O abraço do Zenit
Na semana que passou, o Zenit de São Petersburgo venceu a final da Taça UEFA. Apesar da perda de relevância desta competição, quem deu por isso, não pode deixar de se ter interrogado sobre de onde vinha este clube, até então desconhecido e sem curriculum. A um olhar mais atento não passou despercebido o patrocínio nas camisolas: Gazprom, essa espécie de Leviatã que paira sobre o Estado russo. A explicação só poderia estar aí. O Zenit é hoje propriedade da Gazprom e o clube mais rico da Rússia, com um investimento nos últimos anos que ultrapassou os cem milhões de dólares.
O futebol, é sabido, é não só um bom tema para observar alguns aspectos essenciais da natureza humana, como também tem servido para antecipar conflitos entre países, tendo sido nalguns casos um rastilho que levou à fragmentação de nações. Mas o futebol é também um bom observatório das economias políticas. Muitas das vezes, e exceptuando os colossos europeus, o que explica a pujança de um determinado clube, num determinado período, tem a ver com o modo como uma cidade ou uma região fazem reflectir o sucesso do seu padrão de especialização em êxito do seu clube de futebol. O exemplo mais conhecido deste fenómeno é o de St. Étienne. Até meados da década de oitenta, a cidade ficou conhecida como sendo uma ‘company town’, dependente de um sector industrial (o aço), a partir do qual se desenvolveram um sem número de PME. Durante muitos anos, a cidade francesa ficou conhecida pela sua tradição industrial, pela cultura operária e, claro, pelo seu clube de futebol liderado por Platini. Depois, a região entrou em depressão económica e com esta foi-se a pujança desportiva do St. Étienne.
A vitória do Zenit está aí para revelar como por detrás de resultados desportivos improváveis se esconde inevitavelmente um sucesso económico. Acontece que as consequências para o conjunto da Europa da ascensão da indústria do aço francesa no passado são bem menores do que os que resultam do poderio quase hegemónico da Gazprom hoje.
No ano passado, a Gazprom produziu 20% do gás mundial e 25% do da União Europeia, sendo detentora de 16% das reservas mundiais. Estes valores fazem da empresa a maior do mundo no sector. Para além do mais, a empresa russa tem-se expandido, tendo adquirido importantes participações em petrolíferas, que levam a que hoje as suas reservas combinadas só sejam ultrapassadas pelas de dois Estados (a Arábia Saudita e o Irão). Tudo isto faz da Gazprom a terceira maior empresa mundial em termos de valor das suas acções.
Até aqui, pese embora a propensão da Gazprom para o controlo quase monopolístico do mercado, pelo menos em algumas regiões, a verdade é que poderíamos supor tratar-se de uma empresa a operar no mercado e a fazer-se valer da riqueza natural da Rússia. Mas infelizmente não é assim. A Gazprom é o paradigma da promiscuidade entre interesses privados e poder político na Rússia de hoje. Os recursos naturais são o cimento dessa relação.
O exemplo mais acabado disto mesmo foi a dança de cadeiras a que se assistiu recentemente na Rússia. Enquanto Vladimir Putin passou a primeiro-ministro, Dmitri Medved, antigo ‘chairman’ da Gazprom e ex-PM, ocupou o lugar de presidente. Nisto a Gazprom passou a ser presidida pelo anterior PM, Viktor Zubkov. Tudo em família portanto.
O problema é que esta família, conhecida pelo seu respeito pelo Estado de Direito e pelos mais elementares princípios do liberalismo político, se prepara para criar condições para aplicar ao conjunto da Europa a receita que tem aplicado à sua vizinha Ucrânia. Fazer aumentar a dependência energética para níveis que levarão a que, num tempo não muito distante, as tentativas da União Soviética para contaminar politicamente a Europa por força do seu poderio militar passem a parecer brincadeiras pueris, nomeadamente quando comparadas com o complexo político-energético que está hoje a ser construído. Como lembrava Paulo Pedroso no ‘blogue’ ocanhoto, “enquanto a Europa parece preocupada com o hipotético poderio chinês do futuro, baseado em brinquedos e vestuário, a Rússia vai abraçando-a com as armas do século XXI”. É por isso que talvez seja boa ideia a Europa olhar com mais atenção para a vitória do Zenit. Ela esconde muito mais do que um sucesso desportivo e é mais reveladora do que gostaríamos que fosse. Resta saber se, desta vez, as democracias europeias têm alguma resposta para o abraço energético do urso.
publicado no Diário Económico.
