quinta-feira, abril 28, 2005

O ruído dos boys e dos jobs

Desde que António Guterres o introduziu que o tema “jobs for the boys” não tem largado o espaço público. Muda o governo, a discussão regressa e as posições relativas invertem-se. A oposição, que antes era governo, passa a criticar o governo, que naturalmente antes era oposição, pelas mesmas razões. Não surpreende. O assunto é popular, quer entre políticos quer entre jornalistas. Por isso, ambos o vão alimentando. No entretanto, vai-se contribuindo para a degradação da imagem da administração pública.
É evidente que o problema existe. O poder discricionário do governo para nomear é, em Portugal, excessivo. Ao longo dos anos temos tido provas, muitas delas caricatas, disso mesmo. De primos a sobrinhos, passando por filhos e muitos incompetentes, vimos de tudo. Até porque a prerrogativa de distribuir jobs é particularmente importante para contrariar o declínio da militância partidária. A possibilidade de nomear e de ser nomeado é, hoje, um cimento fundamental dos partidos de poder.
Ainda assim, o principal problema do debate não é nem os jobs nem os boys. O que este debate tem de mais negativo é o facto de impedir que se avance nos factores decisivos para a reforma da administração pública. Enquanto há ruído em torno das nomeações, tudo o resto se torna opaco. Por isso, esta é uma das áreas em que é absolutamente fundamental que haja um acordo entre os diversos partidos e os parceiros sociais. Pôr termo ao debate sobre as nomeações é um primeiro passo para se discutir o que, de facto, importa.
Mas, naturalmente, que não se trata de silenciar o tema. É preciso encontrar uma solução razoável, que tenha presente que nenhuma administração funciona sem um número significativo de nomeações, mas que limite a actual situação de excessiva discricionariedade política, designadamente nos lugares de chefia intermédia.
Convém ter presente que, em Portugal, mesmo sem as limitações legais existentes noutros países, na prática, por exemplo, ao nível de directores-gerais, o recrutamento é, essencialmente, feito no interior da própria administrações pública e os jobs são ocupados por gente com níveis de qualificações elevados. Aliás, Luís Nobre Guedes, numa entrevista recente, revelando uma lucidez incomum entre os responsáveis do PSD e CDS, na análise dos motivos da derrocada da coligação de direita, veio reconhecer que a anterior maioria “nunca entendeu uma coisa muito clara: Portugal não é o país que os consultores fazem ou imaginam. (...) Veja-se o caso da administração pública. Dizia-se que era terrível, mas eu cheguei ao Governo e encontrei pessoas de tanta qualidade como no sector privado. Portanto, quando se diz com algum à vontade que a administração pública é um dos maiores problemas do país ignora a qualidade humana que aí existe.”
Claro que a administração não pode funcionar bem se sobre ela pairar um discurso que permanentemente sublinha a sua incompetência e ineficácia. Pelo que, do mesmo modo que não pode haver sucesso nas políticas públicas sem um Estado moderno, não pode haver uma administração motivada sem um discurso político que a mobilize. Ao utilizar a administração pública como arma de arremesso político e como espaço de utilização de todos os lugares comuns, está-se a prestar um péssimo serviço ao desenvolvimento do país e a obstaculizar a reforma dos serviços públicos.
Para reformar a administração pública não são precisos grandes consultores, nem é necessário inventar a pólvora. Os verdadeiros problemas estão há muito identificados. Ao contrário do que é muitas das vezes afirmado, não há Estado a mais. Há Estado a mais nuns sectores e a menos noutros. Não há funcionários públicos a mais. Há funcionários a mais numas áreas e a menos noutras. Temos um Estado excessivamente centralista e uma administração com problemas de qualificação, produtividade e avaliação. Mas nenhum destes problemas se resolve com a campanha negativa sobre a administração pública.
O debate sobre as nomeações de dirigentes é um obstáculo que tem de ser ultrapassado. Um pacto sobre esta questão é decisivo para que se possa começar a enfrentar os problemas que, de facto, existem. Só pondo fim ao ruído em torno das nomeações se pode estabilizar o quadro organizativo; modernizar os instrumentos de gestão; implementar uma cultura de avaliação; desburocratizar; flexibilizar procedimentos e alterar o vínculo laboral dominante. Tudo questões bem mais importantes que os jobs e os respectivos boys.

publicado no Diário Económico

quarta-feira, abril 27, 2005

“Portugal não é Chicago”

