Um partido sem massas
Há uma velha asserção que diz que as instituições têm memória. Contudo, se pensarmos nos partidos portugueses, somos levados a pensar que tal não é verdade. Esta semana temos mais uma prova disso mesmo, desta feita com o PS.
Numa altura em que a contestação de rua assumiu particular intensidade, o PS agendou um comício para o próximo fim-de-semana. Se bem que marcado para assinalar os três anos de Governo, ao fazê-lo coincidir com a manifestação impressionante dos professores, foram dados sinais de que o objectivo é responder à rua com rua. Esta opção não só contraria a história recente do PS, como tem pouco a ver com a identidade do partido.
É sabido que, ao contrário dos seus congéneres europeus, o PS não foi criado de baixo para cima, através de movimentos sociais, mas, pelo contrário, nasceu de cima para baixo, resultando da vontade de elites, muitas delas ligadas às profissões liberais. Isto deveu-se à existência de uma ditadura que não só proibiu a criação de partidos livres, como reprimiu qualquer forma de organização da sociedade civil não tutelada. O código genético do PS ficaria indelevelmente marcado por este acto fundador. E ficou marcado com aspectos negativos, mas que coexistem também com um legado positivo.
Entre as dimensões mais negativas da ausência de um movimento social organizado da qual emanou o PS, encontra-se o carácter pouco ou nada orgânico da representação de interesses no partido, ao qual estão associados níveis significativos de volatilidade ideológica e de plasticidade programática.
Mas há outra face desta moeda. Ao contrário dos partidos onde o encastramento social é mais forte, o PS, sempre que quis modernizar a sua agenda governativa, encontrou poucos pontos de veto e, no que é mais importante, pôde fazê-lo abrindo-se à sociedade. Não por acaso, os governos socialistas caracterizam-se pela presença de muitos independentes, no que é uma singularidade europeia que se tem revelado instrumental para compensar a fraca representação social do partido. Neste sentido, se dividirmos os partidos de matriz socialista entre mais conservadores (isto é, aqueles que menos se afastaram da sua matriz fundadora) e mais modernizadores (os que mais mudaram), o PS sempre fez parte do segundo grupo.
Este legado explica, em importante medida, que o PS tenha organizado a sua presença no espaço público com autonomia face a alguns dos mecanismos tradicionais dos partidos de massas (por exemplo, os comícios, mas, também, as manifestações de rua). Com excepção dos anos quentes da transição democrática, o PS nunca utilizou a rua como arma. E nunca o fez porque, realisticamente, não o consegue fazer. Por exemplo, a manifestação que o PCP organizou há um par de semanas em Lisboa, seria impensável para o PS.
Neste contexto, José Sócrates escolheu acentuar o que foi tradicionalmente a marca do PS, em lugar de tentar alterá-la. Aliás, é isto que faz com que não façam sentido as críticas que dizem que este PS é muito diferente do do passado. Para o bem, mas, também, em larga medida, para o mal, o PS de hoje é apenas uma nova versão das características de sempre. Foi assim que o Governo construiu a sua imagem através de uma agenda modernizadora, apoiando-se numa “maioria silenciosa”, que não se expressa na rua, mas que encontra eco nas sondagens. Enquanto cada grupo profissional reagia à vontade reformadora do executivo, este procurava respaldo no interesse geral. Ainda que isto tivesse ocorrido com fraca capacidade para produzir um sentido global para a sua acção.
É por isso que não pode deixar de ser visto com perplexidade que, no momento de mais intensa contestação à sua acção, o Governo procure responder à rua com rua. O PS nunca foi um partido de massas e essa tendência intensificou-se. A aposta numa resposta de rua, aliás, só pode ser vista como sinal de alguma desorientação estratégica. Algo que este Governo nunca havia revelado e onde reside grande parte do seu potencial eleitoral, designadamente na capacidade de captar votos para além do seu núcleo duro de eleitores. Mas, desde a opção sobre a construção do novo aeroporto e em particular desde a remodelação do Ministro da Saúde, há sinais de que o Governo aparenta ter escolhido a opção conservadora por relação à modernizadora. Ora, as mudanças de identidade a meio do percurso não costumam trazer vantagens eleitorais e esquecer a memória partidária muito menos.
publicado no Diário Económico.
