quarta-feira, junho 25, 2008

Uma nova cultura negocial

Há em Portugal uma tradição para olhar para exemplos estrangeiros quando se discute a modernização da nossa economia. O problema é que enquanto olhamos para os paradigmas de sucesso esquecemos, por um lado, que a transferência de soluções quando é cega às especificidades nacionais é má conselheira e, por outro, que todos os processos de mudança consequentes assentaram em pactos sociais e numa forte propensão para a negociação da parte dos parceiros sociais. Duas características fracamente presentes em Portugal.

A revisão da legislação laboral não é a solução para todas as dificuldades que enfrenta a economia portuguesa. Mas se for um contributo para promover uma cultura negocial aos vários níveis pode ser um auxiliar poderoso.

Acontece que o processo negocial a que temos assistido tem revelado os bloqueios de sempre: intransigência das posições negociais de partida e um movimento de condicionamento da concertação por parte dos partidos e vice-versa.

Enquanto o Governo mostrou abertura negocial, recuando face ao que era a sua posição inicial, o mesmo não se pode dizer do parceiro sindical mais representativo [CGTP] que, como tende a acontecer, se mostrou indisponível para fazer parte da solução. Simultaneamente, no Parlamento, os partidos à esquerda colocaram uma pressão inaceitável sobre o movimento sindical, condicionando a sua autonomia, designadamente ao fazer a distinção entre sindicatos pouco sérios (os que negoceiam) e os outros. Entretanto, verdade seja dita, também o Governo usa a possibilidade de acordo para condicionar a acção parlamentar dos partidos à direita: com a CIP e a UGT a apoiar a proposta do Governo é difícil que PSD assuma uma postura crítica.

No fim, o que fica é o espectro de baixa efectividade que paira sobre o diálogo social em Portugal, designadamente se considerarmos a fraca articulação entre os níveis de negociação (por exemplo, entre os acordos tripartidos e a contratação colectiva). A revisão do código do trabalho é mais uma prova de que Portugal precisa de disseminar uma cultura negocial, mas também um exemplo de que esse objectivo depende excessivamente do voluntarismo do Governo do momento.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 24, 2008

A estratégia de silêncio

No congresso deste fim-de-semana, o PSD tinha todas as condições para se afirmar como alternativa. Pela primeira vez em três anos, o Governo tem tido sérias dificuldades em liderar a agenda política (ao mesmo tempo que dá sinais de algum desnorte estratégico, como aconteceu, por exemplo, com o ‘lock-out’ dos camionistas), o descontentamento social atinge níveis muito significativos, atravessando todos os grupos profissionais e a conjuntura económica internacional tem levado a um arrefecimento da economia portuguesa que o executivo resistiu a reconhecer. Para além do mais, com a eleição de Ferreira Leite, o PSD chegava ao congresso com uma resposta forte ao principal problema que o partido havia enfrentado nos últimos meses: a falta de credibilidade. Acontece que, mesmo perante um contexto altamente favorável, o congresso de Guimarães foi uma oportunidade perdida para a afirmação interna da nova liderança e, consequentemente, para a capacidade do PSD em se afirmar como alternativa ao actual Governo.

Tal como havia acontecido na campanha interna, Ferreira Leite apostou tudo numa estratégia de silêncio, em que fala o menos possível. Nas eleições internas, a ausência de discurso político ajudou a fazer com que a candidata invencível – que, à partida, traria atrás de si todo um partido sedento de virar a página de instabilidade associada às lideranças anteriores – terminasse com uma pequeníssima vantagem perante os seus adversários. No congresso, essa estratégia teve consequências: ao mesmo tempo que provocou torpor e agravou o fosso afectivo entre a líder e o conjunto do partido, ajudou a dar lastro à ideia de que o PSD de Ferreira Leite não é uma alternativa ao Governo de Sócrates, mas, sim, ou uma solução de alternância ou uma promessa de ‘bloco central’.

Os silêncios de facto – basta recordar que durante o Sábado, o dia nobre do congresso, Ferreira Leite não usou da palavra – e os silêncios das entrelinhas nas suas intervenções, dão margem para todas as interpretações. Por um lado, sugerem que o programa político do PSD assenta na expectativa que a popularidade do Governo se desgaste e que isso seja suficiente para os portugueses se virarem para o maior partido da oposição; por outro, podem indiciar que não sendo apresentadas nenhumas linhas programáticas, ainda que genéricas, o que o PSD tem é um “programa escondido”, que não revela com temor de, em lugar de capitalizar o descontentamento social, afastar os eleitores.

Mas a estratégia de silêncio seguida por Ferreira Leite tem consequências que vão para além da capacidade de se diferenciar face ao PS ou da sua afirmação interna no PSD.