O transformismo é a característica mais saliente da história recente do CDS. Tudo terá começado com a eleição de Manuel Monteiro, quando foram abandonados o centrismo e a democracia-cristã. No entretanto, Paulo Portas abandonou o seu papel de criador para assumir o de protagonista quase único. Depois, é o que se sabe. Chegou o “Paulinho das Feiras”, e com ele a aposta populista em nichos de mercado eleitoral: a lavoura, os ex-combatentes, os pensionistas. Sempre explorando o ressentimento e com uma estratégia baseada nos mais perversos mecanismos de inveja social – de que foi exemplo a tentativa de colocar pensionistas pobres contra beneficiários do rendimento mínimo, naturalmente pobres. Os resultados eleitorais foram dando sucessivos novos fôlegos, mesmo quando tal aparentava ser impossível. Europeias, autárquicas, legislativas, o candidato era sempre o mesmo e, na recta final, Paulo Portas superava as expectativas.
Chegaram as legislativas de 2002 e duas coisas pareciam claras: os eleitores não haviam perdoado a Guterres, o PS estava eleitoralmente ferido e Durão Barroso entusiasmava nada ou muito pouco. O resultado foi uma maioria relativa que deixou o PSD a necessitar de se coligar com o seu arqui-inimigo, o PP de Paulo Portas. Era o fim do “Paulinho das feiras” e o nascimento do homem de Estado, feito Ministro da Defesa e o regresso do discurso dos valores da democracia-cristã. Pelo meio, enquanto Durão Barroso se mostrava obcecado pelo “discurso da tanga”, o Ministro Paulo Portas avançava no combate cultural. Controlando áreas chave para a definição ideológica do governo (por exemplo, a segurança social e o trabalho), marcou a matriz política da coligação. O apogeu do processo terá sido a homenagem de Estado a Maggiolo Gouveia. Em Junho de 2004, as eleições europeias seriam disputadas debaixo deste clima: a coligação estava a ser empurrada para a direita devido ao peso excessivo do CDS-PP na governação. O que se passou a seguir é também conhecido: uma hecatombe eleitoral, Durão Barroso colocou-se ao fresco e, com beneplácito presidencial, veio a experiência Santana Lopes.
Chegados às legislativas deste ano, o PP encontrava-se numa encruzilhada: ou voltava à matriz popular, fazendo regressar o “Paulinho das feiras”, ou vestia a pele de partido da moderação e da estabilidade governativa. O caminho seguido foi o segundo, tendo mesmo sido estabelecida uma meta ambiciosa de 10% dos votos. A aposta era fazer o contraponto ao desvario santanista. Acontece que a razão principal do desagrado popular não era Santana Lopes, mas, sim, as políticas seguidas nos últimos três anos e esse descontentamento afectava também o CDS. Santana Lopes era apenas a cereja em cima do bolo. Com uma avaliação positiva do Governo que andou sempre perto dos 35%, os votos do CDS somados aos do PSD não poderiam superar muito esse valor. Para Paulo Portas atingir 10%, o PSD precisava de cair abaixo dos 25%, algo que nem mesmo Santana Lopes seria capaz de alcançar. Mas o transformismo estava novamente feito. A pose de Estado em campanha eleitoral, os nichos eleitorais do passado abandonados e um discurso que era agora dirigido ao eleitorado urbano que valorizava a estabilidade.
