A vulnerabilidade do Estado
Foi com surpresa que, na sequência do ‘lock-out’ dos camionistas da semana passada, se ouviu o primeiro-ministro no Parlamento reconhecer que tinha sentido o Estado vulnerável. De facto, se aceitarmos uma definição minimalista segundo a qual o Estado se caracteriza por deter o monopólio da violência legítima, então, perante o bloqueio ilegal a que o país assistiu, podemos concluir que o Estado se revelou incapaz de desempenhar com eficácia essa função elementar. Acontece que o Estado não é mais ou menos vulnerável apenas considerando a tibieza com que exerce a violência legítima. O modo como se relaciona com os interesses organizados na sociedade é também determinante para perceber a sua robustez e, quanto a esta dimensão, há bons motivos para nos preocuparmos. Aliás, bem mais do que os que existem se nos limitarmos a olhar para a actuação policial perante o bloqueio dos camionistas.
Numa tendência que não é apenas nacional, assiste-se cada vez mais a uma fragmentação da representação de interesses e a uma incapacidade dos mecanismos tradicionais de organização dos mesmos para desempenharem as suas funções (partidos, sindicatos, associações patronais). O problema não é apenas o Estado não conseguir satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto ao modo como gere os recursos dos impostos, é também a crescente incapacidade da sociedade para encontrar formas de se representar organicamente. Dois acontecimentos políticos da última semana, um internacional e outro nacional, são disso exemplo: o chumbo do Tratado de Lisboa no referendo irlandês e, claro, os protestos dos camionistas.
Esqueçamos por um momento as razões por detrás do não irlandês ou as reivindicações dos camionistas. Aquilo que surpreende em ambos os casos é a natureza “espontânea” e fracamente organizada como estas formas de contestação se expressaram.
Uma das singularidades do sistema político irlandês é a irrelevância do eixo esquerda-direita na formação do seu sistema partidário, combinada com uma quase total ausência de partidos nos extremos do espectro político. Os dois maiores partidos são centristas e representam cerca de 70% do eleitorado. No referendo, ambos apoiavam o voto no sim, sendo acompanhados nessa posição pela quase totalidade dos partidos com representação parlamentar (com excepção do Sinn Féin, que tem quatro lugares no parlamento). Ainda assim, o não ganhou com uma campanha liderada por um empresário, até então, desconhecido.
Também na semana passada, enquanto os piquetes de camionistas bloqueavam o país, o Governo negociava com a ANTRAM (a associação patronal “representativa” das empresas de camionagem). Mas os sinais de que esta associação tinha pouca capacidade para impor um acordo aos camionistas foram evidentes. Aliás, algo de semelhante havia já acontecido no sector da educação. Após a manifestação dos professores em Lisboa, um dos motivos que terá levado a FENPROF a chegar a acordo com o Ministério da Educação foi o receio do sindicato mais representativo dos professores em perder a liderança dos protestos para os movimentos espontâneos, fracamente organizados e com pouca integração. Continuar a contestação poderia fragilizar as estruturas tradicionais de representação sindical.
O que estes dois casos revelam é que a desintegração da representação de interesses e o seu carácter cada vez menos orgânico é uma tendência que veio para ficar. Hoje já não é apenas o Estado que está vulnerável ou que aparenta sofrer uma crise de legitimidade, são também os mecanismos tradicionais de organização da sociedade que parecem não dizer nada a ninguém. Os camionistas que bloqueiam o país ou os irlandeses que votam não ao referendo estão a protestar contra o Governo e o Estado, mas, também, contra os que, aparentando representá-los, de facto não o fazem. Esta tendência é um espectro que paira sobre as sociedades modernas e que torna todas as instituições, sem excepção, muito vulneráveis.
