E o partido, perdoar-lhe-á?
O aspecto mais surpreendente do elenco ministerial que ontem tomou posse não foi nem o número significativo de independentes, nem a presença de Freitas do Amaral. Na verdade, o que mais surpreende no novo governo é este não reflectir os equilíbrios do Partido Socialista e, acima de tudo, não dar o poder desejado aquela que foi a base de apoio interno de José Sócrates. Este facto revela, aliás, que o novo primeiro-ministro interpretou bem os sinais que decorrem da esmagadora votação que os portugueses lhe deram nas últimas eleições.
Na realidade, a presença de um número significativo de independentes no governo não espanta. Era esperada e é, em larga medida, explicada pelo discurso que se generalizou na sociedade portuguesa sobre a necessidade de abrir a acção governativa aos que vêm da sociedade civil – uma entidade meio misteriosa, onde há muita gente capaz e com vontade e disponibilidade para trabalhar, mas onde encontram também albergue muitos dos adesivos e transformistas da nossa praça. Como é sabido, cada vez que muda o governo logo aparecem os recém convertidos, disponíveis para assumirem responsabilidades sem sequer passar o necessário período de nojo. É a vida política portuguesa.
O que não deixa de ser espantoso é que também os políticos tenham incorporado, de modo excessivo, o discurso dos “independentes da sociedade civil”. Ao fazê-lo desvalorizam-se a si próprios, dando legitimidade à dicotomia que os remete para o grupo dos “políticos profissionais” (algo que entre nós é quase um insulto). Convém, aliás, ter presente que praticamente só em Portugal é que existe a figura do independente como a conhecemos. Na maior parte das democracias avançadas a política está entregue, e bem, aos políticos. As razões para que assim seja são muitas. Para consumo interno, bastaria olhar para a história portuguesa para rapidamente nos apercebermos que, em ambos os quadrantes políticos, os melhores ministros foram invariavelmente os ministros políticos. Entre outras coisas porque têm treino e pouca tendência para o dislate e para falar antes e fora do tempo.
Mas enquanto a presença de independentes não surpreende, já o mesmo não se pode dizer da fraca representação da base de apoio interno de José Sócrates. Como é público, José Sócrates é alguém que não vem de fora da política. A sua vida foi legitimamente feita no interior do partido, cimentando-se em cumplicidades e redes de apoio, que naturalmente lhe facilitaram a vida quando chegou o momento de se candidatar a Secretário-Geral.
Contudo, do mesmo modo que ter um conjunto alargado e identificado de apoiantes foi uma alavanca importante para alcançar o poder interno, já o mesmo não pode ser dito do momento do PS se apresentar ao país. Aos olhos dos portugueses, a sua base de apoio era um obstáculo. José Sócrates terá percebido isto. Por isso, cedeu “aos seus” nas listas para os órgãos do partido e nas listas de deputados. Mas não cedeu no que era de facto mais importante, na feitura do governo. Prova disso mesmo é o número reduzido de deputados que foram para o governo. Se nada mais, o que esta opção revela é algo de fundamental: a autonomização do líder por relação aos que o apoiaram internamente. Por força do expressivo resultado eleitoral que alcançou, José Sócrates adquiriu uma notável autonomia, que corporizou no elenco governativo.
O problema é que enquanto com o seu governo, José Sócrates conquista uma importante margem de autonomia face ao partido – um pouco à imagem do que fez Cavaco Silva no início da sua governação –, ao mesmo tempo, o partido que o levou ao poder sentir-se-á descontente e insatisfeito. Resta saber como é que este difícil equilíbrio será gerido. E que ponto será encontrado entre a governamentalização do partido e a autonomia estratégica deste. Uma coisa é certa: do mesmo modo que José Sócrates precisa de consolidar a sua autonomia, e tem-no feito, uma vez no poder, o partido, se quer manter a sua vitalidade, deve também fazê-lo. Conseguir as duas coisas em simultâneo, sem ressentimentos de nenhuma das partes é uma tarefa simultaneamente difícil e necessária.