Paulo Portas sabia que o problema para o CDS não era tanto o resultado das últimas eleições. O problema era o que viria a seguir. O partido estava em perda acelerada no eleitorado que na última década lhe tinha permitido a sobrevivência. A experiência de governo havia sido fatídica para a relação de confiança com a lavoura, com os pensionistas ou com os ex-combatentes. Ao mesmo tempo, o resultado das eleições fora alcançado à custa de uma baixa conjuntural no PSD, reversível assim que a moderação voltasse aos sociais-democratas. Com Marques Mendes na liderança, o eleitorado que o CDS havia conquistado nas últimas legislativas regressaria ao PSD. A consequência do transformismo havia sido a perda dos velhos eleitores e a não fidelização dos novos. Com eleições autárquicas à porta (que são invariavelmente difíceis para o partido) e com Cavaco no horizonte, Paulo Portas sabia que o futuro era complicado. Demitiu-se.
No congresso do passado fim-de-semana estavam em aberto duas possibilidades. Por um lado, uma opção populista, mas sem a força eleitoral de Paulo Portas, representada por Telmo Correia e, por outro, um regresso às origens da democracia-cristã, com Ribeiro e Castro. Telmo Correia era o líder anunciado. Com o apoio de 15 distritais e da maioria dos fiéis de Portas, o seu tabu parecia apenas uma estratégia para ter uma passadeira vermelha para a vitória.
Mas, em pleno congresso, tudo mudou. E tudo começou a mudar com o discurso de Paulo Portas quando este abriu a porta à estratégia de Ribeiro e Castro, ao afirmar que “Portugal não é Chicago”. Que o paradigma liberal não pode ser imposto à sociedade portuguesa, pois os frágeis equilíbrios sociais que nesta existem não o permitem. Esqueçamos o facto de Chicago não ser “Chicago”, de a realidade norte-americana estar longe de ser como os ultra-liberais “Chicago boys” a descrevem e atentemos antes nas consequências da afirmação para o conclave.
Primeiro de tudo, a surpresa de a anterior maioria só ter reparado no óbvio com o banho de realidade das últimas legislativas. E o óbvio é que a pobreza entre nós é persistente; os desequilíbrios sociais fortes; as empresas e o empreendorismo frágeis; as desigualdades territoriais acentuadas; os níveis de qualificação e de cultura baixos e o Estado um reflexo de tudo isto. Ora, nenhum destes problemas se resolve com receitas ultra-liberais e a sensibilidade à realidade, tal como ela existe, é essencial em política.
Parece ter sido isso que a maioria dos congressistas pensou. À repetição da opção populista, mas sem Paulo Portas, os militantes preferiram um regresso às raízes do CDS. O problema é que, do mesmo modo, que com Telmo Correia uma linha mais liberal enfrentaria sérias dificuldades eleitorais, a recomposição da democracia-cristã e a concretização da agenda de Ribeiro e Castro é também difícil. É que a democracia cristã não se refunda ou reconstrói. Na verdade, os partidos democratas-cristãos assentam numa ligação inicial, mais ou menos orgânica, à Igreja que, por uma série de contingencialismos históricos, entre nós, nem aquando da fundação do CDS existiu. Construi-la hoje é uma impossibilidade. Se à ausência de ligação com a Igreja somarmos uma estrutura partidária quase inexistente e não representativa (só assim se explica que o apoio de 15 distritais se traduza numa derrota em congresso), parece claro que o CDS só voltará a ter um futuro eleitoralmente competitivo com um líder carismático e que valha, por si, votos. O problema é que esse líder não é, certamente, Ribeiro e Castro, nem Telmo Correia, mas, sim, Paulo Portas.