Os sinais de que as nossas sociedades estão hoje dominadas por comportamentos anómicos, nos quais as formas tradicionais de integração social entram em ruptura, são evidentes. Serve este exemplo para recordar que é responsabilidade do Estado promover formas democráticas e orgânicas de representação dos interesses sociais e não atacar as poucas que ainda assim vão existindo, nomeadamente os sindicatos. É que, convém não esquecer, nos nossos dias, o que torna verdadeiramente vulnerável o Estado não é a incapacidade de exercer a violência legítima, mas, sim, a ausência de interlocutores com quem dialogar com eficácia e de forma institucionalizada. Quando ninguém se sentir representado, não vai servir de muito repor a ordem.
publicado no Diário Económico.
Numa tendência que não é apenas nacional, assiste-se cada vez mais a uma fragmentação da representação de interesses e a uma incapacidade dos mecanismos tradicionais de organização dos mesmos para desempenharem as suas funções (partidos, sindicatos, associações patronais). O problema não é apenas o Estado não conseguir satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto ao modo como gere os recursos dos impostos, é também a crescente incapacidade da sociedade para encontrar formas de se representar organicamente. Dois acontecimentos políticos da última semana, um internacional e outro nacional, são disso exemplo: o chumbo do Tratado de Lisboa no referendo irlandês e, claro, os protestos dos camionistas.
Esqueçamos por um momento as razões por detrás do não irlandês ou as reivindicações dos camionistas. Aquilo que surpreende em ambos os casos é a natureza “espontânea” e fracamente organizada como estas formas de contestação se expressaram.
Uma das singularidades do sistema político irlandês é a irrelevância do eixo esquerda-direita na formação do seu sistema partidário, combinada com uma quase total ausência de partidos nos extremos do espectro político. Os dois maiores partidos são centristas e representam cerca de 70% do eleitorado. No referendo, ambos apoiavam o voto no sim, sendo acompanhados nessa posição pela quase totalidade dos partidos com representação parlamentar (com excepção do Sinn Féin, que tem quatro lugares no parlamento). Ainda assim, o não ganhou com uma campanha liderada por um empresário, até então, desconhecido.
Também na semana passada, enquanto os piquetes de camionistas bloqueavam o país, o Governo negociava com a ANTRAM (a associação patronal “representativa” das empresas de camionagem). Mas os sinais de que esta associação tinha pouca capacidade para impor um acordo aos camionistas foram evidentes. Aliás, algo de semelhante havia já acontecido no sector da educação. Após a manifestação dos professores em Lisboa, um dos motivos que terá levado a FENPROF a chegar a acordo com o Ministério da Educação foi o receio do sindicato mais representativo dos professores em perder a liderança dos protestos para os movimentos espontâneos, fracamente organizados e com pouca integração. Continuar a contestação poderia fragilizar as estruturas tradicionais de representação sindical.
O que estes dois casos revelam é que a desintegração da representação de interesses e o seu carácter cada vez menos orgânico é uma tendência que veio para ficar. Hoje já não é apenas o Estado que está vulnerável ou que aparenta sofrer uma crise de legitimidade, são também os mecanismos tradicionais de organização da sociedade que parecem não dizer nada a ninguém. Os camionistas que bloqueiam o país ou os irlandeses que votam não ao referendo estão a protestar contra o Governo e o Estado, mas, também, contra os que, aparentando representá-los, de facto não o fazem. Esta tendência é um espectro que paira sobre as sociedades modernas e que torna todas as instituições, sem excepção, muito vulneráveis.
Os sinais de que as nossas sociedades estão hoje dominadas por comportamentos anómicos, nos quais as formas tradicionais de integração social entram em ruptura, são evidentes. Serve este exemplo para recordar que é responsabilidade do Estado promover formas democráticas e orgânicas de representação dos interesses sociais e não atacar as poucas que ainda assim vão existindo, nomeadamente os sindicatos. É que, convém não esquecer, nos nossos dias, o que torna verdadeiramente vulnerável o Estado não é a incapacidade de exercer a violência legítima, mas, sim, a ausência de interlocutores com quem dialogar com eficácia e de forma institucionalizada. Quando ninguém se sentir representado, não vai servir de muito repor a ordem.
publicado no Diário Económico.
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