domingo, março 27, 2005

Il Trap?

E, de repente, José Mourinho tornou-se a medida de todas as coisas. De tal modo, que até o primeiro-ministro é alvo de comparações com o treinador do Chelsea, supostamente por governar à sua imagem – vá lá saber-se o que é que isso quererá dizer. Acontece que por detrás da relevância mediática do fenómeno Mourinho, esconde-se um pouco da imagem que nós, portugueses, temos e fazemos do país. Um fascínio desmedido pelo sucesso como fim em si e, mais ainda, um embasbacamento paroquial quando este ocorre lá fora, no estrangeiro. Tudo desmedido, como que para revelar a pequenez das nossas ambições costumeiras. Com Mourinho, como com Figo e Cristiano Ronaldo, o problema não está na virtude evidente das suas carreiras e dos seus sucessos, está no modo como olhamos para o que têm feito. Um modo que condensa parte da nossa identidade colectiva. À cabeça, o sucesso como excepção, o deslumbramento face ao estrangeiro e, no caso de Mourinho, uma tolerância excessiva face à arrogância dos vencedores.
A atenção meio obsessiva com os jogadores e treinadores emigrantes não é, aliás, nova. De há uns anos para cá é sempre assim. Não há notícias desportivas que não revelem particular atenção aos portugueses que andam lá fora. Os de sucesso e todos os outros. Por exemplo, um jogador do Paços de Ferreira que tenha a sorte de assinar por um clube de fim da tabela italiano, de uma coisa pode estar certo, passará a ter a sua carreira seguida ao pormenor. Esteja sentado no banco e entre apenas 5 minutos cada dois meses ou jogue com regularidade, isso não deixará de ser alvo de aturado escrutínio na comunicação social portuguesa. Da Bélgica a Itália, passando pela Bulgária, sabemos tudo sobre os emigrantes do nosso futebol.
Dá-se o caso do mesmo não se passar nos países de origem de parte dos imigrantes que jogam entre nós. É que espanhóis, italianos, ingleses, franceses que vão para fora, desaparecem do mapa e o mais provável é ficarem votados ao esquecimento. Claro que isto revela um fenómeno simétrico ao nosso. Se nós temos um fascínio desproporcionado face ao estrangeiro, estes países têm, na mesma medida, um desprezo enorme pelo que se passa fora das suas fronteiras.
Ora, como é sabido, benfiquista emigrado sofre com o seu clube ainda mais do que quando em Portugal e, naturalmente, anseia por ver os golos, as imagens. Mas, a verdade é que, mesmo com treinador italiano, em Itália, do Benfica pouco se sabe e nada se vê. Nem os sucessos do Trap servem. Pense-se no que se passaria se fosse ao contrário.
É esse desconhecimento que tem feito com que, não raras vezes, me tenham perguntado: “il Trap, cosa sta faccendo?” Confesso que nunca sei bem o que responder. O que dizer a um amigo italiano que sabe que o Trap é treinador do meu clube? Fico invariavelmente confuso e desconfortável. Bem, o Trap – e isso eles sabem – é o Trap. Joga com a tracção toda a trás, é conservador, tem as suas fixações particulares e um conjunto de idiossincrasias relativamente exuberantes (à cabeça, o comportamento incomum no banco, sempre a falar com os suplentes, explicando-lhes não se sabe bem o quê). É um treinador de outro tempo. Mas, na realidade, que no futebol é o que conta, com o Trap, o Benfica leva uma inusitada vantagem no campeonato.
Tento, por isso, explicar que, ao contrário das últimas temporadas, temos estado sempre a disputar o título – sim, mesmo contra o Porto, que é a única coisa futebolisticamente relevante além fronteiras. Mas, acrescento que o Benfica joga um futebol deprimente, medroso e que nas competições europeias tivemos uma prestação miserável. Claro que a equipa é curta, com alguns jogadores medíocres. Mas que, no essencial, joga mal, ainda que vá vencendo e vá em primeiro.
Em fins de Março, a oito jornadas do fim, em primeiro lugar com seis pontos de avanço, continuo sem saber o que dizer do Trap. Se calhar, também eu padeço dos males nacionais e olho para tudo no futebol à imagem de Mourinho. Queria um Benfica hegemónico, arrogante, autoritário e a jogar bom futebol. Provavelmente, ambições ultrapassadas e fora do tempo, paradoxalmente um pouco à imagem do italiano. Pelo que o melhor que tenho a fazer é dizer aos meus amigos que estamos agradecidos ao Trap, quanto mais não seja por ter trazido o enebriante cheiro a título, ainda que condimentado com o estilo Mortimore. Ou porventura é, apenas, o Trap que tem de agradecer as borlas ao Porto e ao Sporting. Mas o italiano, que do futebol conhece muito, sabe certamente que as vitórias dependem muito do fracasso dos outros. Excepção feita a José Mourinho, claro.

publicado em A Capital