publicado em A Capital

quarta-feira, abril 20, 2005

Os autarcas e o dominó

Há anos que vozes de todos os partidos falam insistentemente na renovação da classe política. Poucas são, também, as semanas em que não há um comentador a reclamar o mesmo. O discurso banalizou-se de tal modo que mesmo os mais improváveis renovadores o incorporaram e reproduziram. Agora, o Governo retomou a proposta que o PS havia apresentado na oposição (e levado a cabo internamente, com a revisão estatutária de 2002) e avançou para a limitação dos mandatos para os cargos executivos, com moderação nos efeitos retroactivos. Claro que, assim que se passou do discurso à prática, tudo mudou. Quase que caiu o Carmo e a Trindade. Os doutorados em cinismo logo vieram dizer que a medida era irrelevante e que revelava desconfiança dos dirigentes em relação aos seus pares. Outros criticaram-na por ser tímida – era preciso ir mais longe – e, ainda, por não mexer no essencial. Em Portugal é invariavelmente assim. Todos reclamam reformas e há um vasto consenso sobre o que é preciso fazer. Até ao momento em que se faz alguma coisa. A partir de então, o consenso desfaz-se e afinal o que foi feito não era nem necessário, nem essencial.
Acontece que a renovação da classe política é necessária e essencial. E para começar por algum lado, é boa ideia limitar os mandatos dos cargos executivos. Na prática, é aí que parte importante do problema se coloca. A sucessão de mandatos, quando associada a forte personalização, é susceptível de potenciar excesso de poder e clientelismo. Fenómenos que fragilizam o interesse comum e a qualidade da democracia.
Embora a proposta do Governo abranja, entre outros, o cargo de Primeiro-Ministro, é fundamentalmente ao nível dos governos regionais e das autarquias locais que a questão se põe. Nenhum Primeiro-Ministro, desde o 25 de Abril, exerceu o seu mandato por mais de dez anos. Além de que convém recordar que o exercício do cargo de Presidente da República é limitado a dois mandatos. As reacções dos autarcas e de João Jardim são, por isso, sintomáticas de que se tocou na ferida. E o lugar da ferida é inequívoco.
Num estudo sobre as teias do poder local, Sérgio Faria concluiu que, com a excepção das eleições autárquicas de 1979, altura em que mais de metade dos presidentes de câmaras foram substituídos, verifica-se que a recondução dos autarcas no mandato seguinte é próxima dos 60% e que, até 2001, mais de 50% das autarquias tiveram no máximo três presidentes. Ou seja, nas autarquias há uma forte tendência para a reprodução e manutenção das elites. Tendência que não é comparável, por exemplo, com funções governativas e que só encontra paralelo nos casos dos Governos Regionais da Madeira (apenas um Presidente) e dos Açores (dois).
Com justiça, do poder local é dito que foi das principais conquistas do 25 de Abril. Não apenas porque se tratou de um factor de desenvolvimento do país, mas, também, porque implicou a democratização do poder. Contudo, os últimos 30 anos têm servido para que a outra face tenha sido revelada. Para além das virtudes, o poder autárquico condensa muitos dos problemas de qualidade da democracia portuguesa. À cabeça, surgem as redes de poder intrincadas que se desenvolvem em torno das autarquias, muito por força da personalização das presidências e da sua eternização.
Entre as principais consequências negativas da perpetuação no poder dos autarcas encontra-se a sua reprodução linear no seio dos partidos. Um pouco por todo o país, e nos três partidos que têm dimensão autárquica, há um problema de fraca autonomia nacional face às lógicas concelhias. Claro que este facto tem a vantagem de permitir uma maior mobilização dos militantes devido à proximidade aos problemas. No entanto, faz com que, frequentemente, os partidos percam a dimensão do interesse nacional e se fechem sobre si mesmos. Muito por força do poder quase perpétuo de alguns autarcas, temos assistido a uma lenta evolução de partidos nacionais para a soma de pequenos partidos de interesses locais, federados.
Basta pensar nas listas de deputados. Até recentemente, quando era possível aos autarcas acumularem o cargo com o mandato de deputado, era isso que faziam. Agora, impedidos de o fazer, optam por fazer das listas caixas de ressonância dos seus poderes concelhios. As direcções nacionais dos partidos – de todos os partidos – vêem-se sem margem de autonomia para promover a renovação efectiva dos candidatos a deputados. Foi, por exemplo, isso que aconteceu nas últimas eleições legislativas. José Sócrates cedeu nas listas de deputados (onde lhe era mais difícil fazer face às resistências partidárias) e, paradoxalmente, pôde renovar mais e com maior autonomia na feitura do Governo.
É por isso que, numa visão optimista, o impulso para a renovação dos agentes autárquicos, resultante da limitação dos mandatos, arrisca-se a produzir um efeito dominó. Ao estimular a mudança ao nível das autarquias locais, está-se a criar condições para que a renovação das estruturas partidárias, em alguma medida, também ocorra. Depois de ter empurrado a primeira peça do dominó, é importante que o Governo revele coragem e não recue perante a coligação de resistências que tem surgido. Ao mesmo tempo, esta é uma primeira prova de fogo para o líder da oposição. Marques Mendes, depois de ter tido a ousadia de, no congresso, afrontar o passado recente do partido, tem agora uma oportunidade para afirmar a sua liderança, não cedendo, designadamente perante João Jardim. Adiar a concretização da proposta governativa, ou criar subterfúgios para impossibilitar a sua concretização, seria uma oportunidade perdida. E a deterioração da democracia portuguesa não se compadece com a perca de muito mais oportunidades.
publicado em A Capital

