“Portugal não é Chicago”
O transformismo é a característica mais saliente da história recente do CDS. Tudo terá começado com a eleição de Manuel Monteiro, quando foram abandonados o centrismo e a democracia-cristã. No entretanto, Paulo Portas abandonou o seu papel de criador para assumir o de protagonista quase único. Depois, é o que se sabe. Chegou o “Paulinho das Feiras”, e com ele a aposta populista em nichos de mercado eleitoral: a lavoura, os ex-combatentes, os pensionistas. Sempre explorando o ressentimento e com uma estratégia baseada nos mais perversos mecanismos de inveja social – de que foi exemplo a tentativa de colocar pensionistas pobres contra beneficiários do rendimento mínimo, naturalmente pobres. Os resultados eleitorais foram dando sucessivos novos fôlegos, mesmo quando tal aparentava ser impossível. Europeias, autárquicas, legislativas, o candidato era sempre o mesmo e, na recta final, Paulo Portas superava as expectativas.
Chegaram as legislativas de 2002 e duas coisas pareciam claras: os eleitores não haviam perdoado a Guterres, o PS estava eleitoralmente ferido e Durão Barroso entusiasmava nada ou muito pouco. O resultado foi uma maioria relativa que deixou o PSD a necessitar de se coligar com o seu arqui-inimigo, o PP de Paulo Portas. Era o fim do “Paulinho das feiras” e o nascimento do homem de Estado, feito Ministro da Defesa e o regresso do discurso dos valores da democracia-cristã. Pelo meio, enquanto Durão Barroso se mostrava obcecado pelo “discurso da tanga”, o Ministro Paulo Portas avançava no combate cultural. Controlando áreas chave para a definição ideológica do governo (por exemplo, a segurança social e o trabalho), marcou a matriz política da coligação. O apogeu do processo terá sido a homenagem de Estado a Maggiolo Gouveia. Em Junho de 2004, as eleições europeias seriam disputadas debaixo deste clima: a coligação estava a ser empurrada para a direita devido ao peso excessivo do CDS-PP na governação. O que se passou a seguir é também conhecido: uma hecatombe eleitoral, Durão Barroso colocou-se ao fresco e, com beneplácito presidencial, veio a experiência Santana Lopes.
Chegados às legislativas deste ano, o PP encontrava-se numa encruzilhada: ou voltava à matriz popular, fazendo regressar o “Paulinho das feiras”, ou vestia a pele de partido da moderação e da estabilidade governativa. O caminho seguido foi o segundo, tendo mesmo sido estabelecida uma meta ambiciosa de 10% dos votos. A aposta era fazer o contraponto ao desvario santanista. Acontece que a razão principal do desagrado popular não era Santana Lopes, mas, sim, as políticas seguidas nos últimos três anos e esse descontentamento afectava também o CDS. Santana Lopes era apenas a cereja em cima do bolo. Com uma avaliação positiva do Governo que andou sempre perto dos 35%, os votos do CDS somados aos do PSD não poderiam superar muito esse valor. Para Paulo Portas atingir 10%, o PSD precisava de cair abaixo dos 25%, algo que nem mesmo Santana Lopes seria capaz de alcançar. Mas o transformismo estava novamente feito. A pose de Estado em campanha eleitoral, os nichos eleitorais do passado abandonados e um discurso que era agora dirigido ao eleitorado urbano que valorizava a estabilidade.
Paulo Portas sabia que o problema para o CDS não era tanto o resultado das últimas eleições. O problema era o que viria a seguir. O partido estava em perda acelerada no eleitorado que na última década lhe tinha permitido a sobrevivência. A experiência de governo havia sido fatídica para a relação de confiança com a lavoura, com os pensionistas ou com os ex-combatentes. Ao mesmo tempo, o resultado das eleições fora alcançado à custa de uma baixa conjuntural no PSD, reversível assim que a moderação voltasse aos sociais-democratas. Com Marques Mendes na liderança, o eleitorado que o CDS havia conquistado nas últimas legislativas regressaria ao PSD. A consequência do transformismo havia sido a perda dos velhos eleitores e a não fidelização dos novos. Com eleições autárquicas à porta (que são invariavelmente difíceis para o partido) e com Cavaco no horizonte, Paulo Portas sabia que o futuro era complicado. Demitiu-se.
