uma questão ideológica?
A reforma da segurança social trouxe a ideologia de volta à disputa política. Pelo menos a crer nas declarações do primeiro-ministro e dos restantes líderes partidários. Para Marques Mendes, Sócrates recusa a ”proposta” do PSD por teimosia ideológica, já Sócrates aproveita o papão da ”privatização” para piscar o olho à esquerda. Entretanto, Louçã e Jerónimo repetem, pela enésima vez, que este executivo governa à direita.
Se a ideologização da discussão política é útil, pois ajuda a enquadrar as escolhas, é também contraproducente quando os termos em que é feita assentam em equívocos. É o que tem acontecido nos últimos dias no debate sobre segurança social.
Primeiro de tudo, uma clarificação. A recusa dum pacto entre Governo e PSD não depende de nenhum princípio ideológico. Basta um mínimo de pragmatismo na gestão da coisa pública para perceber que os custos de transição dum sistema como o português, baseado na repartição, para um sistema, como o enunciado pelo PSD, que combine repartição com plafonamento vertical são insustentáveis.
Acontece que nem a rejeição que o Governo tem feito da proposta do PSD tem a ver com opções ideológicas sobre segurança social, nem a proposta do PSD contribui para aumentar a sustentabilidade futura do sistema. É que quem acha que ao defender um modelo de repartição está a defender um modelo social historicamente arquitectado pela esquerda está equivocado; do mesmo modo que quem pensa que o futuro da segurança social depende duma opção pela capitalização falha completamente o alvo, optando por envolver o debate num improdutivo fetichismo ideológico.
O modelo de pensões português tem um lastro pesado, com raízes no Estado Corporativo e, como todos os sistemas bismarckianos, é conservador, revelando particular imobilismo institucional. Historicamente, o nosso modelo ajudou a aprofundar a clivagem entre ‘insiders’ e ‘outsiders’ e mesmo com o esforço feito ao longo da democracia, a sua capacidade redistributiva é insuficiente e a sua eficácia reside, essencialmente, na capacidade de reproduzir um determinado equilíbrio social, previamente existente. Não deixa, por isso, de ser paradoxal ver a esquerda e os sindicatos a defenderem o modelo português.
Mas mudar um sistema de pensões não é algo que se faça com ligeireza. Como nos ensina a literatura neo-institucionalista sobre reformas de pensões (por todos, veja-se a obra de Paul Pierson), os custos associados à mudança de modelo são superiores à continuidade dos sistemas existentes, mesmo quando estes não são óptimos. Não por acaso, pese embora a retórica, as rupturas políticas mais profundas pouco mudaram a arquitectura dos sistemas de pensões. Podemos não simpatizar com um determinado modelo de pensões, mas achar que por arte política ele é transformável numa outra coisa é, no mínimo, irrealista. O caminho passa por recalibrar com realismo os sistemas herdados. É um daqueles casos em que é mesmo preciso ”fazer as contas”.
A proposta do PSD não só padece destes males, como tem produzido um dano colateral da maior importância: afastou o debate sobre a segurança social dos seus aspectos nucleares. O que garante a sustentabilidade futura não é a opção entre repartição e capitalização. Os sistemas de repartição e de capitalização são sustentáveis, de modo idêntico, se as economias mostrarem dinamismo, se a taxa de emprego aumentar, se a natalidade voltar a crescer e, não menos relevante, se a protecção social evoluir duma lógica conservadora, excessivamente centrada na protecção dos riscos sociais tradicionais para um investimento no futuro – por exemplo através duma política moderna de apoio à família e da facilitação da entrada dos jovens no mercado de trabalho. Para todos estes factores, a segurança social pode dar um contributo inestimável, desde que sejam feitas rupturas políticas corajosas, que reorientem o contrato social em que assenta o Estado Providência.
A proposta do PSD teve, desde já, uma consequência: afastou a discussão da proposta sustentada que Governo e parceiros discutem há meses na concertação social e centrou o debate num fetichismo ideológico que agrada à táctica política, independentemente dos quadrantes. Governo, oposições, parceiros sociais, ninguém resistiu. Se há matéria onde a clivagem ideológica é hoje particularmente relevante é a segurança social. Contudo, não nos termos em que o PSD a colocou.
publicado no Diário Económico.
