Sintomas de Estrangulamento
A transformação das Estradas de Portugal de Empresa Pública em Sociedade Anónima de capitais públicos foi recebida com um coro de desconfiança. O facto de pouco ou nada se saber sobre o contrato de concessão com vista à exploração, manutenção e construção da rede viária veio adensar as suspeições. À cabeça surgiu a acusação de que se tratava de uma manigância com o objectivo implícito de levar a cabo um exercício de desorçamentação. O impacto desta alteração no défice é, para já, nulo, o que não diminui o significado político da criação das Estradas de Portugal S.A.. Até porque estamos perante mais um sintoma dos vários estrangulamentos que enfrenta a economia política portuguesa.
Não está em causa um exercício de desorçamentação. A criação da S.A. conta para o défice – está cabimentada na rubrica “fundos e serviços autónomos” – e encontra-se no perímetro de consolidação segundo as regras do Eurostat, designadamente porque a sua percentagem de receitas mercantis é inferior a 50% do total (isto é, receitas próprias não resultantes de subvenções públicas). Para além do mais, a Estradas de Portugal S.A. estará sujeita a todas as regras de contratação pública, não se abrindo, portanto, uma janela para a “agilização” das adjudicações de empreitadas.
Não sendo um caso de manigância orçamental, esta transformação indicia, ainda assim, três tipos de estrangulamento do modelo de desenvolvimento português: um de natureza económica; um político; e, finalmente, um financeiro.
Desde logo a dimensão económica do exercício. Enquanto o discurso político do Governo (deste e dos anteriores) sublinha a necessidade de alteração do nosso padrão de especialização – no caso, através de um “choque tecnológico” – e investe na atracção do investimento directo estrangeiro – por exemplo através do papel que é consignado à API –, a realidade acaba por revelar que estes factores, pelo menos no curto e no médio prazo, são frágeis na promoção do emprego. Mesmo perante o aumento das exportações de um novo tipo e com algum sucesso na atracção do investimento estrangeiro combinado com um tímido crescimento económico, os níveis de desemprego continuam muito elevados, nomeadamente se comparados com a tradição portuguesa de desemprego baixo e taxas de emprego elevadas. Hoje como no passado, este estrangulamento leva a que os Governos se vejam sistematicamente condenados a virar-se para as grandes obras públicas, também como almofada social.
Depois, um estrangulamento político. Se sobrepusermos uma curva da evolução do desemprego e uma curva com os resultados eleitorais legislativos, apercebemo-nos que quando o desemprego cresce quem está no poder tende a perder as eleições. Ora, o que os últimos anos demonstram é que sem grandes obras públicas o emprego em Portugal cresce pouco. O que, aliás, ajuda a compreender por que razão as oposições têm resistido tanto as decisões em torno do novo aeroporto ou do TGV. Há, contudo, uma outra dimensão de estrangulamento da esfera política: dada a importância das obras públicas, a autonomia da decisão política tende a ficar capturada pelos actores económicos envolvidos neste sector. Uma dependência que se acentua quando pensamos na ligação entre construção civil e financiamento da actividade partidária.
Finalmente, o estrangulamento financeiro. Sem recursos, endividada e com incapacidade de recorrer ao crédito, as Estradas de Portugal revelam-se incapazes de concretizar o plano rodoviário, dando o seu contributo à superação do bloqueio económico, acentuando por isso o estrangulamento político. A solução S.A. é, aparentemente, uma forma virtuosa de resolver o problema. Ao dar estabilidade na concessão – fala-se de um contrato até 2099 – torna o negócio interessante para os privados, o que é acentuado pela eventual consignação de uma denominada “contribuição rodoviária” à nova entidade.
Contudo, o que parece ser uma solução virtuosa pode acabar por ser a consolidação dos vários bloqueios existentes, mas a um novo nível. Basta, por exemplo, imaginar um cenário em que a concessão é assegurada através de um consórcio onde se juntam as grandes construtoras e os actuais concessionários das autoestradas. A confirmar-se este cenário, o que parecia significar mais mercado e maior disponibilidade financeira poderia assim, acabar, em simultâneo, por tornar ainda mais dependente o sistema político dos interesses privados e, não menos grave, criar uma oligarquia capaz de controlar um mercado com fluxos financeiros muitos significativos.
