O reformismo e a futilidade
Na tomada de posse e, depois, na apresentação do programa de governo, José Sócrates apresentou duas medidas em duas áreas em que o discurso da necessidade de reforma tem estado mais presente: a saúde e a justiça. As medidas são conhecidas – o fim do monopólio das farmácias na comercialização de medicamentos de venda livre e a diminuição das férias judiciais. No entanto, apesar de se tratar de medidas com propósitos muito diferentes e destinadas a sectores afastados, geraram reacções paradoxalmente semelhantes no debate público. Reacções que revelam uma postura dominante em Portugal e que, da esquerda à direita, é contrária ao reformismo eficaz.
Colocando de lado os posicionamentos mais corporativos, que assinalavam os riscos e a perversidade das propostas em causa, ouvimos, frequentemente, a propósito destas iniciativas, dizer que, no essencial, não passavam de medidas de cosmética, pois não faziam o que era necessário: reformar os sistemas de saúde e judicial.
Parece evidente que o objectivo nunca foi a reforma global destas áreas sectoriais, mas essencialmente dar um sinal político daquilo que será a identidade do novo governo, designadamente no modo como procurará lidar com os interesses e as corporações. Contudo, a discussão gerada permitiu desvendar uma característica típica do discurso reactivo à mudança nas políticas públicas e que o economista político Albert Hirschman descreveu em “O Pensamento Conservador” (Difel, 1997).
A ideia de Hirschman é simples e muito interessante como instrumento de leitura dos debates sobre políticas públicas. De acordo com o seu argumento, os impulsos reformistas enfrentam invariavelmente três tipos de críticas reaccionárias ou conservadoras. A saber, as novas medidas ou são perversas (pois produzem consequências indesejadas ou mesmo contrárias ao inicialmente pretendido), ou acarretam riscos desnecessários ou, finalmente, são fúteis. Atentemos um pouco mais neste último argumento, já que, não só tem sido o mais presente face às duas propostas do governo, como revela muitos dos obstáculos que enfrenta em Portugal a agenda reformista.
A tese da futilidade remete para a ideia de que as tentativas reformistas estão condenadas ao fracasso, pois são superficiais, de fachada e incapazes de alterar as estruturas profundas da sociedade. No fundo, o que esta lógica argumentativa reproduz é, em última análise, a ideia que as políticas públicas são inconsequentes, pois nada conseguem mudar, limitando-se a somar um conjunto de medidas fúteis. Da saúde à justiça, passando pela educação, os sucessivos governos apresentam propostas que não fazem diferença nenhuma e que dão sempre prioridade àquilo que é secundário. A crer nesta perspectiva, o fim do monopólio da venda de medicamentos ou a diminuição das férias judiciais são apenas mais duas medidas, de um extenso rol de políticas inconsequentes.
Ora, este argumento esquece que a transformação social consequente radica, precisamente, no gradualismo e em sequências reformistas de curto e médio alcance. Até porque a alternativa é, normalmente, a lógica maximalista, que revela insensatez política e desconhecimento das estruturas sociais em que opera. Aliás, dois sintomas típicos do discurso dominante, quer à esquerda, quer à direita, sobre as reformas na sociedade portuguesa.
É por isso que ao dizer-se que as medidas apresentadas pelo novo governo são de natureza cosmética e que o que é preciso é promover “reformas a sério”, está-se a disseminar um discurso que reage e mostra desprezo pela mudança induzida pelas políticas públicas. Pôr fim ao monopólio na venda de medicamentos e diminuir o período de férias judiciais é apenas um princípio. E qualquer reformista sabe que, para mudar alguma coisa, se deve começar lenta e gradualmente por algum lado. Assim, ao invocar-se o argumento da futilidade como resposta a estas novas medidas, está-se, entre outras coisas, a recorrer a um discurso que tem uma lógica bloqueadora das tentativas políticas de transformação. No fundo, a um discurso que é inimigo do reformismo consequente, algo que, como é sabido, faz falta em Portugal.
publicado no Diário Económico
Colocando de lado os posicionamentos mais corporativos, que assinalavam os riscos e a perversidade das propostas em causa, ouvimos, frequentemente, a propósito destas iniciativas, dizer que, no essencial, não passavam de medidas de cosmética, pois não faziam o que era necessário: reformar os sistemas de saúde e judicial.
Parece evidente que o objectivo nunca foi a reforma global destas áreas sectoriais, mas essencialmente dar um sinal político daquilo que será a identidade do novo governo, designadamente no modo como procurará lidar com os interesses e as corporações. Contudo, a discussão gerada permitiu desvendar uma característica típica do discurso reactivo à mudança nas políticas públicas e que o economista político Albert Hirschman descreveu em “O Pensamento Conservador” (Difel, 1997).
A ideia de Hirschman é simples e muito interessante como instrumento de leitura dos debates sobre políticas públicas. De acordo com o seu argumento, os impulsos reformistas enfrentam invariavelmente três tipos de críticas reaccionárias ou conservadoras. A saber, as novas medidas ou são perversas (pois produzem consequências indesejadas ou mesmo contrárias ao inicialmente pretendido), ou acarretam riscos desnecessários ou, finalmente, são fúteis. Atentemos um pouco mais neste último argumento, já que, não só tem sido o mais presente face às duas propostas do governo, como revela muitos dos obstáculos que enfrenta em Portugal a agenda reformista.
A tese da futilidade remete para a ideia de que as tentativas reformistas estão condenadas ao fracasso, pois são superficiais, de fachada e incapazes de alterar as estruturas profundas da sociedade. No fundo, o que esta lógica argumentativa reproduz é, em última análise, a ideia que as políticas públicas são inconsequentes, pois nada conseguem mudar, limitando-se a somar um conjunto de medidas fúteis. Da saúde à justiça, passando pela educação, os sucessivos governos apresentam propostas que não fazem diferença nenhuma e que dão sempre prioridade àquilo que é secundário. A crer nesta perspectiva, o fim do monopólio da venda de medicamentos ou a diminuição das férias judiciais são apenas mais duas medidas, de um extenso rol de políticas inconsequentes.
Ora, este argumento esquece que a transformação social consequente radica, precisamente, no gradualismo e em sequências reformistas de curto e médio alcance. Até porque a alternativa é, normalmente, a lógica maximalista, que revela insensatez política e desconhecimento das estruturas sociais em que opera. Aliás, dois sintomas típicos do discurso dominante, quer à esquerda, quer à direita, sobre as reformas na sociedade portuguesa.
É por isso que ao dizer-se que as medidas apresentadas pelo novo governo são de natureza cosmética e que o que é preciso é promover “reformas a sério”, está-se a disseminar um discurso que reage e mostra desprezo pela mudança induzida pelas políticas públicas. Pôr fim ao monopólio na venda de medicamentos e diminuir o período de férias judiciais é apenas um princípio. E qualquer reformista sabe que, para mudar alguma coisa, se deve começar lenta e gradualmente por algum lado. Assim, ao invocar-se o argumento da futilidade como resposta a estas novas medidas, está-se, entre outras coisas, a recorrer a um discurso que tem uma lógica bloqueadora das tentativas políticas de transformação. No fundo, a um discurso que é inimigo do reformismo consequente, algo que, como é sabido, faz falta em Portugal.
publicado no Diário Económico
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