e executivo. Consequentemente, se eleito, tenderá a ceder à tentação de governar pelo Governo, isto enquanto a oposição de direita procurará guarida debaixo da capa protectora de Belém. Numa altura em que a economia, as finanças e a sociedade portuguesa enfrentam sérias dificuldades, a última coisa que o País precisava era que, a este contexto, se somasse instabilidade política de facto ou em potência. Com Cavaco Silva este risco seria real – por mais que se tente afirmar o contrário.
Mário Soares, pelo contrário, garantirá solidariedade com o essencial da acção governativa, enquanto, pelo seu peso político próprio, terá também autonomia perante o Governo. Se os portugueses querem que o Governo tenha condições para governar, e pretendem em Belém alguém que, zelando por essas condições, não deixe, contudo, de ter uma voz independente, têm em Soares o perfil indicado.
Claro que Soares não é um jovem e essa é, porventura, a maior dificuldade da sua candidatura. Mas uma coisa é a idade no B.I., outra, completamente diferente, é a energia e a vontade de ir à luta. Se pensarmos nestes termos, Soares vence Cavaco em toda a linha. Soares é um combatente político e os combatentes combatem, não se perdem em medos, hesitações ou jogos tácticos. Até porque, de uma coisa não tenhamos dúvidas, seria muito mais confortável para Mário Soares não correr o risco de disputar eleições, mantendo-se no sossego da sua própria história.
Por tudo isto, se, até aqui, a gestão de silêncios era uma boa táctica para Cavaco, a partir do momento que há uma candidatura no terreno deixa de ser assim – ainda para mais perante o potencial mobilizador da de Soares. Cada semana que passa sem que Cavaco venha a jogo, sai reforçada a ideia de que está a repetir os tabus que foram a sua imagem de marca. Cada semana que passa, Cavaco reforça a ideia de estar hesitante e temerário e que se aceitar ser candidato o fará para satisfazer as expectativas entretanto criadas entre os seus apoiantes. Da última vez que tal aconteceu, a consequência foi uma derrota nas urnas.
Mas há uma outra dimensão fundamental em Mário Soares. A coragem é o seu traço de carácter distintivo, como aliás revela a disponibilidade para se candidatar. E coragem é algo determinante para contrariar a canalhice institucionalizada que o país tem vivido no último par de anos e que tem servido, entre outras coisas, para minar a credibilidade do Estado de Direito. Com Soares teremos uma garantia: não viverá atemorizado com as consequências das suas próprias decisões. E, hoje como no passado, os tempos estão para aqueles que têm coragem.
publicado em A Capital