Ao não dizer nada que em questões essenciais diferencie o seu projecto do do PS de Sócrates e ao sugerir que a sua diferença reside na credibilidade e na sua personalidade, Ferreira Leite está, certamente de modo involuntário, a abrir as portas a uma deriva populista. Isto porque ao consolidar a indiferenciação entre PS e PSD dá um contributo para que se dissemine – ainda mais – a ideia que nada distingue os dois partidos para além da vontade de ir alternando no poder para beneficiar da ocupação do aparelho de Estado. Simultaneamente, remete a avaliação de projectos políticos para categorias politicamente neutras como seja o carácter, o rigor ou a credibilidade. É por isso que a nova forma de fazer política que Ferreira Leite e os seus apoiantes mais próximos tanto afirmam, nada contribui para a melhoria da qualidade da democracia portuguesa, pelo menos enquanto não for combinada com alguma definição programática.

O que o país manifestamente precisa é de mais política, assente em clivagens claras e organizada por princípios agregadores, de modo a contrariar a descrença na capacidade das alternativas político-partidárias em responder de modo diferente aos problemas económicos e sociais que a sociedade sente. O que Ferreira Leite tem para oferecer é menos política e mais indiferenciação ideológica. Entretanto, enquanto prossegue a estratégia de silêncio, o PSD de Ferreira Leite está a criar incentivos para que o sistema partidário português evite a clarificação ideológica: um contexto que tem servido instrumentalmente também ao PS mas que ajuda a aumentar o desinteresse face ao sistema e a desafectação dos cidadãos perante os partidos políticos.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 17, 2008

A vulnerabilidade do Estado

Foi com surpresa que, na sequência do ‘lock-out’ dos camionistas da semana passada, se ouviu o primeiro-ministro no Parlamento reconhecer que tinha sentido o Estado vulnerável. De facto, se aceitarmos uma definição minimalista segundo a qual o Estado se caracteriza por deter o monopólio da violência legítima, então, perante o bloqueio ilegal a que o país assistiu, podemos concluir que o Estado se revelou incapaz de desempenhar com eficácia essa função elementar. Acontece que o Estado não é mais ou menos vulnerável apenas considerando a tibieza com que exerce a violência legítima. O modo como se relaciona com os interesses organizados na sociedade é também determinante para perceber a sua robustez e, quanto a esta dimensão, há bons motivos para nos preocuparmos. Aliás, bem mais do que os que existem se nos limitarmos a olhar para a actuação policial perante o bloqueio dos camionistas.

Numa tendência que não é apenas nacional, assiste-se cada vez mais a uma fragmentação da representação de interesses e a uma incapacidade dos mecanismos tradicionais de organização dos mesmos para desempenharem as suas funções (partidos, sindicatos, associações patronais). O problema não é apenas o Estado não conseguir satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto ao modo como gere os recursos dos impostos, é também a crescente incapacidade da sociedade para encontrar formas de se representar organicamente. Dois acontecimentos políticos da última semana, um internacional e outro nacional, são disso exemplo: o chumbo do Tratado de Lisboa no referendo irlandês e, claro, os protestos dos camionistas.

Esqueçamos por um momento as razões por detrás do não irlandês ou as reivindicações dos camionistas. Aquilo que surpreende em ambos os casos é a natureza “espontânea” e fracamente organizada como estas formas de contestação se expressaram.

Uma das singularidades do sistema político irlandês é a irrelevância do eixo esquerda-direita na formação do seu sistema partidário, combinada com uma quase total ausência de partidos nos extremos do espectro político. Os dois maiores partidos são centristas e representam cerca de 70% do eleitorado. No referendo, ambos apoiavam o voto no sim, sendo acompanhados nessa posição pela quase totalidade dos partidos com representação parlamentar (com excepção do Sinn Féin, que tem quatro lugares no parlamento). Ainda assim, o não ganhou com uma campanha liderada por um empresário, até então, desconhecido.

Também na semana passada, enquanto os piquetes de camionistas bloqueavam o país, o Governo negociava com a ANTRAM (a associação patronal “representativa” das empresas de camionagem). Mas os sinais de que esta associação tinha pouca capacidade para impor um acordo aos camionistas foram evidentes. Aliás, algo de semelhante havia já acontecido no sector da educação. Após a manifestação dos professores em Lisboa, um dos motivos que terá levado a FENPROF a chegar a acordo com o Ministério da Educação foi o receio do sindicato mais representativo dos professores em perder a liderança dos protestos para os movimentos espontâneos, fracamente organizados e com pouca integração. Continuar a contestação poderia fragilizar as estruturas tradicionais de representação sindical.

O que estes dois casos revelam é que a desintegração da representação de interesses e o seu carácter cada vez menos orgânico é uma tendência que veio para ficar. Hoje já não é apenas o Estado que está vulnerável ou que aparenta sofrer uma crise de legitimidade, são também os mecanismos tradicionais de organização da sociedade que parecem não dizer nada a ninguém. Os camionistas que bloqueiam o país ou os irlandeses que votam não ao referendo estão a protestar contra o Governo e o Estado, mas, também, contra os que, aparentando representá-los, de facto não o fazem. Esta tendência é um espectro que paira sobre as sociedades modernas e que torna todas as instituições, sem excepção, muito vulneráveis.

