O rato pariu uma montanha
Em manchete, o ”Expresso” desta semana escrevia que o Governo dava poder à Entidade Reguladora da Comunicação para “censurar televisões”, ao permitir interromper programas em directo. A acusação é não só muito grave como remete para o tema complexo e sensível da regulação dos meios de comunicação social. Acontece que estamos perante um daqueles casos em que já não é a montanha que está a parir um rato, é o próprio rato que está a procurar parir uma montanha.
A televisão não é uma actividade económica como outra qualquer. Tem especificidades relevantes, à cabeça das quais o facto de ter um papel socializador que, nos nossos dias, compete comas duas instituições mais relevantes para a formação individual – a família e a escola. Este facto, por si só, obriga a que a sua actividade seja regulada e a sua acção limitada pela lei.Até porque,mesmo perante mecanismos de regulação, a tendência dos operadores (que, convém não esquecer, beneficiam de uma licença pública) é para optarem por uma degradação da oferta que chega a ser difícil perceber onde vai parar.
O que a nova proposta de lei da televisão, ainda em fase de discussão pública, procura fazer é, apenas, regular. E, aliás, se pode ser acusada de alguma coisa é de timidez nos seus propósitos por se tratar de um programa mínimo. Em que consiste então o programa mínimo da nova lei da televisão? Torna marginalmente mais exigente o processo de renovação das licenças de televisão (que só ocorrerá em 2021, quando a probabilidade de existirem canais generalistas como os que conhecemos é já de si diminuta), designadamente através de um processo de avaliação intercalar; e impõe limites à contra-programação (um poderoso mecanismo de degradação da oferta, normalmente assente ou na bizarria nacional que é o prolongamento ‘ad nauseam’ de telejornais ou na emissão sucessiva de episódios de novelas). Para contrariar esta tendência, a proposta de lei obriga a uma estabilização da programação anunciada com 48 horas de antecedência.
Em tudo o resto, a nova lei limita-se, no essencial, a manter a lei anterior. Nomeadamente naquilo que tem a ver com os conteúdos da programação. Ao contrário do que temsido feito crer, os limites à liberdade de programação não são alterados, mantendo-se os da lei em vigor e que decorremaliás de uma directiva europeia: a defesa da democracia - pela proibição do incitamento ao ódio e ao racismo; e os direitos dos menores – impedindo a pornografia e a violência gratuita. A questão é, por isso, simples: estamos a falar de alguma limitação à liberdade de expressão quando umcanal de televisão que, de forma continuada, emite um programa que exibe cenas de violência gratuita é punido por isso? É que só nesses casos é que existe a possibilidade de a ERC interromper programas, sendo que a lei em vigor, aprovada pelo então ministro Morais Sarmento, já o previa até de modo mais alargado.
Num ponto os operadores têm razão. A autoregulação é preferível à regulação imposta. Acontece que, em Portugal, a capacidade autónoma de as televisões colocarem limites à sua acção tem sido reduzida. Aquilo a que temos assistido nos últimos anos é a uma degradação da oferta e a uma redução da saliência do serviço público a que estão obrigados.
Não deixa, por tudo isto, de gerar perplexidade que, numa fase em que a proposta de lei está em discussão pública (algo que nas democracias consolidadas serve para as partes expressarem as suas posições sobre as propostas), os operadores de televisão privados procurem lançar uma campanha que, utilizando a nova lei como pretexto, acaba por não esconder o seu verdadeiro propósito. Quando perante uma mão-cheia de quase nada, assistimos às reacções inusitadas dos operadores televisivos, só podemos ser levados a suspeitar que, mais do que discordarem desta proposta de lei em concreto, estão contra a existência de uma entidade que os regule e de uma lei que os limite. Só assim se compreende que, perante uma proposta de lei que pouco permite à ERC fazer, se venha abanar como papão da censura.
Quem queira ver na nova lei de televisão uma vontade de censura esquece que, em democracia, a liberdade não se sustenta no livre arbítrio, mas sim na limitação do seu exercício. O que é particularmente verdade para o funcionamento das televisões.
publicado no Diário Económico.
A televisão não é uma actividade económica como outra qualquer. Tem especificidades relevantes, à cabeça das quais o facto de ter um papel socializador que, nos nossos dias, compete comas duas instituições mais relevantes para a formação individual – a família e a escola. Este facto, por si só, obriga a que a sua actividade seja regulada e a sua acção limitada pela lei.Até porque,mesmo perante mecanismos de regulação, a tendência dos operadores (que, convém não esquecer, beneficiam de uma licença pública) é para optarem por uma degradação da oferta que chega a ser difícil perceber onde vai parar.
O que a nova proposta de lei da televisão, ainda em fase de discussão pública, procura fazer é, apenas, regular. E, aliás, se pode ser acusada de alguma coisa é de timidez nos seus propósitos por se tratar de um programa mínimo. Em que consiste então o programa mínimo da nova lei da televisão? Torna marginalmente mais exigente o processo de renovação das licenças de televisão (que só ocorrerá em 2021, quando a probabilidade de existirem canais generalistas como os que conhecemos é já de si diminuta), designadamente através de um processo de avaliação intercalar; e impõe limites à contra-programação (um poderoso mecanismo de degradação da oferta, normalmente assente ou na bizarria nacional que é o prolongamento ‘ad nauseam’ de telejornais ou na emissão sucessiva de episódios de novelas). Para contrariar esta tendência, a proposta de lei obriga a uma estabilização da programação anunciada com 48 horas de antecedência.
Em tudo o resto, a nova lei limita-se, no essencial, a manter a lei anterior. Nomeadamente naquilo que tem a ver com os conteúdos da programação. Ao contrário do que temsido feito crer, os limites à liberdade de programação não são alterados, mantendo-se os da lei em vigor e que decorremaliás de uma directiva europeia: a defesa da democracia - pela proibição do incitamento ao ódio e ao racismo; e os direitos dos menores – impedindo a pornografia e a violência gratuita. A questão é, por isso, simples: estamos a falar de alguma limitação à liberdade de expressão quando umcanal de televisão que, de forma continuada, emite um programa que exibe cenas de violência gratuita é punido por isso? É que só nesses casos é que existe a possibilidade de a ERC interromper programas, sendo que a lei em vigor, aprovada pelo então ministro Morais Sarmento, já o previa até de modo mais alargado.
Num ponto os operadores têm razão. A autoregulação é preferível à regulação imposta. Acontece que, em Portugal, a capacidade autónoma de as televisões colocarem limites à sua acção tem sido reduzida. Aquilo a que temos assistido nos últimos anos é a uma degradação da oferta e a uma redução da saliência do serviço público a que estão obrigados.
Não deixa, por tudo isto, de gerar perplexidade que, numa fase em que a proposta de lei está em discussão pública (algo que nas democracias consolidadas serve para as partes expressarem as suas posições sobre as propostas), os operadores de televisão privados procurem lançar uma campanha que, utilizando a nova lei como pretexto, acaba por não esconder o seu verdadeiro propósito. Quando perante uma mão-cheia de quase nada, assistimos às reacções inusitadas dos operadores televisivos, só podemos ser levados a suspeitar que, mais do que discordarem desta proposta de lei em concreto, estão contra a existência de uma entidade que os regule e de uma lei que os limite. Só assim se compreende que, perante uma proposta de lei que pouco permite à ERC fazer, se venha abanar como papão da censura.
Quem queira ver na nova lei de televisão uma vontade de censura esquece que, em democracia, a liberdade não se sustenta no livre arbítrio, mas sim na limitação do seu exercício. O que é particularmente verdade para o funcionamento das televisões.
publicado no Diário Económico.
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