O futebol, é sabido, é não só um bom tema para observar alguns aspectos essenciais da natureza humana, como também tem servido para antecipar conflitos entre países, tendo sido nalguns casos um rastilho que levou à fragmentação de nações. Mas o futebol é também um bom observatório das economias políticas. Muitas das vezes, e exceptuando os colossos europeus, o que explica a pujança de um determinado clube, num determinado período, tem a ver com o modo como uma cidade ou uma região fazem reflectir o sucesso do seu padrão de especialização em êxito do seu clube de futebol. O exemplo mais conhecido deste fenómeno é o de St. Étienne. Até meados da década de oitenta, a cidade ficou conhecida como sendo uma ‘company town’, dependente de um sector industrial (o aço), a partir do qual se desenvolveram um sem número de PME. Durante muitos anos, a cidade francesa ficou conhecida pela sua tradição industrial, pela cultura operária e, claro, pelo seu clube de futebol liderado por Platini. Depois, a região entrou em depressão económica e com esta foi-se a pujança desportiva do St. Étienne.
A vitória do Zenit está aí para revelar como por detrás de resultados desportivos improváveis se esconde inevitavelmente um sucesso económico. Acontece que as consequências para o conjunto da Europa da ascensão da indústria do aço francesa no passado são bem menores do que os que resultam do poderio quase hegemónico da Gazprom hoje.
No ano passado, a Gazprom produziu 20% do gás mundial e 25% do da União Europeia, sendo detentora de 16% das reservas mundiais. Estes valores fazem da empresa a maior do mundo no sector. Para além do mais, a empresa russa tem-se expandido, tendo adquirido importantes participações em petrolíferas, que levam a que hoje as suas reservas combinadas só sejam ultrapassadas pelas de dois Estados (a Arábia Saudita e o Irão). Tudo isto faz da Gazprom a terceira maior empresa mundial em termos de valor das suas acções.
Até aqui, pese embora a propensão da Gazprom para o controlo quase monopolístico do mercado, pelo menos em algumas regiões, a verdade é que poderíamos supor tratar-se de uma empresa a operar no mercado e a fazer-se valer da riqueza natural da Rússia. Mas infelizmente não é assim. A Gazprom é o paradigma da promiscuidade entre interesses privados e poder político na Rússia de hoje. Os recursos naturais são o cimento dessa relação.
O exemplo mais acabado disto mesmo foi a dança de cadeiras a que se assistiu recentemente na Rússia. Enquanto Vladimir Putin passou a primeiro-ministro, Dmitri Medved, antigo ‘chairman’ da Gazprom e ex-PM, ocupou o lugar de presidente. Nisto a Gazprom passou a ser presidida pelo anterior PM, Viktor Zubkov. Tudo em família portanto.
O problema é que esta família, conhecida pelo seu respeito pelo Estado de Direito e pelos mais elementares princípios do liberalismo político, se prepara para criar condições para aplicar ao conjunto da Europa a receita que tem aplicado à sua vizinha Ucrânia. Fazer aumentar a dependência energética para níveis que levarão a que, num tempo não muito distante, as tentativas da União Soviética para contaminar politicamente a Europa por força do seu poderio militar passem a parecer brincadeiras pueris, nomeadamente quando comparadas com o complexo político-energético que está hoje a ser construído. Como lembrava Paulo Pedroso no ‘blogue’ ocanhoto, “enquanto a Europa parece preocupada com o hipotético poderio chinês do futuro, baseado em brinquedos e vestuário, a Rússia vai abraçando-a com as armas do século XXI”. É por isso que talvez seja boa ideia a Europa olhar com mais atenção para a vitória do Zenit. Ela esconde muito mais do que um sucesso desportivo e é mais reveladora do que gostaríamos que fosse. Resta saber se, desta vez, as democracias europeias têm alguma resposta para o abraço energético do urso.
publicado no Diário Económico.
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