Os sinais de que as nossas sociedades estão hoje dominadas por comportamentos anómicos, nos quais as formas tradicionais de integração social entram em ruptura, são evidentes. Serve este exemplo para recordar que é responsabilidade do Estado promover formas democráticas e orgânicas de representação dos interesses sociais e não atacar as poucas que ainda assim vão existindo, nomeadamente os sindicatos. É que, convém não esquecer, nos nossos dias, o que torna verdadeiramente vulnerável o Estado não é a incapacidade de exercer a violência legítima, mas, sim, a ausência de interlocutores com quem dialogar com eficácia e de forma institucionalizada. Quando ninguém se sentir representado, não vai servir de muito repor a ordem.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 03, 2008

Uma página pesada

No discurso de vitória, Manuela Ferreira Leite afirmou que, este fim-de-semana, o PSD começava a virar a página. O problema é que se trata de uma página bem pesada, que necessita de muita energia para ser virada.

É evidente que parte do peso que o PSD carrega sobre os seus ombros é fruto da imagem de ingovernabilidade que se colou ao partido com Santana Lopes, que foi consolidada, já com Marques Mendes, com o episódio que levou à derrocada da Câmara de Lisboa, e que se cristalizou nos meses surreais de liderança de Menezes. Contudo, quem pense que, ultrapassados estes problemas, o PSD é de novo um partido eleitoralmente competitivo está enganado. Enquanto não for feita uma avaliação do que correu mal na governação PSD/CDS, as dificuldades manter-se-ão. Foi Santana Lopes que colocou o PSD quase em mínimos históricos, mas convém não esquecer que o essencial da impopularidade já vinha de trás e que, antes do exílio bruxelense, já Durão e Portas, sob a influência da ministra das Finanças de então, tinham tido um resultado eleitoral deplorável nas europeias.

Se é verdade que a vitória de Ferreira Leite, pela imagem que a nova líder foi cultivando ao longo da sua carreira, é, por si só, suficiente para resolver o problema da credibilidade, o mesmo já não é válido para ultrapassar as sequelas da experiência governativa recente. Ferreira Leite como ministra das Finanças não só falhou na consolidação orçamental como contaminou o Governo com a sua imagem de austeridade. Uma imagem que limitou claramente a capacidade do Governo Durão/Portas de combinar esforço de consolidação com capacidade reformista noutras áreas das políticas públicas. Falhando no défice, não conseguindo mudar nada de relevante, deixando-se envolver em bravatas ideológicas inconsequentes (desde o Código do Trabalho de Bagão às homenagens bacocas a Maggiolo Gouveia) e com o descontentamento social sempre crescente, era muito difícil que, independentemente de Santana Lopes, os resultados eleitorais não fossem maus.

Mas entretanto, o contexto mudou e não é muito difícil prever que as próximas legislativas não vão ser marcadas, como as duas anteriores, pelo tema dos desequilíbrios orçamentais, mas, sim, pela resposta às desigualdades acumuladas.

O problema é que Ferreira Leite não se adequa bem ao novo contexto – coisa aliás de que 60% dos militantes do PSD se aperceberam. Pela imagem de austeridade e credibilidade, terá sempre muitas dificuldades em reconverter-se em alguém com preocupações sociais ou, ainda mais, com capacidade para lhes dar resposta. Na política, costuma dizer-se, não há segundas oportunidades para mudar uma primeira imagem. Desse ponto de vista, podemos estar a entrar num ciclo em que quer PS, quer PSD têm líderes que não são os mais adequados para responder aos anseios dos eleitores. E aí, o que pode vir a fazer a diferença são as marcas partidárias, a forma como os portugueses percepcionam o PS e o PSD.

Há uma hipótese da sociologia eleitoral que tem revelado assinalável potencial explicativo e que nos diz que os eleitores sabem distinguir os partidos em função das suas prioridades e que, em períodos de maior desemprego e crise social, votarão mais à esquerda e em períodos de maior inflação e dificuldades financeiras, votarão mais à direita. Esta hipótese, aliás, ajuda a compreender que todas as sondagens mais recentes apontem para que o conjunto de partidos à esquerda tenha perto de 60% das intenções de voto. Mas a ser verdade, implica também uma profunda reconfiguração do espaço onde se vai disputar a possibilidade de vitória nas próximas eleições.

Com os temas sociais no topo da agenda, os partidos de esquerda serão mais competitivos e os de direita terão dificuldade em vestir uma roupa que não é percepcionada como sendo a sua. Mas enquanto Ferreira Leite tem uma página bem pesada para virar, José Sócrates tem à sua frente um desafio não menos difícil – recentrar a agenda política do PS nos temas sociais. Com a nova liderança do PSD, os incentivos para que tal aconteça são evidentes: ao contrário do passado recente, as margens de crescimento ao centro-direita passam a ser curtas e a imagem da ministra das Finanças Ferreira Leite pode funcionar como um tónico para que o eleitorado hoje desagradado com o Governo, visualizando um “perigo” efectivo do regresso da direita, se sinta mais tentado a voltar ao espaço socialista.

publicado no Diário Económico.