No congresso do passado fim-de-semana estavam em aberto duas possibilidades. Por um lado, uma opção populista, mas sem a força eleitoral de Paulo Portas, representada por Telmo Correia e, por outro, um regresso às origens da democracia-cristã, com Ribeiro e Castro. Telmo Correia era o líder anunciado. Com o apoio de 15 distritais e da maioria dos fiéis de Portas, o seu tabu parecia apenas uma estratégia para ter uma passadeira vermelha para a vitória.
Mas, em pleno congresso, tudo mudou. E tudo começou a mudar com o discurso de Paulo Portas quando este abriu a porta à estratégia de Ribeiro e Castro, ao afirmar que “Portugal não é Chicago”. Que o paradigma liberal não pode ser imposto à sociedade portuguesa, pois os frágeis equilíbrios sociais que nesta existem não o permitem. Esqueçamos o facto de Chicago não ser “Chicago”, de a realidade norte-americana estar longe de ser como os ultra-liberais “Chicago boys” a descrevem e atentemos antes nas consequências da afirmação para o conclave.
Primeiro de tudo, a surpresa de a anterior maioria só ter reparado no óbvio com o banho de realidade das últimas legislativas. E o óbvio é que a pobreza entre nós é persistente; os desequilíbrios sociais fortes; as empresas e o empreendorismo frágeis; as desigualdades territoriais acentuadas; os níveis de qualificação e de cultura baixos e o Estado um reflexo de tudo isto. Ora, nenhum destes problemas se resolve com receitas ultra-liberais e a sensibilidade à realidade, tal como ela existe, é essencial em política.
Parece ter sido isso que a maioria dos congressistas pensou. À repetição da opção populista, mas sem Paulo Portas, os militantes preferiram um regresso às raízes do CDS. O problema é que, do mesmo modo, que com Telmo Correia uma linha mais liberal enfrentaria sérias dificuldades eleitorais, a recomposição da democracia-cristã e a concretização da agenda de Ribeiro e Castro é também difícil. É que a democracia cristã não se refunda ou reconstrói. Na verdade, os partidos democratas-cristãos assentam numa ligação inicial, mais ou menos orgânica, à Igreja que, por uma série de contingencialismos históricos, entre nós, nem aquando da fundação do CDS existiu. Construi-la hoje é uma impossibilidade. Se à ausência de ligação com a Igreja somarmos uma estrutura partidária quase inexistente e não representativa (só assim se explica que o apoio de 15 distritais se traduza numa derrota em congresso), parece claro que o CDS só voltará a ter um futuro eleitoralmente competitivo com um líder carismático e que valha, por si, votos. O problema é que esse líder não é, certamente, Ribeiro e Castro, nem Telmo Correia, mas, sim, Paulo Portas.
publicado em A Capital
Chegaram as legislativas de 2002 e duas coisas pareciam claras: os eleitores não haviam perdoado a Guterres, o PS estava eleitoralmente ferido e Durão Barroso entusiasmava nada ou muito pouco. O resultado foi uma maioria relativa que deixou o PSD a necessitar de se coligar com o seu arqui-inimigo, o PP de Paulo Portas. Era o fim do “Paulinho das feiras” e o nascimento do homem de Estado, feito Ministro da Defesa e o regresso do discurso dos valores da democracia-cristã. Pelo meio, enquanto Durão Barroso se mostrava obcecado pelo “discurso da tanga”, o Ministro Paulo Portas avançava no combate cultural. Controlando áreas chave para a definição ideológica do governo (por exemplo, a segurança social e o trabalho), marcou a matriz política da coligação. O apogeu do processo terá sido a homenagem de Estado a Maggiolo Gouveia. Em Junho de 2004, as eleições europeias seriam disputadas debaixo deste clima: a coligação estava a ser empurrada para a direita devido ao peso excessivo do CDS-PP na governação. O que se passou a seguir é também conhecido: uma hecatombe eleitoral, Durão Barroso colocou-se ao fresco e, com beneplácito presidencial, veio a experiência Santana Lopes.