quarta-feira, julho 20, 2005

Passar mais tempo na praia

A responsabilização dos trabalhadores portugueses pelo mau comportamento da nossa economia é recorrente. Não passa uma semana sem que alguém lhes aponte o dedo. Não é novidade. Desta feita, em declarações reproduzidas pelo Expresso, Fernando Ulrich, presidente do Banco Português de Investimento (BPI), enquanto partilhava a justificada preocupação com o facto da economia portuguesa estar há uma série de anos com um crescimento medíocre, sublinhava que «os portugueses não estão mobilizados ou preocupados com a competitividade». Entre outras razões porque, em lugar de trabalharem para colocar a economia a crescer, quererem antes «passar mais tempo na praia».
Se é verdade que parte importante dos nossos males tem a ver com a fraca produtividade da nossa força de trabalho, resta saber se tal ocorre porque os portugueses passam muito tempo na praia. Temos um problema de produtividade, mas será que devemos procurar nas idas para a praia, na relação com o lazer, as suas causas? Ou, pelo contrário, a economia portuguesa padece de males que se manifestam no facto de só tardiamente os portugueses terem começado a ir à praia?
A ideia da praia como lugar de “peregrinação” não é nem muito antiga, nem muito recente. Entre nós ter-se-á popularizado nos últimos tempos (sobre a quase ausência de cultura de praia em Portugal, no início do século XX, veja-se “As Praias de Portugal”, de Ramalho Ortigão), mas, certamente não por acaso, foi no século XVIII, no Reino Unido, que terá surgido. Primeiro como alternativa às estâncias termais e, só depois, como espaço de lazer. Muito por força do movimento romântico, a praia, de local de trabalho duro para uns e de espaço termal para outros, transformou-se em lugar idílico, onde nos espraiamos. No início do século XX, o Reino Unido tinha estâncias balneares um pouco por todo o lado e uma cultura de praia pronta a ser exportada. Paradoxalmente, um país com um clima pouco propício era aquele onde a praia mais se havia implementado. Paradoxalmente, não. O berço do capitalismo era também o lugar onde os espaços dedicados ao hedonismo mais se desenvolviam.
A popularização da praia caminha lado a lado com o desenvolvimento do capitalismo, pelo que se em Portugal só nos últimos trinta anos se massificaram as idas à praia, tal indicia, antes de mais, a fragilidade genética do nosso modelo económico. O problema não está, por isso, nos portugueses passarem a vida a querer ir à praia. O problema está, antes de mais, no facto de o padrão de especialização da economia portuguesa ser de tal modo atrasado que não foi capaz de permitir atempadamente o desenvolvimento de uma cultura de praia. Na verdade, a praia está associada às transformações sociais típicas do capitalismo e, nesse aspecto, Portugal tem um grande problema.