Se a ideologização da discussão política é útil, pois ajuda a enquadrar as escolhas, é também contraproducente quando os termos em que é feita assentam em equívocos. É o que tem acontecido nos últimos dias no debate sobre segurança social.
Primeiro de tudo, uma clarificação. A recusa dum pacto entre Governo e PSD não depende de nenhum princípio ideológico. Basta um mínimo de pragmatismo na gestão da coisa pública para perceber que os custos de transição dum sistema como o português, baseado na repartição, para um sistema, como o enunciado pelo PSD, que combine repartição com plafonamento vertical são insustentáveis.
Acontece que nem a rejeição que o Governo tem feito da proposta do PSD tem a ver com opções ideológicas sobre segurança social, nem a proposta do PSD contribui para aumentar a sustentabilidade futura do sistema. É que quem acha que ao defender um modelo de repartição está a defender um modelo social historicamente arquitectado pela esquerda está equivocado; do mesmo modo que quem pensa que o futuro da segurança social depende duma opção pela capitalização falha completamente o alvo, optando por envolver o debate num improdutivo fetichismo ideológico.
O modelo de pensões português tem um lastro pesado, com raízes no Estado Corporativo e, como todos os sistemas bismarckianos, é conservador, revelando particular imobilismo institucional. Historicamente, o nosso modelo ajudou a aprofundar a clivagem entre ‘insiders’ e ‘outsiders’ e mesmo com o esforço feito ao longo da democracia, a sua capacidade redistributiva é insuficiente e a sua eficácia reside, essencialmente, na capacidade de reproduzir um determinado equilíbrio social, previamente existente. Não deixa, por isso, de ser paradoxal ver a esquerda e os sindicatos a defenderem o modelo português.
Mas mudar um sistema de pensões não é algo que se faça com ligeireza. Como nos ensina a literatura neo-institucionalista sobre reformas de pensões (por todos, veja-se a obra de Paul Pierson), os custos associados à mudança de modelo são superiores à continuidade dos sistemas existentes, mesmo quando estes não são óptimos. Não por acaso, pese embora a retórica, as rupturas políticas mais profundas pouco mudaram a arquitectura dos sistemas de pensões. Podemos não simpatizar com um determinado modelo de pensões, mas achar que por arte política ele é transformável numa outra coisa é, no mínimo, irrealista. O caminho passa por recalibrar com realismo os sistemas herdados. É um daqueles casos em que é mesmo preciso ”fazer as contas”.
A proposta do PSD não só padece destes males, como tem produzido um dano colateral da maior importância: afastou o debate sobre a segurança social dos seus aspectos nucleares. O que garante a sustentabilidade futura não é a opção entre repartição e capitalização. Os sistemas de repartição e de capitalização são sustentáveis, de modo idêntico, se as economias mostrarem dinamismo, se a taxa de emprego aumentar, se a natalidade voltar a crescer e, não menos relevante, se a protecção social evoluir duma lógica conservadora, excessivamente centrada na protecção dos riscos sociais tradicionais para um investimento no futuro – por exemplo através duma política moderna de apoio à família e da facilitação da entrada dos jovens no mercado de trabalho. Para todos estes factores, a segurança social pode dar um contributo inestimável, desde que sejam feitas rupturas políticas corajosas, que reorientem o contrato social em que assenta o Estado Providência.
A proposta do PSD teve, desde já, uma consequência: afastou a discussão da proposta sustentada que Governo e parceiros discutem há meses na concertação social e centrou o debate num fetichismo ideológico que agrada à táctica política, independentemente dos quadrantes. Governo, oposições, parceiros sociais, ninguém resistiu. Se há matéria onde a clivagem ideológica é hoje particularmente relevante é a segurança social. Contudo, não nos termos em que o PSD a colocou.
publicado no Diário Económico.
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