O socialismo e a gaveta
Like love and the credit card, political catch-phrases have an initial attraction that leads to later complications.
Michael Waller
A tendência não é nova: cada vez que o PS governa, logo surge a acusação de que o faz com “políticas de direita”. Ao longo de décadas, o PCP foi-se especializando neste discurso, tendo-se, entretanto, o BE juntado ao coro. Com o passar do tempo, as políticas deixaram de ser apenas de “direita” e passaram a ser vistas como “neo-liberais”. Até aqui, convenhamos, o modo como é visto o Governo de José Sócrates não se distingue das anteriores experiências de executivos PS. Há, contudo, uma novidade. De há um ano para cá, já não é só o bloco social à esquerda do Governo que acusa o PS de governar à direita. É também a direita que afirma que o PS lhe está a roubar o espaço político, aproveitando para fazer o que nem Durão Barroso, nem Santana Lopes quiseram ou puderam fazer.
Entre aqueles que à direita se opõem ao Governo, a tendência é vista com evidente preocupação. Não havendo divergências na substância das políticas, a oposição, quer parlamentar, quer mediática, vê-se entrincheirada num combate politiqueiro ao Governo, assente numa abordagem casuística na qual tudo o que lhe resta é dizer “esfola” quando o Governo já disse “mata”.
Nisto, PS e Governo revelam alguns sinais de entusiasmo. Compreende-se: com a oposição parlamentar em processo auto-fágico e com a ocupação de um espaço político que não é seu, o potencial hegemónico do PS parece crescer todas as semanas. Ao que há que somar o exemplo vindo de fora, com as três maiorias absolutas sucessivas do Labour de Tony Blair – alcançadas através da ocupação do espaço político do principal competidor, no caso os “Tories”.
Como todas as narrativas políticas que parecem inicialmente entusiasmantes, também este tipo de estratégia traz consigo um conjunto importante de complicações políticas e eleitorais.
Antes de mais, a experiência do passado. Quando o PS governou num contexto de dificuldades financeiras e económicas, tendo metido o “socialismo na gaveta”, fê-lo com consequências eleitorais conhecidas: 20,7%, o seu pior resultado em legislativas. O realismo saiu caro, até porque, ontem como hoje, há sempre alguém disposto a cavalgar populisticamente a austeridade, recolhendo os seus frutos eleitorais.
Mas ainda que tudo o resto fosse igual, o “exemplo Blair” não é importável de modo linear. Se mais não fosse, opõem-se-lhe a fraca ancoragem social do voto em Portugal. No Reino Unido bem pode o Labour caminhar para o centro do centro do centro que, na hora da verdade, o seu eleitorado tradicional estará do seu lado. Com um sistema eleitoral em que o “vencedor leva tudo” e com um partido construído de baixo para cima, é natural que a volatilidade do voto seja reduzida. Em Portugal as coisas passam-se de modo diferente. Não apenas os partidos de poder foram construídos pela vontade de elites, tendo bases sociais voláteis e frágeis, como o próprio sistema eleitoral incentiva a pulverização do voto. No caso do PS, o cenário complica-se por força da combinação de estabilização do voto nos partidos à sua esquerda e maior capacidade de concentração de voto no PSD à direita. Para mais, convém ter presente o que se passou nas presidenciais, onde a indicação de voto num candidato foi muito pouco mobilizadora.
Contudo, o que tem sido muitas das vezes descrito como ocupação do espaço do centro e do centro-direita pelo actual Governo trata-se, na maior parte dos casos, de um eufemismo para descrever aquela que é a marca genética do executivo de José Sócrates, o enfrentar dos “interesses corporativos”. A confrontação com os actores sectoriais tem sido uma forma eficaz para que aos olhos do “interesse comum” as mudanças sejam percepcionadas como legítimas. Mas não deixa de ser verdade que numa democracia ainda longe da institucionalização, esta estratégia produz danos colaterais. Portugal precisa de mais e não de menos factores de intermediação entre a sociedade e a esfera política e a valorização da negociação é uma das poucas formas conhecidas de tornar orgânica a representação da sociedade. Com uma crescente pulverização dos interesses organizados, a ancoragem política dos blocos sociais fica ainda mais frágil e a estabilidade do sistema partidário será, no médio prazo, afectada. Também aqui, o eleitorado tenderá a fugir e, no que é grave, quando o fizer, fá-lo-á sem rumo.
Assim, o que aparenta ser uma estratégia eleitoralmente sustentável, pode afinal revelar-se uma opção de enorme risco. O Governo enfrenta um importante dilema: saber se deve continuar a fazer o que o realismo obriga a que seja feito, fragilizando a relação com a sua base social ou, pelo contrário, governar consolidando a sua ancoragem partidária e eleitoral. Enganar-se-á quem pensa que há uma solução win-win, assente num futuro de sucessivas vitórias eleitorais. O país ficará um pouco mais sustentável, mas quem vier depois terá como principal missão “juntar os cacos”. Está em jogo um trade-off entre realismo e sustentabilidade futura do PS, um trade-off que é também entre governabilidade e institucionalização da democracia. A opção tomada, sendo acertada, é de enorme risco. Um risco talvez apenas superado pela tentação para fingir que ele não existe.