Contudo, a praia tem também a particularidade de se distinguir dos restantes locais de lazer. Por se tratar do espaço por excelência das aventuras juvenis é naturalmente popular na idade adulta, quando tudo fazemos para regressar ao tempo em que “éramos crianças”. Na praia, os constrangimentos são bem menores do que nos outros espaços públicos: por exemplo, pode-se vestir o que se quer (ou mesmo nada). Para mais, entretanto, os desportos radicais aí praticados, designadamente o surf, tornaram-se muito populares, o que fez com que a associação entre praia e escape se tivesse intensificado - basta pensar na quantidade de publicidade baseada nesta ideia.
Mas, acima de tudo, a praia distingue-se dos outros espaços por funcionar como contraponto ao resto da vida. Num curioso ensaio publicado há mais de um ano na revista Prospect, Charles Leadbeater chamava a atenção precisamente para os aspectos que fazem das praias espaços públicos modelares, onde a auto-regulação cívica impera.
É que, na praia, nem as regras dominantes na sociedade, nem os mecanismos tradicionais de autoridade se aplicam. As praias são locais ordeiros, mas, contrariamente ao habitual, isso acontece com poucos mecanismos de controlo impostos. Não existe ninguém encarregado da organização do espaço e esta ocorre espontaneamente – não há lugares previamente definidos para se ficar e, em última análise, cada um estende a toalha onde quer, respeitando o vizinho. A ordem emerge de forma relativamente espontânea e a tolerância e a boa disposição são predominantes. Salvo excepções, não há conflitos, nem sobre o local a ocupar, nem sobre o ruído que cada um faz. Tal acontece não como a concretização de qualquer sonho de dirigismo estatal, nem em resultado do funcionamento desregulado do mercado, mas, sim, como resultado da auto-organização e da vontade livre.
Para além do mais, nas praias, as pessoas tendem a não se comportar normalmente – por exemplo, lêem muito mais do que o habitual, juntando prazer e aprendizagem, de um modo que não encontra paralelo nas suas vidas profissionais. Claro que a visão idílica da praia tem um lado sombrio e, por isso, esta tem sido, frequentemente, cenário para algumas das mais populares distopias: “Lord of the Flies” e, mais recentemente, “A Praia” de Alex Garland.
Por tudo isto, o facto de os portugueses passarem muito tempo na praia não é um problema. Pelo contrário, a cultura da praia deveria contaminar mais o resto da nossa vida e em particular o nosso modelo económico. A praia é provavelmente o lugar onde mais perto estivemos de concretizar um modelo de sociedade auto-organizado, baseado no civismo e sem que seja necessária a mão-pesada do Estado ou, em alternativa, a competição desregulada do mercado. Na praia ganha corpo a terceira-via. Uma terceira via que naturalmente causa desconforto aos empresários portugueses.
publicado em A Capital