P.S. Ter posto fim ao ritual meio patético das saudações ao novo governo foi mais uma boa iniciativa de José Sócrates na forma como se apresenta para governar. Era bom que, agora, também muitos dos rituais formais existentes na administração pública – por ex., as suas excelências a propósito de tudo e nada – fossem também eliminados. Dessacralizando o poder onde ele deve ser dessacralizado
publicado em A Capital
Na realidade, a presença de um número significativo de independentes no governo não espanta. Era esperada e é, em larga medida, explicada pelo discurso que se generalizou na sociedade portuguesa sobre a necessidade de abrir a acção governativa aos que vêm da sociedade civil – uma entidade meio misteriosa, onde há muita gente capaz e com vontade e disponibilidade para trabalhar, mas onde encontram também albergue muitos dos adesivos e transformistas da nossa praça. Como é sabido, cada vez que muda o governo logo aparecem os recém convertidos, disponíveis para assumirem responsabilidades sem sequer passar o necessário período de nojo. É a vida política portuguesa.
O que não deixa de ser espantoso é que também os políticos tenham incorporado, de modo excessivo, o discurso dos “independentes da sociedade civil”. Ao fazê-lo desvalorizam-se a si próprios, dando legitimidade à dicotomia que os remete para o grupo dos “políticos profissionais” (algo que entre nós é quase um insulto). Convém, aliás, ter presente que praticamente só em Portugal é que existe a figura do independente como a conhecemos. Na maior parte das democracias avançadas a política está entregue, e bem, aos políticos. As razões para que assim seja são muitas. Para consumo interno, bastaria olhar para a história portuguesa para rapidamente nos apercebermos que, em ambos os quadrantes políticos, os melhores ministros foram invariavelmente os ministros políticos. Entre outras coisas porque têm treino e pouca tendência para o dislate e para falar antes e fora do tempo.
Mas enquanto a presença de independentes não surpreende, já o mesmo não se pode dizer da fraca representação da base de apoio interno de José Sócrates. Como é público, José Sócrates é alguém que não vem de fora da política. A sua vida foi legitimamente feita no interior do partido, cimentando-se em cumplicidades e redes de apoio, que naturalmente lhe facilitaram a vida quando chegou o momento de se candidatar a Secretário-Geral.
Contudo, do mesmo modo que ter um conjunto alargado e identificado de apoiantes foi uma alavanca importante para alcançar o poder interno, já o mesmo não pode ser dito do momento do PS se apresentar ao país. Aos olhos dos portugueses, a sua base de apoio era um obstáculo. José Sócrates terá percebido isto. Por isso, cedeu “aos seus” nas listas para os órgãos do partido e nas listas de deputados. Mas não cedeu no que era de facto mais importante, na feitura do governo. Prova disso mesmo é o número reduzido de deputados que foram para o governo. Se nada mais, o que esta opção revela é algo de fundamental: a autonomização do líder por relação aos que o apoiaram internamente. Por força do expressivo resultado eleitoral que alcançou, José Sócrates adquiriu uma notável autonomia, que corporizou no elenco governativo.
O problema é que enquanto com o seu governo, José Sócrates conquista uma importante margem de autonomia face ao partido – um pouco à imagem do que fez Cavaco Silva no início da sua governação –, ao mesmo tempo, o partido que o levou ao poder sentir-se-á descontente e insatisfeito. Resta saber como é que este difícil equilíbrio será gerido. E que ponto será encontrado entre a governamentalização do partido e a autonomia estratégica deste. Uma coisa é certa: do mesmo modo que José Sócrates precisa de consolidar a sua autonomia, e tem-no feito, uma vez no poder, o partido, se quer manter a sua vitalidade, deve também fazê-lo. Conseguir as duas coisas em simultâneo, sem ressentimentos de nenhuma das partes é uma tarefa simultaneamente difícil e necessária.
P.S. Ter posto fim ao ritual meio patético das saudações ao novo governo foi mais uma boa iniciativa de José Sócrates na forma como se apresenta para governar. Era bom que, agora, também muitos dos rituais formais existentes na administração pública – por ex., as suas excelências a propósito de tudo e nada – fossem também eliminados. Dessacralizando o poder onde ele deve ser dessacralizado
publicado em A Capital
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