A dimensão do erro
A vitória eleitoral dos Democratas nas eleições da passada semana foi recebida como uma transformação positiva, por significar o início de uma nova era na política interna norte-americana e, essencialmente, por implicar uma mudança na postura internacional dos EUA (leia-se, por obrigar a uma alteração na política para o Iraque). Mas será mesmo assim?
Há um conjunto de sinais que apontam para um cenário mais pessimista.
Antes de mais, a agenda interna. Ao contrário do que aconteceu com a “revolução conservadora”, ou antes com os ‘new democrats’ de Bill Clinton, a actual vitória Democrata não assenta numa nova “grelha” política. Como lembrava George Lakoff, no ainda actual ‘Don’t think of an elephant!’, o Partido Democrata está preso numa leitura da realidade em que os termos de análise têm sido formatados pelo Partido Republicano. A consequência é que muitas das vitórias democratas assentaram numa agenda que mistura conservadorismo social com proteccionismo económico. Uma agenda que mistura o pior de dois mundos.
Talvez os exemplos mais flagrantes disso mesmo sejam a oposição ao comércio livre e o combate à imigração que estiveram no topo das prioridades de muitos dos candidatos democratas que conquistaram lugares a republicanos.
O nacionalismo económico é uma velha causa da esquerda norte-americana. Nesta eleição o tema reganhou relevância eleitoral. Com Clinton, em larga medida por força da acção do seu Secretário de Estado do Trabalho, Robert Reich, o Partido Democrata defendia que a resposta à abertura das economias e à exposição dos EUA à liberalização do comércio passava, e bem, por um investimento no capital humano. Hoje, para muitos dos representantes democratas, o que há que fazer é defender os empregos norte-americanos, combatendo os acordos comerciais com a China e com o México, com a argumento de que estão a ser deslocalizados muitos postos de trabalho. Curiosamente, não é questionada a razão por que há postos de trabalho que são “deslocados” para economias que se tornaram mais competitivas pela aposta na qualificação dos seus activos.
Muitos candidatos democratas combinaram o discurso do nacionalismo económico com promessas de intensificar o combate à imigração. Em última análise, não é só a deslocalização de empresas para o México que está a roubar postos de trabalho aos norte-americanos, o problema são também os mexicanos que vêm ocupar postos de trabalho que “pertencem” aos norte-americanos. Onde é que já ouvimos este argumento?
Claro que há elementos muito positivos na vitória dos Democratas. Antes de mais, a derrota do neoconservadorismo que começará a libertar os EUA da agenda messiânica; depois, os sinais de que os temas ambientais adquiriram relevância política; e, finalmente, os resultados dos vários referendos sobre costumes (do aborto ao casamento de homossexuais) que revelaram que, nestes aspectos, a sociedade norte-americana tem evoluído positivamente. A eleição de Nancy Pelosi para ‘Speaker of the House’ é, porventura, a corporização do lado positivo desta vitória.
E isto leva-nos ao Iraque, tema que marcou indelevelmente as eleições. Como tem sido assinalado, pese embora a retórica, a vitória democrata não alterará a situação no território. Até porque só há uma de três hipóteses: ou continua tudo como até agora, num equilíbrio instável, com mortes diárias de soldados norte-americanos e massacres de iraquianos; ou há uma retirada parcial do contingente militar, o que só servirá para expor ainda mais os militares que ficam no terreno; ou, finalmente, uma retirada total, que, depois do erro colossal que foi a destruição do aparelho de Estado iraquiano, significaria deixar o país próximo do “estado de natureza” hobbesiano.
Perante estes três cenários, os mesmos que foram ferozes defensores da intervenção norte-americana têm-se regozijado com mais esta prova de que não havia alternativa à política seguida pela administração Bush. Nada de mais errado. A situação a que chegámos só serve para provar a dimensão do erro cometido e a encruzilhada para a qual a administração norte-americana empurrou o mundo. É por isso que, pese embora os aspectos preocupantes da vitória dos Democratas, o facto de esta pôr fim ao messianismo político neoconservador e (espera-se) fazer regressar o realismo à política internacional norte-americana é, por si só, uma importante mudança. Ainda que com pouco significado para o Iraque.
publicado no Diário Económico.