quinta-feira, julho 14, 2005

A dívida de Cavaco

Numa altura em que o país vê bloqueadas as suas opções para o futuro, há sempre a solução fácil de olhar para um passado mitificado e de pretenso rigor. É neste quadro que, face à ausência de estratégia da esquerda, a candidatura presidencial de Cavaco tem sido lançada, através do reforço do mito de “grande primeiro-ministro”. A verdade é que enquanto Cavaco vai gerindo com economia as suas aparições, continuam por explicar muitos dos aspectos que marcaram negativamente a sua governação.
Nunca é demais recordar os traços principais dos executivos de Cavaco Silva, que ajudam a compreender a sua popularidade nos dias de hoje. No essencial, Cavaco limitou-se a aplicar uma fórmula conhecida. Tendo herdado algum desafogo financeiro, consequência das medidas levadas a cabo durante os governos do Bloco Central e fruto do auxílio dos Fundos Comunitários, os seus executivos aumentaram as regalias dos funcionários públicos e a dimensão do Estado. Fizeram-no sem cuidar de modo sistemático da sua modernização.
O resultado, hoje, é um Estado que é um “monstro”, não tanto pelo que gasta, mas porque a forma como o faz coloca entraves corporativos à sua adaptação a novos contextos. Se a isto somarmos a imagem, tão popular quanto perigosa, de que Cavaco não era um político e se encontrava fora do sistema, temos parte importante da popularidade póstuma dos seus governos. Os portugueses, naturalmente, guardam hoje a memória das benesses de então, esquecendo que muitos dos problemas que hoje enfrentamos são fruto de opções passadas.
Para além do mais, numa altura em se volta a falar insistentemente das dificuldades da segurança social, há uma dimensão da governação Cavaco Silva que não só é particularmente gravosa, como nunca foi devidamente explicada aos portugueses.
Como é sabido, há uma componente importante de despesas sociais que são pagas pelo Orçamento de Estado – entre outras, aquelas que têm a ver com o regime não contributivo. É parte do esforço de coesão que colectivamente fazemos para compensar aqueles que, por diversas razões (por exemplo na reforma), não se encontram protegidos por pensões dentro da lógica de seguro social. O que prevêem as sucessivas leis de Base da Segurança Social é simples: as políticas de solidariedade são pagas pelo Orçamento de Estado e aquilo que são políticas baseadas nas carreiras contributivas dos trabalhadores pagas pelo Orçamento da Segurança Social – que em última análise pertence a quem para ele fez descontos.
Isto é o que a lei prevê. Outra coisa é o que foi feito nos governos de Cavaco Silva. De 1985 a 1995, mesmo em períodos de crescimento económico, nunca foram feitas as transferências devidas do Orçamento de Estado para o Orçamento da Segurança Social. Com isto, não só se ajudou a criar um número artificial para o défice das contas públicas (que mesmo assim foi invariavelmente alto), como se delapidou os recursos da segurança social, que tiveram de financiar o que não lhes competia.
Este dado deve ser recordado. O Livro Branco da Segurança Social apurou que o montante da dívida deixada pelos governos de Cavaco Silva à segurança social ascendeu a 1.206,4 milhões de contos, em valores nominais, sem juros. Hoje, não fora a existência desta dívida, a sustentabilidade do sistema seria maior e a sua componente de capitalização estaria muito mais desenvolvida, garantindo uma almofada financeira importante, particularmente em períodos recessivos.
A partir de 1995, as responsabilidade do Estado passaram a ser cumpridas e as transferências devidas, realizadas. Contudo, é impossível, posteriormente, saldar a dívida preexistente. Até porque, em última análise, tal significaria apenas transferir para sede de Orçamento de Estado o que era um problema da segurança social. O que, aliás, só comprova que Cavaco criou um problema para o qual, hoje, é difícil encontrar solução. Que continue a viver com a imagem do rigor não deixa, por isso, de ser surpreendente.
António Guterres e Durão Barroso, por motivos diversos, abandonaram a meio as funções para as quais tinham sido eleitos pelos portugueses. Cavaco, quando se foi embora, deixou uma dívida, que nunca explicou, para com todos aqueles que fazem descontos dos seus ordenados para a segurança social. Agora, quando tanto fala sobre rigor orçamental e consolidação das contas públicas, talvez fosse boa oportunidade para justificar perante os portugueses as suas manigâncias orçamentais, que, entre outras coisas, ajudaram a delapidar a já de si frágil segurança social portuguesa.
publicado no Diário Económico

