terça-feira, fevereiro 21, 2006

um ano depois

Passou ontem um ano desde as eleições legislativas. Aproximadamente um quarto da legislatura cumprido, já há uma ideia clara da identidade do actual Governo. Na política não há segundas oportunidades para criar uma primeira impressão e a imagem do executivo de José Sócrates está, no essencial, definida. Vale a pena, a este propósito, identificar três dos seus principais aspectos positivos (estabilidade, credibilidade e reformismo), bem como três das suas principais fragilidades (promessas eleitorais, incoerência nos discursos, relação com o PS).

Uma das características deste Governo é a estabilidade. Estabilidade que se reflecte numa postura de maior discrição face à comunicação social, mas que tem como principal virtude ter aumentado a capacidade institucional do executivo e por arrasto da administração. Um governo que alimenta menos casos nos media e que, independentemente da opinião que possamos ter sobre o conteúdo das políticas, concentra o essencial da sua energia na governação, tem maior potencial de mobilização dos actores em torno da sua agenda. Como bem perceberam os portugueses há um ano, a estabilidade política é um bem em si.

A credibilidade do actual executivo resulta da estabilidade, mas também de uma aposta na confiança. Face a uma situação financeira, económica e social muito frágil, a margem de manobra do executivo passa por criar condições objectivas e, em importante medida, subjectivas para que os agentes económicos invistam. Mesmo com os indicadores de conjuntura a persistirem nos sinais negativos, algo pode estar a mudar. Alguns exemplos simbólicos de atracção de investimento estrangeiro, bem como a OPA da Sonae sobre a PT são já consequência de um discurso de confiança do primeiro-ministro, com impacto na mudança das condições subjectivas.

Se estes dois aspectos formam o contexto, a atitude reformista tem ajudado à diferenciação face à anterior experiência governativa do PS. Se havia risco que José Sócrates corria, era o de ser visto como uma versão revista de António Guterres. Pouco tempo bastou para que tal imagem fosse afastada. A vontade reformista, sem olhar a grandes tacticismos, é a imagem de marca deste Governo.

Mas, na economia da governação, têm existido pontos de enorme fragilidade.

Antes de mais, a quebra de algumas promessas eleitorais. Numa altura em que a descredibilização da classe política é muito acentuada, nada pior do que dizer uma coisa em campanha e fazer uma outra após as eleições. O exemplo mais acabado disso mesmo foi o aumento do IVA. Com a quebra desta promessa foi dada mais uma machadada na já muito frágil imagem da classe política.

Depois, a descoordenação entre o discurso acertadamente minimalista do primeiro-ministro e algumas intervenções avulsas e estrategicamente improdutivas de alguns ministros. Só nas últimas semanas é possível identificar três casos disto mesmo: quando o ministro Teixeira dos Santos falou na ruptura da segurança social; quando o ministro Freitas do Amaral resolveu fazer doutrina sobre a crise dos ‘cartoons’; ou quando o ministro Correia de Campos pretendeu inovar em relação ao financiamento do sistema de saúde. Em nenhum dos casos se consegue vislumbrar qualquer vantagem para a agenda reformista do executivo, nem para os ministros que proferiram as declarações. Três exemplos de ruído que têm perturbado as prioridades definidas pelo primeiro-ministro.

Finalmente, a relação com o partido. Não é novidade, sempre que o PS vai para o Governo, a gestão do partido é secundarizada.
Os resultados desta opção são já conhecidos: uma derrota eleitoral nas autárquicas e uma gestão desastrosa do ‘dossier’ presidenciais. Esta opção produz, contudo, danos colaterais de maior alcance. Os partidos são essenciais para a intermediação entre governo e a base social que os sustenta. Quando a gestão dessa intermediação falha, é também a própria capacidade de acção do governo que sai fragilizada.

