Para acabar de vez com o assunto
Não sei se em alguma sondagem foi perguntado aos portugueses se queriam continuar a discutir a despenalização do aborto. Caso tivesse sido, arrisco dizer que uma esmagadora maioria tenderia a responder não. Tirando uma mão-cheia de activistas militantes de ambos os lados da barricada, a maior parte dos portugueses está cansada da discussão. É natural. Como qualquer pessoa que já tenha passado, directa ou indirectamente, pela situação sabe, o aborto toca dimensões complexas das nossas vidas e envolve decisões dramáticas e vividas com sofrimento. Que esse tema seja alvo de sistemática discussão pública só pode causar repulsa e servir para relembrar o sofrimento.
É também isso que está em causa no referendo de próximo Domingo, fazer com que o aborto deixe de ser tema de discussão política e seja devolvido ao seu lugar: a esfera privada e da responsabilidade individual. Entre outras garantias que oferece, a vitória do sim encerra o assunto e ultrapassa a situação actual.
A solução proposta de despenalizar a IVG até às dez semanas é moderada e, acima de tudo, numa postura própria de sociedades liberais, remete a decisão para a consciência individual. Pelo caminho, ajuda a pôr fim ao excepcionalismo português. Ninguém é obrigado a nada, mas todos passamos a ser livres de escolher, sem sermos alvo de juízos criminais ou sem termos sobre nós um espectro moral corporizado numa disposição do código penal. A questão a referendo visa saber se as mulheres devem ser criminalmente condenadas por praticar um aborto. Nada mais.
Não vale a pena “dourar a pílula”. Mais do que uma discussão metafísica, trata-se de saber se as leis são para ser cumpridas ou se, pelo contrário, aceitamos colectivamente e com condescendência, numa atitude própria de uma República das Bananas, que o que é Lei de nada vale. Porque é essa a situação actual. Há uma disposição no Código Penal, humilhante para as mulheres, que as condena a uma pena de prisão até três anos e com a qual não só ninguém concorda, como não é cumprida. O que está em causa é, apenas e só, colocar fim a essa pena. No fundo, saber se tudo se mantém como até aqui, ou se, pelo contrário, é colocado fim à situação cínica em que vivemos.
Mas, há, também, uma dimensão social – e por isso pública – no referendo do próximo Domingo. Só um elevado grau de hipocrisia pode querer convencer-nos que o status quo, em que há penalização do aborto, não reproduz desigualdades sociais. A realidade é cruel: quem tem recursos vai a Badajoz ou às clínicas privadas que beneficiam da actual lei; quem não tem, “opta” pelo risco e pela insegurança.
São as mulheres mais pobres que recorrem ao aborto clandestino e são também elas que chegam diariamente aos hospitais públicos com complicações decorrentes de interrupções realizadas em condições insalubres e atentadoras da dignidade humana. Fingir que as coisas não são assim, revela uma enorme insensibilidade social e esquece as mulheres portuguesas que morreram desde 1998, vítimas de aborto clandestino, bem como o drama das cerca de 1200 que todos os anos entram nas urgências dos hospitais públicos com complicações derivadas daquele acto (números oficiais que pecam por defeito). Chega, por isso, a ser chocante o surto de consciência social que contaminou os defensores do não. Ainda para mais quando muitos deles são acérrimos defensores da diminuição das funções sociais do Estado. Convicção legítima mas que, a crer nas últimas semanas e nas propostas de aconselhamento e apoios sociais, parece ter sido convenientemente suspensa.
A vitória do sim no próximo referendo é, por isso, uma dupla garantia. Em primeiro lugar, de que o aborto e os dramas que lhe estão associados passam a ser vividos privadamente; em segundo lugar, que perante situações particularmente dramáticas, a condição social (ao atirar as mulheres mais desfavorecidas para a insegurança do aborto clandestino) não é um factor de agravamento. Além de tudo o mais, uma vitória do sim contribuirá para vermos o aborto afastado da agenda pública e política.
publicado no Diário Económico.
É também isso que está em causa no referendo de próximo Domingo, fazer com que o aborto deixe de ser tema de discussão política e seja devolvido ao seu lugar: a esfera privada e da responsabilidade individual. Entre outras garantias que oferece, a vitória do sim encerra o assunto e ultrapassa a situação actual.
A solução proposta de despenalizar a IVG até às dez semanas é moderada e, acima de tudo, numa postura própria de sociedades liberais, remete a decisão para a consciência individual. Pelo caminho, ajuda a pôr fim ao excepcionalismo português. Ninguém é obrigado a nada, mas todos passamos a ser livres de escolher, sem sermos alvo de juízos criminais ou sem termos sobre nós um espectro moral corporizado numa disposição do código penal. A questão a referendo visa saber se as mulheres devem ser criminalmente condenadas por praticar um aborto. Nada mais.
Não vale a pena “dourar a pílula”. Mais do que uma discussão metafísica, trata-se de saber se as leis são para ser cumpridas ou se, pelo contrário, aceitamos colectivamente e com condescendência, numa atitude própria de uma República das Bananas, que o que é Lei de nada vale. Porque é essa a situação actual. Há uma disposição no Código Penal, humilhante para as mulheres, que as condena a uma pena de prisão até três anos e com a qual não só ninguém concorda, como não é cumprida. O que está em causa é, apenas e só, colocar fim a essa pena. No fundo, saber se tudo se mantém como até aqui, ou se, pelo contrário, é colocado fim à situação cínica em que vivemos.
Mas, há, também, uma dimensão social – e por isso pública – no referendo do próximo Domingo. Só um elevado grau de hipocrisia pode querer convencer-nos que o status quo, em que há penalização do aborto, não reproduz desigualdades sociais. A realidade é cruel: quem tem recursos vai a Badajoz ou às clínicas privadas que beneficiam da actual lei; quem não tem, “opta” pelo risco e pela insegurança.
São as mulheres mais pobres que recorrem ao aborto clandestino e são também elas que chegam diariamente aos hospitais públicos com complicações decorrentes de interrupções realizadas em condições insalubres e atentadoras da dignidade humana. Fingir que as coisas não são assim, revela uma enorme insensibilidade social e esquece as mulheres portuguesas que morreram desde 1998, vítimas de aborto clandestino, bem como o drama das cerca de 1200 que todos os anos entram nas urgências dos hospitais públicos com complicações derivadas daquele acto (números oficiais que pecam por defeito). Chega, por isso, a ser chocante o surto de consciência social que contaminou os defensores do não. Ainda para mais quando muitos deles são acérrimos defensores da diminuição das funções sociais do Estado. Convicção legítima mas que, a crer nas últimas semanas e nas propostas de aconselhamento e apoios sociais, parece ter sido convenientemente suspensa.
A vitória do sim no próximo referendo é, por isso, uma dupla garantia. Em primeiro lugar, de que o aborto e os dramas que lhe estão associados passam a ser vividos privadamente; em segundo lugar, que perante situações particularmente dramáticas, a condição social (ao atirar as mulheres mais desfavorecidas para a insegurança do aborto clandestino) não é um factor de agravamento. Além de tudo o mais, uma vitória do sim contribuirá para vermos o aborto afastado da agenda pública e política.
publicado no Diário Económico.
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