quarta-feira, julho 13, 2005

A guerra é a guerra

There is a war between the ones who say there is a war
and the ones who say there isn't.

Leonard Coen, “there is a war” (1974)

Os atentados de Londres demonstraram, se tal fosse ainda necessário, que o mundo está em guerra. Uma guerra com contornos diferentes das do passado, mas onde há dois campos bem delimitados, correspondentes a duas ideias de sociedade. De um lado, sociedades com defeitos, mas baseadas no predomínio da lei. Do outro, a barbárie e o livre arbítrio como regime. Provavelmente a guerra até já existia antes, mas com o ataque às Twin Towers mostrou a sua face. E fê-lo com um objectivo claro: instaurar o medo nas sociedades das democracias ocidentais e obrigá-las a jogar com regras de jogo que não são, por natureza, as suas. Se a Al-Qaeda tem um objectivo é, sem dúvida, o de contaminar o nosso modo de vida com os seus princípios. Cabe-nos a nós impedir que isso aconteça.
É por isso que, desde Nova Iorque, a parte do mundo que se vê atacada pelo terrorismo – seja em Kuta na ilha de Bali ou no metro em Londres – tem de saber resistir à tentação de jogar o jogo dos que fazem do terror a única arma. Para tal é preciso que, em nenhum momento, se deixe de utilizar a razão. Infelizmente, desde que a barbárie passou a manifestar-se de forma global, nem sempre a resposta dada foi a mais inteligente.
É que jogar o jogo dos terroristas é, a um tempo, sedutor e fácil. Sedutor porque permite ao poder político dar um sinal de força, imediato e visível, mas que corre o risco de ser inconsequente ou até contraproducente. Trata-se, no fundo, de uma espécie de reflexo condicionado em que o país atacado responde atacando. Esta opção esquece as raízes globais da nova guerra e a sua desnacionalização. Do mesmo modo que os ataques a Nova Iorque, Bali, Madrid ou Londres não foram apenas ataques aos lugares geográficos onde ocorreram, também a resposta a dar não se pode circunscrever a espaços físicos delimitados. A resposta ao terrorismo não pode ser levada a cabo por um único Estado, por mais poderoso que este seja. Mas jogar o jogo dos terroristas pode também passar por seguir o caminho fácil. Um caminho de diminuição das liberdades em que se baseiam as nossas sociedades ou de alteração dos nossos estilos de vida. Fazê-lo seria ceder às pressões da Al-Qaeda.
Desse ponto de vista, os londrinos tiveram um comportamento exemplar. Logo após os atentados, retomaram as suas vidas, utilizando os transportes públicos e mostrando que, mais uma vez na sua história, não estão dispostos a alterar os seus hábitos e que não cederão ao totalitarismo. Aliás, vale a pena, a este propósito, recordar as palavras do Presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone, dirigidas aos terroristas: “mesmo depois dos vossos ataques cobardes, continuarão a ver pessoas de todo o mundo a vir para Londres para concretizarem os seus sonhos”.
Mas se na resposta a dar ao terrorismo, o mundo ocidental tem divergido, há uma outra dimensão em que não podemos, em momento algum, mostrar dissonâncias: na noção de que estamos em guerra e de que não é o facto dos ataques terem ocorrido em Madrid ou Londres que faz com que estejamos livres ou não sejamos vítimas. Os ataques sistemáticos estão aí para recordar que quem está a ser atacado é um modo de vida e um modelo de sociedade.
Não é, certamente, por coincidência que os maiores ataques ocorreram nas cidades mais cosmopolitas. Cidades em que a miscigenação mais avançou e onde a tolerância e a liberdade têm raízes mais sólidas: Nova Iorque, Londres, Madrid ou até Kuta, lugar por excelência do hedonismo e do encontro pacífico entre dois mundos. Este facto, aliás, só demonstra que o que está em causa não é nenhuma espécie de luta de classes, de oprimidos contra as tenebrosas forças do imperialismo ou uma luta pela terra, de nações sem Estado. É uma guerra contra o valor mais precioso das sociedades ocidentais: a liberdade.
Acontece que não temos ao nosso dispor “armas” suficientemente eficazes para enfrentar esta batalha. No fundo, um pouco como com os cataclismos naturais – aos quais não podemos pôr fim –, temos de nos habituar a viver com o terrorismo, ainda que possamos conseguir com relativo sucesso minorar as suas consequências.
E a verdade é que a Al-Qaeda está mais frágil. Apesar da brutalidade dos últimos atentados, depois da invasão do Afeganistão, a organização parece ter hoje uma menor capacidade de coordenação. Mas depois do Iraque, parece ter uma base de recrutamento maior. Talvez essa seja parte da razão para que haja mais ataques, que, contudo, surtem menos efeito do que aqueles que os antecederam. Não é irrelevante que tenha morrido menos gente em Londres que em Madrid e menos gente em Madrid do que em Nova Iorque. De acordo com os padrões dos terroristas, isto só pode ser encarado como um fracasso. Naturalmente que para os nossos padrões, qualquer morte é uma brutalidade em absoluto.
Se há algo que ficou claro das várias experiências totalitárias do século XX é que o mal não pode ser justificado, deve ser combatido. O que não impede que sejam dados passos que, é bom que fique claro, não têm a ver com as causas do terrorismo, mas que ajudarão a retirar justificações aos terroristas. Se mais pretextos fossem necessários, depois de Londres, é altura de se caminhar com vista à paz entre Israel e a Palestina e incentivar a implementação do Estado de direito um pouco por todo o Médio Oriente.
Publicado em A Capital