Há um conjunto de sinais que apontam para um cenário mais pessimista.
Antes de mais, a agenda interna. Ao contrário do que aconteceu com a “revolução conservadora”, ou antes com os ‘new democrats’ de Bill Clinton, a actual vitória Democrata não assenta numa nova “grelha” política. Como lembrava George Lakoff, no ainda actual ‘Don’t think of an elephant!’, o Partido Democrata está preso numa leitura da realidade em que os termos de análise têm sido formatados pelo Partido Republicano. A consequência é que muitas das vitórias democratas assentaram numa agenda que mistura conservadorismo social com proteccionismo económico. Uma agenda que mistura o pior de dois mundos.
Talvez os exemplos mais flagrantes disso mesmo sejam a oposição ao comércio livre e o combate à imigração que estiveram no topo das prioridades de muitos dos candidatos democratas que conquistaram lugares a republicanos.
O nacionalismo económico é uma velha causa da esquerda norte-americana. Nesta eleição o tema reganhou relevância eleitoral. Com Clinton, em larga medida por força da acção do seu Secretário de Estado do Trabalho, Robert Reich, o Partido Democrata defendia que a resposta à abertura das economias e à exposição dos EUA à liberalização do comércio passava, e bem, por um investimento no capital humano. Hoje, para muitos dos representantes democratas, o que há que fazer é defender os empregos norte-americanos, combatendo os acordos comerciais com a China e com o México, com a argumento de que estão a ser deslocalizados muitos postos de trabalho. Curiosamente, não é questionada a razão por que há postos de trabalho que são “deslocados” para economias que se tornaram mais competitivas pela aposta na qualificação dos seus activos.
Muitos candidatos democratas combinaram o discurso do nacionalismo económico com promessas de intensificar o combate à imigração. Em última análise, não é só a deslocalização de empresas para o México que está a roubar postos de trabalho aos norte-americanos, o problema são também os mexicanos que vêm ocupar postos de trabalho que “pertencem” aos norte-americanos. Onde é que já ouvimos este argumento?
Claro que há elementos muito positivos na vitória dos Democratas. Antes de mais, a derrota do neoconservadorismo que começará a libertar os EUA da agenda messiânica; depois, os sinais de que os temas ambientais adquiriram relevância política; e, finalmente, os resultados dos vários referendos sobre costumes (do aborto ao casamento de homossexuais) que revelaram que, nestes aspectos, a sociedade norte-americana tem evoluído positivamente. A eleição de Nancy Pelosi para ‘Speaker of the House’ é, porventura, a corporização do lado positivo desta vitória.
E isto leva-nos ao Iraque, tema que marcou indelevelmente as eleições. Como tem sido assinalado, pese embora a retórica, a vitória democrata não alterará a situação no território. Até porque só há uma de três hipóteses: ou continua tudo como até agora, num equilíbrio instável, com mortes diárias de soldados norte-americanos e massacres de iraquianos; ou há uma retirada parcial do contingente militar, o que só servirá para expor ainda mais os militares que ficam no terreno; ou, finalmente, uma retirada total, que, depois do erro colossal que foi a destruição do aparelho de Estado iraquiano, significaria deixar o país próximo do “estado de natureza” hobbesiano.
Perante estes três cenários, os mesmos que foram ferozes defensores da intervenção norte-americana têm-se regozijado com mais esta prova de que não havia alternativa à política seguida pela administração Bush. Nada de mais errado. A situação a que chegámos só serve para provar a dimensão do erro cometido e a encruzilhada para a qual a administração norte-americana empurrou o mundo. É por isso que, pese embora os aspectos preocupantes da vitória dos Democratas, o facto de esta pôr fim ao messianismo político neoconservador e (espera-se) fazer regressar o realismo à política internacional norte-americana é, por si só, uma importante mudança. Ainda que com pouco significado para o Iraque.
publicado no Diário Económico.
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