quinta-feira, abril 14, 2005

O problema da tenaz

A discussão em torno da legislação laboral revela, como poucas outras, a dicotomia presente na sociedade portuguesa entre, por um lado, conservadores de várias cores políticas e, por outro, radicais liberais. A sessão parlamentar de ontem e a apresentação, pelo PCP e pelo BE, de dois projectos de lei, com vista à revogação do actual Código do Trabalho, fez regressar este tipo de debate.
Na anterior legislatura, o Código do Trabalho foi, simultaneamente, arma de arremesso ideológico e panaceia para quase todos os males da competitividade nacional. Hoje, os seus resultados são, em alguma medida, conhecidos. Para além da propaganda, o número de transformações consequentes foi reduzido. Antes de mais porque, como lembrou ainda recentemente a OCDE, nem sequer foi cumprido o seu propósito primeiro, tantas vezes proclamado: na verdade, a redução da rigidez laboral foi marginal.
Ainda assim, enquanto, em algumas áreas, o Código do Trabalho mudou menos do que apregoava, noutras levou a cabo uma ofensiva estéril, motivada apenas por um desgastante combate ideológico, que a ninguém serviu e que não interveio junto dos factores relevantes para a modernização do mercado de trabalho. Mas houve, de facto, uma área onde o Código do Trabalho mudou alguma coisa: na contratação colectiva. Em 2004 o número de convenções publicadas diminui para metade face ao ano anterior. Ora, é sabido que grande parte das experiências inovadoras ao nível das relações de trabalho assenta na valorização da contratação colectiva. Em Portugal, assistiu-se exactamente ao contrário, a um desmantelar da contratação colectiva.
Em 2005, com uma nova maioria parlamentar, o debate regressou. E regressou em moldes semelhantes. De um lado, estão aqueles que acham que todo o trabalho deve ser deitado fora e, por isso, pedem a revogação do Código. De outro, estão os que acham que tudo vai bem, e que nada deve ser mudado. No entanto, no meio, persistem os problemas do nosso mercado de trabalho. Uma forte rigidez da legislação que coexiste com uma prática de significativa flexibilidade, acompanhada de fraca protecção social e, ainda, de baixa autonomia do diálogo social. Na prática, este quadro traduz-se em ilegalidade e precariedade.
Neste contexto, o caminho para uma terceira via, que se demarque do imobilismo da velha esquerda e do voluntarismo preconceituoso da direita, é estreito. Em Portugal, nesta como em muitas outras áreas, há uma tenaz que aperta aqueles que querem seguir um caminho modernizador, de compatibilização de direitos de cidadania de quem trabalha com as necessidades de adaptação das empresas às novas exigências da competitividade. A inexistência de uma coligação político-social que supere a dicotomia entre os que querem preservar os empregos tal como eles existem (algo que o tempo se encarregará de demonstrar impossível) e aqueles que querem que o mercado, por si só, seja a força motriz por detrás das transformações necessárias, é um importante bloqueio à mudança.
E Portugal precisa de fazer evoluir o seu modelo para um padrão de maior flexibilidade formal, mas em que a prática nas relações laborais corresponda, de facto, à norma. No entanto, tal só pode ser feito se a flexibilidade for combinada com mais protecção social e maior autonomia no diálogo entre parceiros. No fundo, adaptando à sociedade portuguesa o princípio da flexigurança – que foi parte do segredo do sucesso de alguns pequenos países europeus, mais avançados económica e socialmente. Países onde os trabalhadores não são o elo fraco dos processos de adaptabilidade das empresas e onde é possível compatibilizar segurança com flexibilidade na criação de novos postos de trabalho.
Com a autonomia que resulta de uma maioria absoluta, o governo tem condições únicas para superar a tenaz e não alinhar por nenhum dos lados tradicionais, seguindo um caminho modernizador, acima das partes. É, aliás, uma responsabilidade, mas, também, um dever. Começar por mudar apenas o que é urgente mudar na legislação laboral, não cedendo nem ao imobilismo, nem ao maximalismo, é um bom passo inicial. Mas importa ter a consciência que mudanças com maior alcance no modelo de relações laborais se fazem na fase ascendente do ciclo económico. Fazê-lo agora revelaria insensatez política e serviria apenas para que o diálogo social se visse, mais uma vez, paralisado por uma conflitualidade estéril.

