A síntese improvável
Apesar da “experiência Menezes” ter consolidado a herança de falta de credibilidade combinada com irracionalidade na acção política que já vinha da “experiência Santana”, continua a valer a pena olhar para o PSD com base em critérios de racionalidade, tentando perceber o que pode acontecer a partir de agora e de que modo este partido pode renovar o seu apelo eleitoral. Para perceber como foi possível chegar aqui e quais são as possibilidades no futuro, é boa ideia olhar para o passado.
Desde a sua formação, o PSD foi sempre um partido abrangente, caracterizado pela diversidade, baseado numa combinação idiossincrática que ia de elementos vindos da oposição ao Estado Novo até sectores sociais claramente de direita, como seja a burguesia rural proprietária, que constituiu a âncora social do salazarismo. Tal como o PS, foi também um partido consolidado a partir do Estado, mas, ao contrário do PS, o PSD não é produto da vontade de uma elite homogénea, mas sim da federação de elites locais, muito diversas ao longo do território nacional. Esse facto foi fundamental para que, desde o início, o partido conseguisse conciliar plasticidade com indefinição ideológica. O contexto da transição para a democracia ajudou a que assim fosse: por um lado, porque a direita se encontrava à defesa, sendo impossível afirmações ideológicas claras nesse campo, e depois porque a única forma de fazer coexistir os vários PSDs era a ausência de um compromisso ideológico forte. Durante muito tempo, esta especificidade foi a vantagem competitiva do PSD, fazendo-o “o partido mais português de Portugal”. Não representando ninguém em particular, era possível criar a ilusão de que se representava todos.
Acontece que o que foi uma vantagem para o PSD veio a tornar-se na raiz dos problemas de fundo de hoje – a indefinição estratégica e a dificuldade de se posicionar ideologicamente. No passado, o PSD soube fazer coexistir no mesmo barco liberais e populistas, social-democratas e conservadores, autarcas e elites empresariais, mas tal foi possível enquanto teve líderes carismáticos ou poder para distribuir e cimentar relacionamentos improváveis.
E assim chegamos às dificuldades de hoje. Independentemente de todas as ilusões, líderes carismáticos só surgem em períodos de grande mobilização política (de que são exemplo as transições para a democracia) – é esse o caso de Sá Carneiro – ou através do exercício duradouro do poder – como aconteceu com Cavaco Silva. O problema é que nenhuma dessas condições tem estado presente. A nossa democracia está longe de viver um período carismático e, claro, o poder tem sido uma miragem distante para o PSD. Sem fontes de carisma e sem poder para distribuir, é difícil a qualquer liderança do PSD fazer coexistir com um mínimo de estabilidade os interesses contraditórios das várias facções.
Neste contexto, o que tem acontecido é que, em lugar de promoverem a síntese entre os vários partidos, as sucessivas direcções vão representando a alternância entre grupos. Só no pós-cavaquismo, tivemos “estatistas” (Nogueira), liberais-populistas (Marcelo), uma variante liberal mais conservadora (Durão), populistas (Santana), uma facção mais social-democrata do norte, entretanto transformada em conservadora (Mendes), que viria a escancarar as portas do poder para o regresso do populismo (Menezes). A instabilidade das lideranças no PSD tem sido a face mais visível das contradições quase insanáveis que existem dentro do partido. Como se não bastasse, as diferenças políticas têm-se esvanecido, tendo sido progressivamente substituídas por preconceitos de classe social (aos quais há que somar ódios pessoais, cuja origem chega a ser difícil de traçar com exactidão), acentuados por um fosso crescente entre o partido autárquico e o que resta de um partido nacional.
E o que é que o passado nos diz sobre o futuro? Há neste momento duas possibilidades: ou o PSD consegue optar por uma liderança que represente uma dupla ruptura – com o passado recente, das experiências governativas de Durão e Santana, e com a lógica auto-destrutiva de alternância entre tendências internas – ou o partido prosseguirá a actual trajectória de definhamento eleitoral combinada com antagonismo militante interno (que pode acabar em cisão). O problema é que, sem poder no horizonte, é difícil a algum candidato transformar eventuais boas intenções políticas numa estratégia consequente, que repita a síntese improvável que esteve por detrás do sucesso eleitoral do passado.
publicado no Diário Económico.