Numa altura em que a contestação de rua assumiu particular intensidade, o PS agendou um comício para o próximo fim-de-semana. Se bem que marcado para assinalar os três anos de Governo, ao fazê-lo coincidir com a manifestação impressionante dos professores, foram dados sinais de que o objectivo é responder à rua com rua. Esta opção não só contraria a história recente do PS, como tem pouco a ver com a identidade do partido.
É sabido que, ao contrário dos seus congéneres europeus, o PS não foi criado de baixo para cima, através de movimentos sociais, mas, pelo contrário, nasceu de cima para baixo, resultando da vontade de elites, muitas delas ligadas às profissões liberais. Isto deveu-se à existência de uma ditadura que não só proibiu a criação de partidos livres, como reprimiu qualquer forma de organização da sociedade civil não tutelada. O código genético do PS ficaria indelevelmente marcado por este acto fundador. E ficou marcado com aspectos negativos, mas que coexistem também com um legado positivo.
Entre as dimensões mais negativas da ausência de um movimento social organizado da qual emanou o PS, encontra-se o carácter pouco ou nada orgânico da representação de interesses no partido, ao qual estão associados níveis significativos de volatilidade ideológica e de plasticidade programática.
Mas há outra face desta moeda. Ao contrário dos partidos onde o encastramento social é mais forte, o PS, sempre que quis modernizar a sua agenda governativa, encontrou poucos pontos de veto e, no que é mais importante, pôde fazê-lo abrindo-se à sociedade. Não por acaso, os governos socialistas caracterizam-se pela presença de muitos independentes, no que é uma singularidade europeia que se tem revelado instrumental para compensar a fraca representação social do partido. Neste sentido, se dividirmos os partidos de matriz socialista entre mais conservadores (isto é, aqueles que menos se afastaram da sua matriz fundadora) e mais modernizadores (os que mais mudaram), o PS sempre fez parte do segundo grupo.
Este legado explica, em importante medida, que o PS tenha organizado a sua presença no espaço público com autonomia face a alguns dos mecanismos tradicionais dos partidos de massas (por exemplo, os comícios, mas, também, as manifestações de rua). Com excepção dos anos quentes da transição democrática, o PS nunca utilizou a rua como arma. E nunca o fez porque, realisticamente, não o consegue fazer. Por exemplo, a manifestação que o PCP organizou há um par de semanas em Lisboa, seria impensável para o PS.
Neste contexto, José Sócrates escolheu acentuar o que foi tradicionalmente a marca do PS, em lugar de tentar alterá-la. Aliás, é isto que faz com que não façam sentido as críticas que dizem que este PS é muito diferente do do passado. Para o bem, mas, também, em larga medida, para o mal, o PS de hoje é apenas uma nova versão das características de sempre. Foi assim que o Governo construiu a sua imagem através de uma agenda modernizadora, apoiando-se numa “maioria silenciosa”, que não se expressa na rua, mas que encontra eco nas sondagens. Enquanto cada grupo profissional reagia à vontade reformadora do executivo, este procurava respaldo no interesse geral. Ainda que isto tivesse ocorrido com fraca capacidade para produzir um sentido global para a sua acção.
É por isso que não pode deixar de ser visto com perplexidade que, no momento de mais intensa contestação à sua acção, o Governo procure responder à rua com rua. O PS nunca foi um partido de massas e essa tendência intensificou-se. A aposta numa resposta de rua, aliás, só pode ser vista como sinal de alguma desorientação estratégica. Algo que este Governo nunca havia revelado e onde reside grande parte do seu potencial eleitoral, designadamente na capacidade de captar votos para além do seu núcleo duro de eleitores. Mas, desde a opção sobre a construção do novo aeroporto e em particular desde a remodelação do Ministro da Saúde, há sinais de que o Governo aparenta ter escolhido a opção conservadora por relação à modernizadora. Ora, as mudanças de identidade a meio do percurso não costumam trazer vantagens eleitorais e esquecer a memória partidária muito menos.
publicado no Diário Económico.
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