Publicado no número de Junho da Revista Atlântico.
Michael Waller
A tendência não é nova: cada vez que o PS governa, logo surge a acusação de que o faz com “políticas de direita”. Ao longo de décadas, o PCP foi-se especializando neste discurso, tendo-se, entretanto, o BE juntado ao coro. Com o passar do tempo, as políticas deixaram de ser apenas de “direita” e passaram a ser vistas como “neo-liberais”. Até aqui, convenhamos, o modo como é visto o Governo de José Sócrates não se distingue das anteriores experiências de executivos PS. Há, contudo, uma novidade. De há um ano para cá, já não é só o bloco social à esquerda do Governo que acusa o PS de governar à direita. É também a direita que afirma que o PS lhe está a roubar o espaço político, aproveitando para fazer o que nem Durão Barroso, nem Santana Lopes quiseram ou puderam fazer.
Entre aqueles que à direita se opõem ao Governo, a tendência é vista com evidente preocupação. Não havendo divergências na substância das políticas, a oposição, quer parlamentar, quer mediática, vê-se entrincheirada num combate politiqueiro ao Governo, assente numa abordagem casuística na qual tudo o que lhe resta é dizer “esfola” quando o Governo já disse “mata”.
Nisto, PS e Governo revelam alguns sinais de entusiasmo. Compreende-se: com a oposição parlamentar em processo auto-fágico e com a ocupação de um espaço político que não é seu, o potencial hegemónico do PS parece crescer todas as semanas. Ao que há que somar o exemplo vindo de fora, com as três maiorias absolutas sucessivas do Labour de Tony Blair – alcançadas através da ocupação do espaço político do principal competidor, no caso os “Tories”.
Como todas as narrativas políticas que parecem inicialmente entusiasmantes, também este tipo de estratégia traz consigo um conjunto importante de complicações políticas e eleitorais.
Antes de mais, a experiência do passado. Quando o PS governou num contexto de dificuldades financeiras e económicas, tendo metido o “socialismo na gaveta”, fê-lo com consequências eleitorais conhecidas: 20,7%, o seu pior resultado em legislativas. O realismo saiu caro, até porque, ontem como hoje, há sempre alguém disposto a cavalgar populisticamente a austeridade, recolhendo os seus frutos eleitorais.
Mas ainda que tudo o resto fosse igual, o “exemplo Blair” não é importável de modo linear. Se mais não fosse, opõem-se-lhe a fraca ancoragem social do voto em Portugal. No Reino Unido bem pode o Labour caminhar para o centro do centro do centro que, na hora da verdade, o seu eleitorado tradicional estará do seu lado. Com um sistema eleitoral em que o “vencedor leva tudo” e com um partido construído de baixo para cima, é natural que a volatilidade do voto seja reduzida. Em Portugal as coisas passam-se de modo diferente. Não apenas os partidos de poder foram construídos pela vontade de elites, tendo bases sociais voláteis e frágeis, como o próprio sistema eleitoral incentiva a pulverização do voto. No caso do PS, o cenário complica-se por força da combinação de estabilização do voto nos partidos à sua esquerda e maior capacidade de concentração de voto no PSD à direita. Para mais, convém ter presente o que se passou nas presidenciais, onde a indicação de voto num candidato foi muito pouco mobilizadora.
Contudo, o que tem sido muitas das vezes descrito como ocupação do espaço do centro e do centro-direita pelo actual Governo trata-se, na maior parte dos casos, de um eufemismo para descrever aquela que é a marca genética do executivo de José Sócrates, o enfrentar dos “interesses corporativos”. A confrontação com os actores sectoriais tem sido uma forma eficaz para que aos olhos do “interesse comum” as mudanças sejam percepcionadas como legítimas. Mas não deixa de ser verdade que numa democracia ainda longe da institucionalização, esta estratégia produz danos colaterais. Portugal precisa de mais e não de menos factores de intermediação entre a sociedade e a esfera política e a valorização da negociação é uma das poucas formas conhecidas de tornar orgânica a representação da sociedade. Com uma crescente pulverização dos interesses organizados, a ancoragem política dos blocos sociais fica ainda mais frágil e a estabilidade do sistema partidário será, no médio prazo, afectada. Também aqui, o eleitorado tenderá a fugir e, no que é grave, quando o fizer, fá-lo-á sem rumo.
Assim, o que aparenta ser uma estratégia eleitoralmente sustentável, pode afinal revelar-se uma opção de enorme risco. O Governo enfrenta um importante dilema: saber se deve continuar a fazer o que o realismo obriga a que seja feito, fragilizando a relação com a sua base social ou, pelo contrário, governar consolidando a sua ancoragem partidária e eleitoral. Enganar-se-á quem pensa que há uma solução win-win, assente num futuro de sucessivas vitórias eleitorais. O país ficará um pouco mais sustentável, mas quem vier depois terá como principal missão “juntar os cacos”. Está em jogo um trade-off entre realismo e sustentabilidade futura do PS, um trade-off que é também entre governabilidade e institucionalização da democracia. A opção tomada, sendo acertada, é de enorme risco. Um risco talvez apenas superado pela tentação para fingir que ele não existe.
Publicado no número de Junho da Revista Atlântico.
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