publicado no Diário Económico

quarta-feira, abril 13, 2005

Poder, aquilo que os une

Durante o congresso deste fim de semana, voltou a ideia de que o PSD é o mais português dos partidos portugueses. Uma ideia que se baseia, essencialmente, no código genético do PSD e no papel que, nesse processo, desempenhou a ideologia. Resta saber se a portugalidade é, hoje, útil para a renovação do appeal eleitoral perdido.
Desde a sua formação, o PSD foi sempre um partido abrangente, caracterizado pelo eclectismo, abarcando desde alguma da oposição ao antigo regime (a ala liberal, mas não só) até sectores sociais claramente de direita (por ex., a burguesia rural proprietária, que constituía parte da base de apoio do Estado Novo). Em termos organizativos foi herdeiro de muitas das estruturas da União Nacional (em especial na região centro e norte). Ao mesmo tempo, formou-se sem uma ancoragem em movimentos sociais institucionalizados. Aliás, foi o facto de não reproduzir linearmente clivagens cristalizadas na sociedade que permitiu ao PSD, historicamente, abarcar diversos sectores, muitos deles de natureza contraditória. Daí os vários “portugais” que coexistem no partido. Deste modo, o que poderia ser uma debilidade transformou-se numa mais valia.
Acontece que, neste aspecto, o PSD pouco difere do PS – não sendo por isso mais português do que os socialistas. Na realidade, o PS também é um catch-all party, que não nasceu da “sociedade” e onde coexistem grupos sociais contraditórios. Como lembrava Pedro Magalhães, em entrevista recente à A Capital, ambos os partidos nasceram da vontade das elites. Deste ponto de vista, a grande diferença é que, porventura, a base socialista tem uma maior ligação ao Estado e às profissões liberais e intelectuais, enquanto a do PSD uma maior proximidade com o tecido de pequenas e médias empresas e proprietários, bem como com muito do mundo rural. Estes factores foram, naturalmente, empurrando o PSD para a direita do espectro político.
Mas, a razão que leva a que o PSD seja visto como um partido eminentemente português prende-se com a inexistência de uma ideologia que funcione como elemento agregador. É verdade que também o PS é um partido abrangente e com especificidades portuguesas, contudo, os socialistas têm uma matriz ideológica identificável. Pese embora algumas idiossincrasias – à cabeça, o facto de não ter nascido do movimento sindical – o PS é semelhante aos seus congéneres da Internacional Socialista.
Ora, o mesmo não se passa com o PSD. Essencialmente por duas razões: a definição do seu código genético ocorreu num momento em que a direita esteve à defesa (a transição para a democracia) e a única possibilidade de se tornar competitivo no campo eleitoral foi a ausência de um compromisso ideológico forte. Neste sentido, o PSD é um partido eminentemente português (na medida em que não há, na Europa, muitos casos de partidos com fraco papel da ideologia).
A tudo isto há a acrescentar que o PSD se tem transformado. Não apenas se foi encostando à direita, como também tem delapidado muita da sua tradicional base de apoio (recuando nos centros urbanos, entre os jovens, trabalhadores independentes e quadros). Os seus insucessos eleitorais desde 1995 são, em larga medida, resultado disso mesmo. A propósito, convém não esquecer que, por exemplo, Durão Barroso venceu as legislativas perdendo em Lisboa. O que não deixa de ser sintomático do recuo do PSD nos segmentos mais dinâmicos da sociedade portuguesa.
Chegados a 2005, o PSD continua a sublinhar a sua portugalidade. No último congresso foi mesmo utilizada a divisa: “Portugal, aquilo que nos une”. Acontece que o que foi durante um largo período a principal mais valia do PSD é hoje parte da sua fragilidade. No PSD continuam a coexistir muitos partidos e persiste a mesma indefinição ideológica. Só que, no passado, nenhum desses factores era, em si, um problema. Pelo contrário, eram essas características que possibilitavam alguma plasticidade. Com poder, e com um líder que estava acima dos “vários partidos”, foi sendo possível manter a unidade e ser competitivo eleitoralmente. Agora, sem poder, o que fica é a ideia de desagregação e da existência de vários grupos que não coexistem. Pelo contrário, vão alternando no poder interno.
No passado, o que uniu o PSD não foi Portugal, mas, sim, o poder. Hoje, afastado do governo, com divergências internas que parecem inultrapassáveis e com o PS a progredir no seu eleitorado (essencialmente entre os jovens e nos centros urbanos), já pouco une o PSD. Bem podem, por isso, os sociais-democratas proclamar a sua especial portugalidade, mas se não demonstrarem vontade de enfrentar as razões concretas que os afastaram do poder, invocar Portugal de nada serve. E o drama é que, sobre aquelas, nada foi dito no congresso de Pombal.
P.S.
Santana Lopes parece estar profundamente empenhado em dar razão a todos aqueles que o têm criticado. As suas intervenções no congresso deste fim-de-semana foram um espectáculo degradante e certamente único em partidos centrais das democracias ocidentais. Que o próprio disso não se aperceba é grave, que um número muito significativo de congressistas ache tudo normal e o aplauda é muito preocupante.

publicado em A Capital.