Chegados às legislativas deste ano, o PP encontrava-se numa encruzilhada: ou voltava à matriz popular, fazendo regressar o “Paulinho das feiras”, ou vestia a pele de partido da moderação e da estabilidade governativa. O caminho seguido foi o segundo, tendo mesmo sido estabelecida uma meta ambiciosa de 10% dos votos. A aposta era fazer o contraponto ao desvario santanista. Acontece que a razão principal do desagrado popular não era Santana Lopes, mas, sim, as políticas seguidas nos últimos três anos e esse descontentamento afectava também o CDS. Santana Lopes era apenas a cereja em cima do bolo. Com uma avaliação positiva do Governo que andou sempre perto dos 35%, os votos do CDS somados aos do PSD não poderiam superar muito esse valor. Para Paulo Portas atingir 10%, o PSD precisava de cair abaixo dos 25%, algo que nem mesmo Santana Lopes seria capaz de alcançar. Mas o transformismo estava novamente feito. A pose de Estado em campanha eleitoral, os nichos eleitorais do passado abandonados e um discurso que era agora dirigido ao eleitorado urbano que valorizava a estabilidade.
Paulo Portas sabia que o problema para o CDS não era tanto o resultado das últimas eleições. O problema era o que viria a seguir. O partido estava em perda acelerada no eleitorado que na última década lhe tinha permitido a sobrevivência. A experiência de governo havia sido fatídica para a relação de confiança com a lavoura, com os pensionistas ou com os ex-combatentes. Ao mesmo tempo, o resultado das eleições fora alcançado à custa de uma baixa conjuntural no PSD, reversível assim que a moderação voltasse aos sociais-democratas. Com Marques Mendes na liderança, o eleitorado que o CDS havia conquistado nas últimas legislativas regressaria ao PSD. A consequência do transformismo havia sido a perda dos velhos eleitores e a não fidelização dos novos. Com eleições autárquicas à porta (que são invariavelmente difíceis para o partido) e com Cavaco no horizonte, Paulo Portas sabia que o futuro era complicado. Demitiu-se.
No congresso do passado fim-de-semana estavam em aberto duas possibilidades. Por um lado, uma opção populista, mas sem a força eleitoral de Paulo Portas, representada por Telmo Correia e, por outro, um regresso às origens da democracia-cristã, com Ribeiro e Castro. Telmo Correia era o líder anunciado. Com o apoio de 15 distritais e da maioria dos fiéis de Portas, o seu tabu parecia apenas uma estratégia para ter uma passadeira vermelha para a vitória.
Mas, em pleno congresso, tudo mudou. E tudo começou a mudar com o discurso de Paulo Portas quando este abriu a porta à estratégia de Ribeiro e Castro, ao afirmar que “Portugal não é Chicago”. Que o paradigma liberal não pode ser imposto à sociedade portuguesa, pois os frágeis equilíbrios sociais que nesta existem não o permitem. Esqueçamos o facto de Chicago não ser “Chicago”, de a realidade norte-americana estar longe de ser como os ultra-liberais “Chicago boys” a descrevem e atentemos antes nas consequências da afirmação para o conclave.
Primeiro de tudo, a surpresa de a anterior maioria só ter reparado no óbvio com o banho de realidade das últimas legislativas. E o óbvio é que a pobreza entre nós é persistente; os desequilíbrios sociais fortes; as empresas e o empreendorismo frágeis; as desigualdades territoriais acentuadas; os níveis de qualificação e de cultura baixos e o Estado um reflexo de tudo isto. Ora, nenhum destes problemas se resolve com receitas ultra-liberais e a sensibilidade à realidade, tal como ela existe, é essencial em política.
Parece ter sido isso que a maioria dos congressistas pensou. À repetição da opção populista, mas sem Paulo Portas, os militantes preferiram um regresso às raízes do CDS. O problema é que, do mesmo modo, que com Telmo Correia uma linha mais liberal enfrentaria sérias dificuldades eleitorais, a recomposição da democracia-cristã e a concretização da agenda de Ribeiro e Castro é também difícil. É que a democracia cristã não se refunda ou reconstrói. Na verdade, os partidos democratas-cristãos assentam numa ligação inicial, mais ou menos orgânica, à Igreja que, por uma série de contingencialismos históricos, entre nós, nem aquando da fundação do CDS existiu. Construi-la hoje é uma impossibilidade. Se à ausência de ligação com a Igreja somarmos uma estrutura partidária quase inexistente e não representativa (só assim se explica que o apoio de 15 distritais se traduza numa derrota em congresso), parece claro que o CDS só voltará a ter um futuro eleitoralmente competitivo com um líder carismático e que valha, por si, votos. O problema é que esse líder não é, certamente, Ribeiro e Castro, nem Telmo Correia, mas, sim, Paulo Portas.
publicado em A Capital
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