Porventura será difícil encontrar outro exemplo tão sintomático dos sérios bloqueios estratégicos que enfrenta o país. Antes se tratasse de um caso de desorçamentação.
publicado no Diário Económico.
Não está em causa um exercício de desorçamentação. A criação da S.A. conta para o défice – está cabimentada na rubrica “fundos e serviços autónomos” – e encontra-se no perímetro de consolidação segundo as regras do Eurostat, designadamente porque a sua percentagem de receitas mercantis é inferior a 50% do total (isto é, receitas próprias não resultantes de subvenções públicas). Para além do mais, a Estradas de Portugal S.A. estará sujeita a todas as regras de contratação pública, não se abrindo, portanto, uma janela para a “agilização” das adjudicações de empreitadas.
Não sendo um caso de manigância orçamental, esta transformação indicia, ainda assim, três tipos de estrangulamento do modelo de desenvolvimento português: um de natureza económica; um político; e, finalmente, um financeiro.
Desde logo a dimensão económica do exercício. Enquanto o discurso político do Governo (deste e dos anteriores) sublinha a necessidade de alteração do nosso padrão de especialização – no caso, através de um “choque tecnológico” – e investe na atracção do investimento directo estrangeiro – por exemplo através do papel que é consignado à API –, a realidade acaba por revelar que estes factores, pelo menos no curto e no médio prazo, são frágeis na promoção do emprego. Mesmo perante o aumento das exportações de um novo tipo e com algum sucesso na atracção do investimento estrangeiro combinado com um tímido crescimento económico, os níveis de desemprego continuam muito elevados, nomeadamente se comparados com a tradição portuguesa de desemprego baixo e taxas de emprego elevadas. Hoje como no passado, este estrangulamento leva a que os Governos se vejam sistematicamente condenados a virar-se para as grandes obras públicas, também como almofada social.
Depois, um estrangulamento político. Se sobrepusermos uma curva da evolução do desemprego e uma curva com os resultados eleitorais legislativos, apercebemo-nos que quando o desemprego cresce quem está no poder tende a perder as eleições. Ora, o que os últimos anos demonstram é que sem grandes obras públicas o emprego em Portugal cresce pouco. O que, aliás, ajuda a compreender por que razão as oposições têm resistido tanto as decisões em torno do novo aeroporto ou do TGV. Há, contudo, uma outra dimensão de estrangulamento da esfera política: dada a importância das obras públicas, a autonomia da decisão política tende a ficar capturada pelos actores económicos envolvidos neste sector. Uma dependência que se acentua quando pensamos na ligação entre construção civil e financiamento da actividade partidária.
Finalmente, o estrangulamento financeiro. Sem recursos, endividada e com incapacidade de recorrer ao crédito, as Estradas de Portugal revelam-se incapazes de concretizar o plano rodoviário, dando o seu contributo à superação do bloqueio económico, acentuando por isso o estrangulamento político. A solução S.A. é, aparentemente, uma forma virtuosa de resolver o problema. Ao dar estabilidade na concessão – fala-se de um contrato até 2099 – torna o negócio interessante para os privados, o que é acentuado pela eventual consignação de uma denominada “contribuição rodoviária” à nova entidade.
Contudo, o que parece ser uma solução virtuosa pode acabar por ser a consolidação dos vários bloqueios existentes, mas a um novo nível. Basta, por exemplo, imaginar um cenário em que a concessão é assegurada através de um consórcio onde se juntam as grandes construtoras e os actuais concessionários das autoestradas. A confirmar-se este cenário, o que parecia significar mais mercado e maior disponibilidade financeira poderia assim, acabar, em simultâneo, por tornar ainda mais dependente o sistema político dos interesses privados e, não menos grave, criar uma oligarquia capaz de controlar um mercado com fluxos financeiros muitos significativos.
Porventura será difícil encontrar outro exemplo tão sintomático dos sérios bloqueios estratégicos que enfrenta o país. Antes se tratasse de um caso de desorçamentação.
publicado no Diário Económico.
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