Semana Horribilis
Primeiro foram as “vozes da rua”, depois a imprensa escrita, finalmente uma sondagem de opinião: muito mais tarde do que é comum, foi decretado o fim do “estado de graça”. Com a apresentação do Orçamento de Estado ter-se-á dado a viragem. Mas será exactamente assim?
Ao contrário do que havia acontecido com os dois primeiros-ministros anteriores, José Sócrates tem beneficiado, desde a tomada de posse, de uma improvável popularidade. Mesmo com medidas de austeridade, os seus índices de avaliação são positivos.
Duas razões explicam isto: uma primeira de contexto, os portugueses interiorizaram que a situação do País requeria políticas austeras e estabilidade institucional (Sócrates e, mais tarde, Cavaco Silva foram percepcionados como a personificação dessas ambições); e uma segunda que se liga com a marca que o primeiro-ministro imprimiu: enquanto Durão Barroso nunca conseguiu libertar-se de uma política exclusivamente centrada no défice e Santana Lopes enredou-se numa espiral de instabilidade, José Sócrates conciliou uma terapia de emergência nas contas públicas com capacidade reformista, à cabeça na segurança social e na educação.
Na verdade, a austeridade, menos do que uma limitação à acção governativa, funcionou como mecanismo capacitador das reformas. As dificuldades que o País enfrenta têm servido para criar as condições para o Governo alterar políticas. A estratégia foi eficaz, mas trouxe com ela importantes problemas para o discurso do Governo. Problemas que se acabariam por revelar no médio prazo. É provavelmente o que está agora a acontecer.
Desde o início que o discurso do Governo se revelou circunscrito a umas quantas expressões e ideias. Um dos aspectos centrais desse discurso foi o combate aos privilégios e a luta contra os interesses corporativos. Para além dos riscos que decorrem de se saber se os privilegiados são-no de facto e se a representação de interesses de modo orgânico deve ser remetida, sem mais, para a categoria de corporativo (que aliás, em Portugal tem uma conotação histórica que lhe confere um peso particularmente negativo), este discurso funciona enquanto cada um dos eleitores não se sentir como um dos “privilegiados”. Enquanto se diminui regalias aos professores, quem não é professor tende a concordar com as medidas. E o mesmo é válido para os médicos, para quem beneficia do subsídio de desemprego e por aí fora. O problema é quando chega o momento em que todos os portugueses se sentem alvo do discurso contra os privilégios injustificados.
Desse ponto de vista, o anúncio do aumento da electricidade por culpa dos consumidores pode ter sido a gota de água: não houve ninguém que não se sentisse provocado pelas declarações inexplicáveis do secretário de Estado da Indústria. De repente, todos os portugueses se tornavam “privilegiados”. Se a isto somarmos a introdução de portagens em algumas SCUT, o anúncio de taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias e a apresentação de um Orçamento de Estado de contenção, temos de facto uma “semana horribilis” para o Governo. Mas serão estes os acontecimentos responsáveis por aquilo que tem sido descrito como o fim do “estado de graça”?
Muito provavelmente, o aspecto essencial da “semana horribilis” não é ter, por uma sucessão de ‘gaffes’, posto fim ao estado de graça, é ter revelado o ponto de saturação do discurso que o Governo assumiu desde a tomada de posse. O que a semana de apresentação do O.E. expôs foi a necessidade de combinar um programa centrado na política de emergência social, adequado para responder à situação em que o executivo encontrou o País, com um discurso que lance as bases de uma nova estratégia mobilizadora.
Já é possível identificar alguns sinais de que o discurso do Governo começa a mudar. O ‘fair-play’ que entretanto o primeiro-ministro tem revelado perante as contestações ao Governo é disso exemplo e provavelmente mais avisado do que a estratégia adversativa até aqui dominante. Mas para que a “semana horribilis” não se torne a regra, mais do que evitar as liberdades discursivas dos membros do executivo, é preciso que o discurso sobre os privilégios vá sendo compensado por um sentido para as reformas – para além da lógica ideologicamente neutra em que demasiadas vezes tendem a assentar. É que ser comparativamente melhor a gerir políticas de austeridade e esperar que a retoma económica resolva tudo, não é, por si só, garantia para sucessos eleitorais.
publicado no Diário Económico.