quarta-feira, abril 06, 2005

O PSD e a refundação da direita

E, de repente, a direita resolveu refundar-se. Perdido o combate político, remeteu-se ao combate cultural. Acontece que a direita portuguesa, em certa medida, já se havia refundado, aquando da vitória de Durão Barroso e com o governo de coligação PSD/CDS.
Na realidade, desde pelo menos 2002, que a direita em Portugal, particularmente o PSD, passou a ser diferente. Representando interesses e valores distintos daqueles a que tradicionalmente dava corpo. Com a chegada ao poder de Durão Barroso foram introduzidas, na disputa política, várias das características de uma nova direita. Em 2002 assistimos, pela primeira vez, à utilização, de forma generalizada, do marketing político violento e negativo. Depois da vitória eleitoral, vimos a reconstrução da agenda governativa do PSD – através da combinação do peso excessivo do CDS na definição do rumo político-ideológico do governo, com a chegada ao poder de uma nova geração no PSD.
Três anos de governo revelaram uma direita mais ideologizada (o alinhamento com George Bush), mais insensível socialmente (o misto de conservadorismo social e dinâmica desreguladora nas políticas sociais) e mais neo-liberal economicamente (a fixação financista). Em traços largos foi este o programa da coligação Durão Barroso/Paulo Portas. Um programa bastante diferente da tradição dos governos PSD, com Cavaco Silva. O programa de uma direita refundada.
Os efeitos da aplicação deste programa são conhecidos. Profundo desajustamento face à sociedade portuguesa, insensibilidade social e incapacidade de cumprir as metas previamente definidas – de que o exemplo mais acabado é o descalabro na gestão das contas públicas. O resultado foi duas derrotas eleitorais estrondosas. A primeira, ainda com Durão Barroso e a segunda, já com Santana Lopes. É verdade que passou a ser conveniente responsabilizar Santana Lopes por todos os males. Mas, no essencial, a estratégia começou com Durão Barroso. E foi essa estratégia que desmobilizou o eleitorado que tradicionalmente votava PSD. Santana Lopes ajudou à festa, mas o problema já vinha de trás.
Era sobre isto que a direita portuguesa deveria andar a pensar. Mas não. Face ao sucedido, em lugar de inverter caminho, a direita parece preferir deixar de ser portuguesa e ser apenas mais de direita, à imagem da “revolução” neo-conservadora norte-americana. Tudo legítimo. Não fora o problema de a direita portuguesa, ao deixar de ser portuguesa correr o risco sério de intensificar o seu definhamento eleitoral.
Em Portugal, por contingências históricas e da estrutura social, não há, por exemplo, uma tradição liberal à direita. E se a direita for contra a sua própria tradição, perde no mercado eleitoral e torna-se politicamente ainda mais irrelevante. Pode ser muito estimulante do ponto de vista intelectual, mas, como todas as ideologias importadas, que forçam a entrada numa realidade social estranha, rapidamente se revelará política e eleitoralmente trágico.
Deste ponto de vista, o congresso do PSD é relevante e nele há dois caminhos que podem ser seguidos. Um que implica responsabilizar Santana Lopes pelo descalabro eleitoral e reconstruir o partido regressando ao antes de Santana. Uma táctica fácil e de compromisso, mas que levará a que, mais cedo ou mais tarde, os erros dos últimos anos sejam repetidos, entre eles o “desvio de direita”. A alternativa é levar a cabo um movimento de “back to basics” – no caso, regressando à matriz tradicional do PSD. O problema é que esta estratégia implica várias rupturas, todas elas difíceis.
Antes de mais, a ruptura com o caldo cultural em que a direita hoje vive. A questão é que o PSD esvaziou-se ideologicamente e não tem hoje capacidade contra-hegemónica face ao neo-conservadorismo à portuguesa, para o qual tem sido empurrado pelo CDS. E, principalmente, uma ruptura com a geração que tem dominado o PSD nos últimos anos. Uma geração moldada pelo poder recente e com uma matriz ideológica economicamente liberal e socialmente conservadora.
Com uma maioria absoluta do PS, com o espectro de António Borges a pairar e com a imagem de que foi uma segunda escolha – para durar apenas o tempo necessário – Marques Mendes terá poucas condições para ser um líder com capacidade de fazer estas rupturas. Sem poder para distribuir, dificilmente poderá ter uma estratégia. Pode até proclamar uma vontade de recentrar o partido, mas não passará de uma proclamação. Claro que há para a esquerda um problema: como o passado recente nos diz, em política tudo muda muito rapidamente. E com as presidenciais muita coisa pode mudar.

