A parte grátis do programa
Durante a campanha eleitoral, José Sócrates fez uma inteligente gestão do que dizia. A atitude reservada foi prolongada ao período de feitura do governo e, nos últimos dias, transformou-se num inédito blackout extensível a todo o executivo – certamente para fazer face a alguns dislates iniciais e iniciáticos. Até aqui tudo bem. Acontece que a gestão contínua dos silêncios tem o reverso da medalha: aumenta as expectativas face aquilo que se dirá. E não tenhamos dúvidas, depois de uns meses de desvario santanista e de dois anos de erros de Durão, as expectativas dos portugueses são altas. Provavelmente demasiado altas.
Era por isso inevitável que quando o governo apresentasse o seu programa surgisse um coro de críticas. Um coro que aliás teria inevitavelmente vários tons. O daqueles que dizem, “nada de novo”, porque faltam as miríficas reformas; combinado com as vozes dos que afirmam que afinal a ampla maioria eleitoral de esquerda traduziu-se “num programa de direita e de cedência ao capital, ao neo-liberalismo e aos interesses”; e, finalmente, os que aparecem a dizer que, por detrás de umas quantas bravatas, fingindo que se enfrenta os interesses, “nada de relevante sobra”.
A mistura de cinismo com pessimismo, que faz hoje um conjunto hegemónico no país, leva inevitavelmente a que assim seja. O tradicional, e enraízado, nacional-pessimismo convive, nos nossos dias, de perto com o nacional-cinismo, no que é um decisivo obstáculo à mudança e à transformação social em Portugal.
Mas, no meio de tudo isto, fica o programa de governo. E a realidade é que no que a este toca não há pólvora por inventar – além de que o espartilho financeiro e administrativo do Estado é tal que qualquer esperança grandiosa terá, inevitavelmente, de sair frustrada. Deste ou de qualquer outro governo não se podem aguardar, hoje, grandes soluções. O que se pode e deve esperar é a soma de pequenas medidas e de reformas graduais. O problema é que nada disto se compadece com o ritmo da comunicação social e com as expectativas que os media foram alimentando nos portugueses, com colaboração política, é certo. Convém, no entanto, ter presente que uma maioria absoluta serve também para governar ao ritmo imposto pelo governo e não ao ritmo que resulta da pressão da comunicação social.
Para além do mais, dá-se o caso de parte importante do que há a fazer custar muito. Custar muito em termos financeiros e, em muitas situações, não menos em termos políticos. Tal não impede, contudo, que existam também coisas fundamentais que podem ser feitas e que são grátis. Estranhamente, passam os governos e mudam os ministros e muitas delas ficam invariavelmente por fazer.
Qualquer contacto, ainda que mínimo e superficial com a administração pública, revela rapidamente que à cabeça das políticas grátis está a mobilização e a activação dos serviços e dos agentes públicos. O que temos, hoje, em muitos ministérios, é uma administração abúlica, desmotivada, paralisada e esvaziada de conteúdos funcionais úteis. É por isso que se, em lugar da obsessão legisladora e regulamentadora de que têm padecido os sucessivos executivos portugueses, houvesse um investimento simétrico no envolvimento da administração nas tarefas de governação do país, aumentar-se-ia a eficácia e a eficiência do Estado. E isto, convém lembrar, é grátis.
Depois destes três anos, é evidente que há muita legislação que deve ser revista e alterada, dirigentes que devem ser substituídos, orgânicas que necessitam de ser reajustadas e, acima de tudo, prioridades políticas que devem ser reorientadas. No entanto, há uma parte do programa de governo que é grátis e deveria ser implementada. Esta passa por envolver mais a administração na concepção de políticas e principalmente mobilizá-la para a sua aplicação.
Activar os serviços, intensificar a fiscalização e a inspecção e colocar as respostas aos cidadãos no centro das preocupações da administração deveriam ser prioridades políticas. Parece evidente, mas frequentemente não o é. Para que o fosse, era preciso que para além da política, os governantes e os dirigentes estivessem mais preocupados com a gestão das pessoas e da administração. Não tem sido sempre assim e é pena. É que, para além de gratuito, é absolutamente necessário.
publicado em A Capital
Era por isso inevitável que quando o governo apresentasse o seu programa surgisse um coro de críticas. Um coro que aliás teria inevitavelmente vários tons. O daqueles que dizem, “nada de novo”, porque faltam as miríficas reformas; combinado com as vozes dos que afirmam que afinal a ampla maioria eleitoral de esquerda traduziu-se “num programa de direita e de cedência ao capital, ao neo-liberalismo e aos interesses”; e, finalmente, os que aparecem a dizer que, por detrás de umas quantas bravatas, fingindo que se enfrenta os interesses, “nada de relevante sobra”.
A mistura de cinismo com pessimismo, que faz hoje um conjunto hegemónico no país, leva inevitavelmente a que assim seja. O tradicional, e enraízado, nacional-pessimismo convive, nos nossos dias, de perto com o nacional-cinismo, no que é um decisivo obstáculo à mudança e à transformação social em Portugal.
Mas, no meio de tudo isto, fica o programa de governo. E a realidade é que no que a este toca não há pólvora por inventar – além de que o espartilho financeiro e administrativo do Estado é tal que qualquer esperança grandiosa terá, inevitavelmente, de sair frustrada. Deste ou de qualquer outro governo não se podem aguardar, hoje, grandes soluções. O que se pode e deve esperar é a soma de pequenas medidas e de reformas graduais. O problema é que nada disto se compadece com o ritmo da comunicação social e com as expectativas que os media foram alimentando nos portugueses, com colaboração política, é certo. Convém, no entanto, ter presente que uma maioria absoluta serve também para governar ao ritmo imposto pelo governo e não ao ritmo que resulta da pressão da comunicação social.
Para além do mais, dá-se o caso de parte importante do que há a fazer custar muito. Custar muito em termos financeiros e, em muitas situações, não menos em termos políticos. Tal não impede, contudo, que existam também coisas fundamentais que podem ser feitas e que são grátis. Estranhamente, passam os governos e mudam os ministros e muitas delas ficam invariavelmente por fazer.
Qualquer contacto, ainda que mínimo e superficial com a administração pública, revela rapidamente que à cabeça das políticas grátis está a mobilização e a activação dos serviços e dos agentes públicos. O que temos, hoje, em muitos ministérios, é uma administração abúlica, desmotivada, paralisada e esvaziada de conteúdos funcionais úteis. É por isso que se, em lugar da obsessão legisladora e regulamentadora de que têm padecido os sucessivos executivos portugueses, houvesse um investimento simétrico no envolvimento da administração nas tarefas de governação do país, aumentar-se-ia a eficácia e a eficiência do Estado. E isto, convém lembrar, é grátis.
Depois destes três anos, é evidente que há muita legislação que deve ser revista e alterada, dirigentes que devem ser substituídos, orgânicas que necessitam de ser reajustadas e, acima de tudo, prioridades políticas que devem ser reorientadas. No entanto, há uma parte do programa de governo que é grátis e deveria ser implementada. Esta passa por envolver mais a administração na concepção de políticas e principalmente mobilizá-la para a sua aplicação.
Activar os serviços, intensificar a fiscalização e a inspecção e colocar as respostas aos cidadãos no centro das preocupações da administração deveriam ser prioridades políticas. Parece evidente, mas frequentemente não o é. Para que o fosse, era preciso que para além da política, os governantes e os dirigentes estivessem mais preocupados com a gestão das pessoas e da administração. Não tem sido sempre assim e é pena. É que, para além de gratuito, é absolutamente necessário.
publicado em A Capital
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