Desde a sua formação, o PSD foi sempre um partido abrangente, caracterizado pela diversidade, baseado numa combinação idiossincrática que ia de elementos vindos da oposição ao Estado Novo até sectores sociais claramente de direita, como seja a burguesia rural proprietária, que constituiu a âncora social do salazarismo. Tal como o PS, foi também um partido consolidado a partir do Estado, mas, ao contrário do PS, o PSD não é produto da vontade de uma elite homogénea, mas sim da federação de elites locais, muito diversas ao longo do território nacional. Esse facto foi fundamental para que, desde o início, o partido conseguisse conciliar plasticidade com indefinição ideológica. O contexto da transição para a democracia ajudou a que assim fosse: por um lado, porque a direita se encontrava à defesa, sendo impossível afirmações ideológicas claras nesse campo, e depois porque a única forma de fazer coexistir os vários PSDs era a ausência de um compromisso ideológico forte. Durante muito tempo, esta especificidade foi a vantagem competitiva do PSD, fazendo-o “o partido mais português de Portugal”. Não representando ninguém em particular, era possível criar a ilusão de que se representava todos.
Acontece que o que foi uma vantagem para o PSD veio a tornar-se na raiz dos problemas de fundo de hoje – a indefinição estratégica e a dificuldade de se posicionar ideologicamente. No passado, o PSD soube fazer coexistir no mesmo barco liberais e populistas, social-democratas e conservadores, autarcas e elites empresariais, mas tal foi possível enquanto teve líderes carismáticos ou poder para distribuir e cimentar relacionamentos improváveis.
E assim chegamos às dificuldades de hoje. Independentemente de todas as ilusões, líderes carismáticos só surgem em períodos de grande mobilização política (de que são exemplo as transições para a democracia) – é esse o caso de Sá Carneiro – ou através do exercício duradouro do poder – como aconteceu com Cavaco Silva. O problema é que nenhuma dessas condições tem estado presente. A nossa democracia está longe de viver um período carismático e, claro, o poder tem sido uma miragem distante para o PSD. Sem fontes de carisma e sem poder para distribuir, é difícil a qualquer liderança do PSD fazer coexistir com um mínimo de estabilidade os interesses contraditórios das várias facções.
Neste contexto, o que tem acontecido é que, em lugar de promoverem a síntese entre os vários partidos, as sucessivas direcções vão representando a alternância entre grupos. Só no pós-cavaquismo, tivemos “estatistas” (Nogueira), liberais-populistas (Marcelo), uma variante liberal mais conservadora (Durão), populistas (Santana), uma facção mais social-democrata do norte, entretanto transformada em conservadora (Mendes), que viria a escancarar as portas do poder para o regresso do populismo (Menezes). A instabilidade das lideranças no PSD tem sido a face mais visível das contradições quase insanáveis que existem dentro do partido. Como se não bastasse, as diferenças políticas têm-se esvanecido, tendo sido progressivamente substituídas por preconceitos de classe social (aos quais há que somar ódios pessoais, cuja origem chega a ser difícil de traçar com exactidão), acentuados por um fosso crescente entre o partido autárquico e o que resta de um partido nacional.
E o que é que o passado nos diz sobre o futuro? Há neste momento duas possibilidades: ou o PSD consegue optar por uma liderança que represente uma dupla ruptura – com o passado recente, das experiências governativas de Durão e Santana, e com a lógica auto-destrutiva de alternância entre tendências internas – ou o partido prosseguirá a actual trajectória de definhamento eleitoral combinada com antagonismo militante interno (que pode acabar em cisão). O problema é que, sem poder no horizonte, é difícil a algum candidato transformar eventuais boas intenções políticas numa estratégia consequente, que repita a síntese improvável que esteve por detrás do sucesso eleitoral do passado.
publicado no Diário Económico.
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