publicado em A Capital

domingo, abril 03, 2005

A espada de Borges

Marques Mendes deverá ser eleito daqui a uma semana líder do PSD. Entre outras coisas, esta escolha revela um regresso do PSD à razoabilidade. Ainda assim, expõe também uma característica que é comum aos dois principais partidos de poder em Portugal: uma enorme plasticidade. O mesmo PSD que apoiou Durão Barroso passou por uma unanimidade em torno de Santana Lopes e cairá agora nos braços de Marques Mendes. O facto destes três nomes representarem opções significativamente diferentes, não impede as bases partidárias de os apoiarem indiscriminadamente, contribuindo para demonstrar que, entre nós, os partidos centrais movem-se, cada vez mais, por tácticas para alcançar o poder e, cada vez menos, por questões programáticas ou ideológicas.
No entanto, mesmo com o apoio de vários dos "ismos" e "sub-ismos" que compõem o PSD, nuns casos mais convictos, noutros menos, Marques Mendes terá, por diversas razões, um caminho muito difícil nos próximos tempos.
Antes de mais, o contexto político. O PS tem uma sólida maioria absoluta; o PSD tem um grupo parlamentar que reflecte, em importante medida, o estertor do santanismo e que é técnica e politicamente fraco. Se a isto somarmos a ausência de um estatuto formalizado de líder da oposição - o que cria, por exemplo nos debates parlamentares, uma relação assimétrica com o primeiro-ministro - torna-se uma inevitabilidade que a vida corra mal a Marques Mendes.
Por tudo isto, daqui a uns meses, a propósito do anunciado novo presidente do PSD, se utilizará um conjunto de lugares comuns: que é um líder fraco e não faz oposição; que o PP e o Bloco de Esquerda é que lideram o combate ao governo; e, ainda, que o PSD não apresenta alternativas. Em Portugal é esta a avaliação que é invariavelmente feita a quem está na oposição (o que lembra, aliás, que o problema deve estar mais na estrutura do que nos agentes).
Ainda assim, haverá atenuantes. As eleições autárquicas serão particularmente difíceis para a actual maioria. Não apenas porque, em Outubro, o voto de protesto contra o governo dará os primeiros sinais, como também porque muitos dos actuais presidentes de câmara do PSD estão no fim do seu primeiro mandato e raramente se perdem eleições autárquicas nessa altura. A isto acresce que o triunfalismo do PS pode trazer um sabor amargo. Por outro lado, as presidenciais têm todas as condições para correr bem ao PSD, dada a autêntica auto-estrada que tem vindo a ser construída para Cavaco Silva. Convém, no entanto, não esquecer que, desde a campanha de Fernando Nogueira, o ex-primeiro-ministro tem dado quase exclusivamente sinais de fraca lealdade orgânica ao seu partido, pelo que a capitalização pelo PSD de uma hipotética vitória eleitoral nas presidenciais não é linear.
Este aspectos criam o contexto. Mas, na verdade, o que mais fragilizará a liderança de Marques Mendes é a ideia que se instalou, desde já, de que se trata de uma segunda escolha, um líder a prazo, que durará o necessário - isto é, enquanto o poder for para o PSD uma miragem. É que, vá lá saber-se exactamente porquê, no País e na política em particular, há o hábito de alimentar formas renovadas de sebastianismo. Quando na oposição, aos partidos o que está nunca serve, pois há sempre uma outra coisa que chegará e de uma assentada, como que por magia, resolverá todos os problemas. Foi assim no PS e, agora, será assim no PSD. Neste caso, o mito sebastiânico chama-se António Borges. Ora, o PSD deveria aprender qualquer coisa com a experiência do PS, onde o "desejado" se mostrou sempre indisponível, em particular nos momentos difíceis.
Ontem, como hoje, a vida política portuguesa continua pródiga em alimentar sebastianismos que insistem em não chegar, mas dificultam o dia-a-dia dos que por cá andam. É também por isso que Marques Mendes será um líder frágil. Sobre a sua cabeça pairará a "espada" de Borges. E contra isso, neste caso, como em muitos outros, pouco haverá a fazer. Além de saber resistir.
Mas, pelo caminho, o fenómeno António Borges revela também que os partidos interiorizaram o discurso contra os políticos e vivem também eles fascinados com os que aparentam estar de fora da vida partidária, mas nela intervém, com ampla cobertura mediática, sem que tenham de assumir os sacrifícios que esta acarreta, designadamente quando não há poder para exercer ou distribuir. Tem razão António Borges quando diz que será bom para o PSD, mais ainda depois da experiência santanista, estar quatro anos na oposição para se reconstruir. Mas convém ter consciência que liderar na oposição, durante quatro anos, ou mesmo oito, um partido construído no poder, é uma tarefa porventura mais difícil, mas não menos importante do que a do governo do País.
artigo publicado em A Capital