É verdade que a questão central quando os portugueses voltarem a votar em eleições legislativas será a retoma económica. Mas convém ter presente que sendo o crescimento económico o alfa e o ómega do sucesso governativo, aquele não é independente de nenhuma destas virtudes, nem destas fraquezas.

publicado no Diário Económico

terça-feira, fevereiro 07, 2006

o mimetismo do PSD

Enquanto se vai reforçando a descredibilização dos partidos, estes procuram ir fazendo alguma coisa na sua organização para inverter a tendência. Pouco e de modo silencioso, mas ainda assim relevante. Foi o que aconteceu quando o PS, após a derrota eleitoral de Março de 2002, alterou os seus estatutos e reviu a sua declaração de princípios. É o que acontece agora, quatro anos depois, no PSD, quando marca um congresso com objectivos muito semelhantes.

Vale a pena atentar no conjunto de propostas que a direcção de Marques Mendes apresentou, bem como as reacções que rapidamente se fizeram sentir. Não apenas porque as propostas são semelhantes às que então o PS aprovou, mas, essencialmente, porque o modo como foram recebidas foi análogo ao que ocorreu entre os socialistas. Estes factos não desmerecem o propósito de Marques Mendes. São antes reveladores de muitos dos dilemas e bloqueios que enfrenta a mudança dos partidos políticos.

Antes de mais as eleições directas. Há, a este propósito, um problema de comparação. Após as últimas eleições internas do PS, dificilmente alguém pode aspirar a ter uma liderança forte num partido político do arco da governabilidade sem ser eleito directamente. Desse ponto de vista, Marques Mendes tem razão: o líder do maior partido da oposição ganha em reforçar a sua legitimidade interna e não há nenhuma razão, para além do mero tacticismo político, que justifique o adiamento dessa opção.

Mas, acima de tudo, o aumento do valor das quotas e o seu pagamento directo pelos militantes. Um estranho à vida partidária terá a tendência para olhar com cepticismo para este debate. Dá-se, contudo, o caso de nele assentar uma parte importante dos mecanismos de reprodução de poder interno nos partidos. A discussão sobre de que forma as quotas devem ser pagas é um excelente observatório dos males dos partidos e da forma como estes podem ser ultrapassados.

Quando se fala do pagamento obrigatório e feito directamente pelos militantes das quotas partidárias, está-se a colocar em causa o poder daqueles que pagando quotas de terceiros (ou em muitos casos, fingindo pagar) decidem quem é militante e quem tem possibilidade de eleger para as estruturas partidárias. Como se calcula, as quotas pagas generosamente pelos caciques locais são, a um tempo, um mecanismo de fechamento dos partidos e de perpetuação de lógicas perversas de poder interno. Se os x militantes existentes chegam para manter uma determinada estrutura de poder, porque razão abrir a porta a novos militantes não “controlados”? É que a equação é simples: quem paga quotas é eleito e quem é eleito passa a ter mais recursos para pagar quotas.

Não por acaso, quando agora o PSD procura credibilizar a militância partidária, logo surgem vozes a reagir a esta opção. Curiosamente, as reacções são miméticas às que se ouviram no PS. Nos dois casos, sob o argumento de que com os novos regimes de quotizações se corre o risco de afastar da militância partidária aqueles que têm menos recursos, esconde-se o desconforto crescente daqueles que cimentam o seu poder em mecanismos de generosidade interessada.

Há também um problema com o contexto. Quer PS, quer PSD demonstraram vontade de mudar os estatutos quando na oposição. Uma vez no poder e com mais capital para promover reformas internas, paradoxalmente desinvestem na mudança. É um erro porque o exercício de uma governação reformista requer sustentação em partidos políticos modernos. Mas é-o, acima de tudo, porque a imagem das estruturas partidárias aos olhos de quem está de fora tem-se degradado de tal modo que se os partidos nada fizerem, os cidadãos encarregar-se-ão de fazer alguma coisa. Os resultados das presidenciais continuam aí para mostrar que assim é.

Por estranho que possa parecer, pôr termo às manigâncias no pagamento das quotas é um passo com um alcance maior do que aparenta e faz mais pela credibilização dos partidos do que uma mão-cheia de discursos abstractos sobre cidadania e participação. É que a regeneração da vida política ou se faz nos partidos ou não se faz.
publicado no Diário Económico.