quarta-feira, julho 06, 2005

O Estado do Governo

Depois do debate de hoje do orçamento rectificativo, amanhã, com o debate do Estado da Nação, o país político parte para umas férias de que está bem necessitado. Naturalmente que quem parte para férias é a política, não o país. A nação continuará com os mesmos problemas e seguirá o seu passo, distante e alienada do que se passa na política. Aliás, é isto que faz com que o debate de amanhã se apelide erradamente de estado da nação. O que se discutirá, na verdade, é o estado do governo. Neste contexto, pouco mais de cem dias após a tomada de posse é já nítida a imagem deste governo. As suas principais virtudes, mas, também, as suas fragilidades.
Porventura o aspecto mais positivo da acção do executivo de José Sócrates tem sido a coragem. A coragem de governar sem cuidar dos ciclos políticos, mas tendo como preocupação primeira o interesse comum. Curiosamente, esta opção tem sido, sistematicamente, alvo de discursos cépticos. Ainda há pouco tempo, o governo era acusado de definir os seus timings tendo em conta o calendário das eleições autárquicas. De acordo com esta crítica, até Outubro, José Sócrates surfaria a onda de popularidade que lhe advinha do resultado das legislativas. Após as autárquicas, então sim, começaria a lançar as políticas difíceis, que poriam fim ao estado de graça. Acontece que não é isto que se tem passado.
Com o discurso de tomada de posse e de modo ininterrupto desde então, José Sócrates tem optado por “pegar o touro de caras”. Sendo que o touro aqui é, no essencial, o conjunto de situações de privilégio relativo que persistiam em Portugal e que coexistiam com profundas desigualdades e com a debilidade generalizada das nossas estruturas sociais.
Obviamente que esta opção traz consigo um sem número de problemas. À cabeça, o facto de, ao confrontar todos os grupos ao mesmo tempo, o governo delapidar progressivamente a sua base de apoio. É que uma coisa é, por exemplo, num dado momento, enfrentar os interesses dos professores, mantendo uma relação privilegiada com o conjunto dos funcionários públicos. Outra, completamente diferente, é enfrentar, simultaneamente, os interesses dos professores, dos médicos, dos enfermeiros, dos polícias e até da própria classe política. Abrir muitas frentes de batalha é uma jogada arriscada.
No entanto, o caminho maximalista seguido pelo governo, sendo de enorme risco, é também aquele que melhores resultados pode trazer. Se estivéssemos a falar de um jogo de poker, poder-se-ia dizer que o governo “encavou” logo de início. Se a jogada correr bem, os adversários ficarão sem argumentos e sem “fichas” para apostar doravante. Se correr mal, a derrota eleitoral é uma inevitabilidade. Convém, contudo, lembrar que governar por governar de nada serve. Se os governos podem ambicionar mudar alguma coisa é, exactamente, quando arriscam e não quando vivem na angústia das consequências imediatas dos seus passos. O governo escolheu arriscar.
Contudo, a jogada de risco acarreta outros problemas. Quando se fala de medidas impopulares, quem aparece a dar a cara é invariavelmente José Sócrates. Em consequência, sobre ele tem recaído o essencial do ónus dessas medidas. Este facto tem servido para revelar alguma fragilidade do executivo. O número acentuado de ministros sem perfil político, que foi inicialmente visto como uma mais valia (nomeadamente por vivermos um contexto de desconfiança generalizada face à classe política), tem-se tornado um problema para a gestão quotidiana da impopularidade. Desse ponto de vista, entre os ministros “não políticos”, a Ministra da Educação tem sido uma excepção positiva.
Mas, 100 dias depois, a principal debilidade deste governo radica no facto de ter contribuído para dar razão àqueles que criticam a política por esta se encontrar dominada pelo “efeito espelho”. Muda o governo e o que antes era criticado pela oposição passa a ser criticado pela nova oposição, que antes era governo. Mudam as posições relativas, mas o discurso mantém-se. A subida dos impostos é disto exemplo. Independentemente, de se saber se era ou não inevitável tomar esta opção, a verdade é que se trata de uma decisão que contraria o que foi afirmado pelo PS, no passado e durante a campanha eleitoral. José Sócrates, com coragem, assumiu essa contradição e justificou-a com os valores inesperados do desequilíbrio das contas públicas. Mas, a verdade é que a ideia de que os políticos dizem uma coisa quando não têm responsabilidades e outra quando têm, tornou-se um pouco mais sólida. Para a democracia, há poucas coisas mais perniciosas.
No deve e haver do estado do governo, o executivo de José Sócrates tem, na altura do seu primeiro estado da nação, uma contabilidade claramente positiva e ainda uma significativa margem de manobra perante os portugueses. Depois do Verão, com as autárquicas e com as presidenciais, tudo pode mudar. Mais uma razão para que o governo aproveite estes tempos para fazer agora o que daqui a uns tempos se tornará mais difícil. Entretanto, se o estado do governo continuar a ser ditado pelo estado da nação e não pelas consequências eleitorais da governação, todos teremos a ganhar.
P.S. as declarações do Dr. João Jardim a propósito dos imigrantes não surpreendem. Afinal, ciclicamente, o Dr. João Jardim vocifera umas imbecilidades. Há contudo, uma novidade. Agora, os ciclos são mais curtos e o espaço entre imbecilidades menor. É sinal de decadência e quer dizer que provavelmente o seu fim político se aproxima.
publicado em A Capital