Ao contrário do que havia acontecido com os dois primeiros-ministros anteriores, José Sócrates tem beneficiado, desde a tomada de posse, de uma improvável popularidade. Mesmo com medidas de austeridade, os seus índices de avaliação são positivos.
Duas razões explicam isto: uma primeira de contexto, os portugueses interiorizaram que a situação do País requeria políticas austeras e estabilidade institucional (Sócrates e, mais tarde, Cavaco Silva foram percepcionados como a personificação dessas ambições); e uma segunda que se liga com a marca que o primeiro-ministro imprimiu: enquanto Durão Barroso nunca conseguiu libertar-se de uma política exclusivamente centrada no défice e Santana Lopes enredou-se numa espiral de instabilidade, José Sócrates conciliou uma terapia de emergência nas contas públicas com capacidade reformista, à cabeça na segurança social e na educação.
Na verdade, a austeridade, menos do que uma limitação à acção governativa, funcionou como mecanismo capacitador das reformas. As dificuldades que o País enfrenta têm servido para criar as condições para o Governo alterar políticas. A estratégia foi eficaz, mas trouxe com ela importantes problemas para o discurso do Governo. Problemas que se acabariam por revelar no médio prazo. É provavelmente o que está agora a acontecer.
Desde o início que o discurso do Governo se revelou circunscrito a umas quantas expressões e ideias. Um dos aspectos centrais desse discurso foi o combate aos privilégios e a luta contra os interesses corporativos. Para além dos riscos que decorrem de se saber se os privilegiados são-no de facto e se a representação de interesses de modo orgânico deve ser remetida, sem mais, para a categoria de corporativo (que aliás, em Portugal tem uma conotação histórica que lhe confere um peso particularmente negativo), este discurso funciona enquanto cada um dos eleitores não se sentir como um dos “privilegiados”. Enquanto se diminui regalias aos professores, quem não é professor tende a concordar com as medidas. E o mesmo é válido para os médicos, para quem beneficia do subsídio de desemprego e por aí fora. O problema é quando chega o momento em que todos os portugueses se sentem alvo do discurso contra os privilégios injustificados.
Desse ponto de vista, o anúncio do aumento da electricidade por culpa dos consumidores pode ter sido a gota de água: não houve ninguém que não se sentisse provocado pelas declarações inexplicáveis do secretário de Estado da Indústria. De repente, todos os portugueses se tornavam “privilegiados”. Se a isto somarmos a introdução de portagens em algumas SCUT, o anúncio de taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias e a apresentação de um Orçamento de Estado de contenção, temos de facto uma “semana horribilis” para o Governo. Mas serão estes os acontecimentos responsáveis por aquilo que tem sido descrito como o fim do “estado de graça”?
Muito provavelmente, o aspecto essencial da “semana horribilis” não é ter, por uma sucessão de ‘gaffes’, posto fim ao estado de graça, é ter revelado o ponto de saturação do discurso que o Governo assumiu desde a tomada de posse. O que a semana de apresentação do O.E. expôs foi a necessidade de combinar um programa centrado na política de emergência social, adequado para responder à situação em que o executivo encontrou o País, com um discurso que lance as bases de uma nova estratégia mobilizadora.
Já é possível identificar alguns sinais de que o discurso do Governo começa a mudar. O ‘fair-play’ que entretanto o primeiro-ministro tem revelado perante as contestações ao Governo é disso exemplo e provavelmente mais avisado do que a estratégia adversativa até aqui dominante. Mas para que a “semana horribilis” não se torne a regra, mais do que evitar as liberdades discursivas dos membros do executivo, é preciso que o discurso sobre os privilégios vá sendo compensado por um sentido para as reformas – para além da lógica ideologicamente neutra em que demasiadas vezes tendem a assentar. É que ser comparativamente melhor a gerir políticas de austeridade e esperar que a retoma económica resolva tudo, não é, por si só, garantia para sucessos eleitorais.
publicado no Diário Económico.
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