Um Governo de Doutorados
Se por acaso um politólogo marciano aterrasse em Portugal nas últimas semanas, ficaria surpreendido com a polémica em torno do percurso académico do primeiro-ministro. Habituado a comparar sistemas de Governo, olharia com espanto para o interesse dos ‘media’ no tema. Em bom rigor, se dedicasse três minutos de atenção ao assunto, não deixaria de ficar atónito com o paradoxo de um país que combina níveis de qualificação muito baixos com a monomania do tratamento deferencial assente em títulos académicos. Já se resolvesse analisar as qualificações dos membros do Governo, poderia pensar que tinha encontrado em terras lusas a concretização da República dos Reis-Filósofos, com que Platão havia “sonhado”.
Não é para menos. Dos dezasseis ministros que compõem o actual executivo, sete são doutorados, aos quais há que juntar outros cinco que, não o sendo, têm percursos académicos quase equiparáveis. O politólogo marciano poderia mesmo pensar que havia entre nós uma singularidade: ser doutorado seria condição necessária para ser ministro. Afinal, do que conhecia dos restantes Estados-membros, sabia que não seria fácil encontrar outro exemplo do género. A conclusão, a carecer de uma detalhada análise comparativa, parecia simples: Portugal, um dos países com níveis de qualificação mais baixos na Europa, era também o país europeu com o Conselho de Ministros mais qualificado.
À primeira vista, o dado parece ser positivo. Se concordarmos que as qualificações são um indicador razoável para aferir a competência de alguém, então, em Portugal, os melhores são escolhidos para governar.
Acontece que o indicador que apontava para uma incomum liderança de Portugal em ‘rankings’ internacionais, é, antes de mais, um sinal de fragilidade da democracia portuguesa. Se, ao contrário do que é norma nas democracias europeias, quem é escolhido para fazer parte do Governo tende a vir de fora da vida partidária, é porque algo de errado se passa com os partidos, que ou não são capazes ou não têm condições para cumprir uma das suas funções: “produzir” membros do Governo.
Esta singularidade levaria, de certo, o nosso marciano a formular uma hipótese: num contexto em que a classe política tem níveis de aprovação muito baixos, uma vez no poder, os primeiros-ministros tendem a rodear-se de não políticos para reforçar a legitimidade do Governo. A confirmar-se a hipótese, seria possível identificar dois efeitos interligados e igualmente nocivos para a institucionalização da democracia: a existência de actores que ocupam lugares contraditórios e um reforço da deslegitimação dos partidos.
Em primeiro lugar, os lugares contraditórios. O que se espera de um ministro é que faça a gestão política da área que tutela, traçando grandes linhas orientadoras para serem concretizadas pelos serviços. Ora, numa asserção que é válida para todas as competências, a gestão política aprende-se e treina-se, daí que seja expectável que os políticos sejam melhores a fazê-la. Não por acaso, nas democracias mais consolidadas, a política é algo que está entregue exclusivamente aos políticos. A alternativa é assistirmos a um vai-e-vem na ocupação de lugares, muitas das vezes contraditórios, em que temos políticos apresentados como especialistas técnicos a fazerem intervenções políticas transvestidas de verdades técnicas absolutas.
Depois, a deslegitimação dos partidos. Não foi difícil ao nosso alienígena concluir que os partidos e a vida política em geral não estão particularmente bem vistos aos olhos dos portugueses. O que lhe causou estranheza foi que os partidos reforçassem essa avaliação. Se quando investidos de responsabilidades governativas, a primeira coisa que os líderes partidários fazem é rodear-se de outros que não aqueles que os acompanharam na sua chegada ao poder, então por que razão hão-de os portugueses valorar positivamente a classe política?
Quando regressou, o politólogo marciano, mesmo tendo em conta o seu distanciamento face ao objecto de estudo, não deixou de ficar preocupado com aquilo a que assistiu. É que o tema das qualificações dos membros dos Governos é um bom indicador da qualidade de uma democracia. Não o é, contudo, por nenhuma das razões que ele viu ser discutida.
publicado no Diário Económico.
Não é para menos. Dos dezasseis ministros que compõem o actual executivo, sete são doutorados, aos quais há que juntar outros cinco que, não o sendo, têm percursos académicos quase equiparáveis. O politólogo marciano poderia mesmo pensar que havia entre nós uma singularidade: ser doutorado seria condição necessária para ser ministro. Afinal, do que conhecia dos restantes Estados-membros, sabia que não seria fácil encontrar outro exemplo do género. A conclusão, a carecer de uma detalhada análise comparativa, parecia simples: Portugal, um dos países com níveis de qualificação mais baixos na Europa, era também o país europeu com o Conselho de Ministros mais qualificado.
À primeira vista, o dado parece ser positivo. Se concordarmos que as qualificações são um indicador razoável para aferir a competência de alguém, então, em Portugal, os melhores são escolhidos para governar.
Acontece que o indicador que apontava para uma incomum liderança de Portugal em ‘rankings’ internacionais, é, antes de mais, um sinal de fragilidade da democracia portuguesa. Se, ao contrário do que é norma nas democracias europeias, quem é escolhido para fazer parte do Governo tende a vir de fora da vida partidária, é porque algo de errado se passa com os partidos, que ou não são capazes ou não têm condições para cumprir uma das suas funções: “produzir” membros do Governo.
Esta singularidade levaria, de certo, o nosso marciano a formular uma hipótese: num contexto em que a classe política tem níveis de aprovação muito baixos, uma vez no poder, os primeiros-ministros tendem a rodear-se de não políticos para reforçar a legitimidade do Governo. A confirmar-se a hipótese, seria possível identificar dois efeitos interligados e igualmente nocivos para a institucionalização da democracia: a existência de actores que ocupam lugares contraditórios e um reforço da deslegitimação dos partidos.
Em primeiro lugar, os lugares contraditórios. O que se espera de um ministro é que faça a gestão política da área que tutela, traçando grandes linhas orientadoras para serem concretizadas pelos serviços. Ora, numa asserção que é válida para todas as competências, a gestão política aprende-se e treina-se, daí que seja expectável que os políticos sejam melhores a fazê-la. Não por acaso, nas democracias mais consolidadas, a política é algo que está entregue exclusivamente aos políticos. A alternativa é assistirmos a um vai-e-vem na ocupação de lugares, muitas das vezes contraditórios, em que temos políticos apresentados como especialistas técnicos a fazerem intervenções políticas transvestidas de verdades técnicas absolutas.
Depois, a deslegitimação dos partidos. Não foi difícil ao nosso alienígena concluir que os partidos e a vida política em geral não estão particularmente bem vistos aos olhos dos portugueses. O que lhe causou estranheza foi que os partidos reforçassem essa avaliação. Se quando investidos de responsabilidades governativas, a primeira coisa que os líderes partidários fazem é rodear-se de outros que não aqueles que os acompanharam na sua chegada ao poder, então por que razão hão-de os portugueses valorar positivamente a classe política?
Quando regressou, o politólogo marciano, mesmo tendo em conta o seu distanciamento face ao objecto de estudo, não deixou de ficar preocupado com aquilo a que assistiu. É que o tema das qualificações dos membros dos Governos é um bom indicador da qualidade de uma democracia. Não o é, contudo, por nenhuma das razões que ele viu ser discutida.
publicado no Diário Económico.
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