Tão liberais que nós somos
Há um espectro a pairar sobre a sociedade portuguesa: o do liberalismo. Em todo o lado se ouvem loas às virtudes do mercado e às vantagens da concorrência livre. O problema é que cada vez que se avança para o teste empírico, o que parecia sólido logo se desfaz em ar. É difícil encontrar, entre nós, alguém que seja consequente com os princípios liberais que defende em abstracto. E não é preciso irmos aos temas morais para se perceber a facilidade com que os liberais suspendem as suas convicções e regressam ao regaço do conservadorismo. Também nos temas económicos, em Portugal, a maior parte das vezes, os liberais só o são até ao momento em que o mercado lhes bate à porta, fazendo com que deixe de ser do seu próprio interesse continuar a defender a livre concorrência. Se há área em que esta asserção é particularmente verdadeira, ela é a dos media e da televisão em particular. Com o lançamento na passada semana do concurso para a televisão digital terrestre (TDT), o liberalismo português será, uma vez mais, posto à prova.
A TDT é uma das plataformas possíveis para a televisão digital, sendo as alternativas, por exemplo, o cabo e o satélite. E, em Portugal, podemos ter outra percepção subjectiva, mas a verdade é que mais de metade das famílias continua a aceder à TV apenas através do velhinho serviço hertziano analógico – existem apenas cerca de um milhão e meio de assinantes do cabo. É por isso que a TDT visa, primeiro, ao substituir a televisão que ainda é recepcionada através das antenas, cumprir o objectivo de democratizar o acesso de mais de metade da população portuguesa à televisão digital, de modo gratuito, ao mesmo tempo, abrindo a possibilidade de todos os lares receberem mais do que os actuais quatro canais generalistas - o que é uma hipótese exequível e não necessariamente em regime de ‘pay-tv’. E é aqui que, normalmente, começam os problemas em Portugal. Assim que se fala de abertura do mercado e de democratização do acesso a um bem, logo regressa o “condicionalismo industrial”, ainda que pela porta do cavalo.
No caso das televisões, como em outros negócios sujeitos à concessão e regulação públicas, os ‘players’ já instalados no mercado defendem invariavelmente uma de duas soluções: ou o fechamento puro e simples do mercado ou, em alternativa, uma abertura do mercado condicionada a quem já ocupa posição neste. E a verdade é que ninguém escapa a este discurso, dos grupos privados até à omnipresente PT. Nisto resta saber onde é que ficam as virtudes da concorrência e as vantagens para o consumidor de um mercado mais exposto.
É isso também que deve estar em causa no concurso que agora se inicia: para além de garantir o encerramento da televisão hertziana e a sua substituição pela digital, aumentar a oferta, aproveitando para não replicar o ‘status quo’, tal como este nos chega a casa, por exemplo, via TV Cabo. Como, a este propósito, afirmou a ANACOM, a TDT promove “a concorrência no sector (...) através da emergência de uma plataforma alternativa de acesso” e estimula “a indústria portuguesa de conteúdos, aplicações e equipamentos”. Acontece que o mais provável é que as pressões e os obstáculos para que estes estímulos sejam concretizados vão, certamente, fazer-se sentir de modo intenso.
Como é triste hábito em Portugal, os princípios liberais serão postos no bolso e a tentação do condicionalismo regressará. No entretanto, os ‘players’ instalados, em lugar de apostarem na inovação e nos factores que os tornam mais competitivos (como se encontram ainda atrasadas as condições para generalizar o princípio do ‘download’ e da interactividade à imagem do IPod nas televisões portuguesas, curiosamente com a excepção da RTP!), preocupar-se-ão em garantir, fora do mercado, a sua posição. É de facto preciso mais liberalismo em Portugal, mas na prática e não no discurso abstracto. O concurso da TDT, pela sua relevância, também substantiva, é uma excelente oportunidade para deixar o mercado, de facto, falar e fazê-lo, de forma regulada, em benefício dos consumidores. Resta saber se há alguém interessado em que isso aconteça.
publicado em Diário Económico.
A TDT é uma das plataformas possíveis para a televisão digital, sendo as alternativas, por exemplo, o cabo e o satélite. E, em Portugal, podemos ter outra percepção subjectiva, mas a verdade é que mais de metade das famílias continua a aceder à TV apenas através do velhinho serviço hertziano analógico – existem apenas cerca de um milhão e meio de assinantes do cabo. É por isso que a TDT visa, primeiro, ao substituir a televisão que ainda é recepcionada através das antenas, cumprir o objectivo de democratizar o acesso de mais de metade da população portuguesa à televisão digital, de modo gratuito, ao mesmo tempo, abrindo a possibilidade de todos os lares receberem mais do que os actuais quatro canais generalistas - o que é uma hipótese exequível e não necessariamente em regime de ‘pay-tv’. E é aqui que, normalmente, começam os problemas em Portugal. Assim que se fala de abertura do mercado e de democratização do acesso a um bem, logo regressa o “condicionalismo industrial”, ainda que pela porta do cavalo.
No caso das televisões, como em outros negócios sujeitos à concessão e regulação públicas, os ‘players’ já instalados no mercado defendem invariavelmente uma de duas soluções: ou o fechamento puro e simples do mercado ou, em alternativa, uma abertura do mercado condicionada a quem já ocupa posição neste. E a verdade é que ninguém escapa a este discurso, dos grupos privados até à omnipresente PT. Nisto resta saber onde é que ficam as virtudes da concorrência e as vantagens para o consumidor de um mercado mais exposto.
É isso também que deve estar em causa no concurso que agora se inicia: para além de garantir o encerramento da televisão hertziana e a sua substituição pela digital, aumentar a oferta, aproveitando para não replicar o ‘status quo’, tal como este nos chega a casa, por exemplo, via TV Cabo. Como, a este propósito, afirmou a ANACOM, a TDT promove “a concorrência no sector (...) através da emergência de uma plataforma alternativa de acesso” e estimula “a indústria portuguesa de conteúdos, aplicações e equipamentos”. Acontece que o mais provável é que as pressões e os obstáculos para que estes estímulos sejam concretizados vão, certamente, fazer-se sentir de modo intenso.
Como é triste hábito em Portugal, os princípios liberais serão postos no bolso e a tentação do condicionalismo regressará. No entretanto, os ‘players’ instalados, em lugar de apostarem na inovação e nos factores que os tornam mais competitivos (como se encontram ainda atrasadas as condições para generalizar o princípio do ‘download’ e da interactividade à imagem do IPod nas televisões portuguesas, curiosamente com a excepção da RTP!), preocupar-se-ão em garantir, fora do mercado, a sua posição. É de facto preciso mais liberalismo em Portugal, mas na prática e não no discurso abstracto. O concurso da TDT, pela sua relevância, também substantiva, é uma excelente oportunidade para deixar o mercado, de facto, falar e fazê-lo, de forma regulada, em benefício dos consumidores. Resta saber se há alguém interessado em que isso aconteça.
publicado em Diário Económico.
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