sábado, setembro 25, 2010

Façam o favor de se distinguirem

Tem sido difícil encontrar um argumento favorável à proposta de revisão constitucional de Passos Coelho. Do CDS ao Bloco, passando pela "melhoria incontestável" com que Cavaco Silva nos brindou do alto da sua cátedra, o PSD tem sido devidamente fustigado. Pelo caminho, Sócrates e o PS, que viam o seu capital político ser delapidado pela crise e pelas contradições entre o que prometeram nas eleições e a realidade orçamental, encontraram também uma tábua de salvação conjuntural. As críticas fazem sentido: a proposta foi apresentada de modo atabalhoado, o conteúdo revela pouca maturação e, como se não bastasse, Passos Coelho tem revelado um comportamento errático, dividido entre a defesa do projeto e uma sequência de recuos.

Mas, na verdade, se a proposta é, no curto prazo, manifestamente prejudicial para a afirmação eleitoral de Passos Coelho, pode bem revelar-se positiva para a mobilização política em Portugal.

É sabido que uma das principais singularidades do sistema partidário português é a grande proximidade ideológica entre os maiores partidos. No estudo de 2007 "Party Change in Southern Europe", em que se comparavam os partidos dos países da Europa do Sul através do seu posicionamento na escala esquerda-direita, Anna Bosco e Leonardo Morlino concluíam, por um lado, que a distância ideológica entre PS e PSD era bem menor do que, por exemplo, entre o PSOE e o PP em Espanha e, por outro, que tanto o PS como o PSD se ancoravam bem mais à esquerda do que os seus congéneres gregos, o PASOK e a Nova Democracia. Se esta proximidade ideológica pode sugerir alguma propensão para o entendimento, tem contudo uma outra face, bem mais negativa.

Quando a oferta partidária é indistinta, o mais natural é que a mobilização política diminua e o sentido do voto perca relevância. Ora, o que o PSD tem feito nos últimos meses pode prejudicar o partido eleitoralmente, mas terá dado um bom contributo para que PS e PSD se demarquem mais, o que não deixará de ter consequências no tipo de ancoragem que os partidos passam a ter. O PSD, prejudicando-se no curto prazo ao clarificar as águas, é bem capaz de ter feito um enorme favor à política portuguesa. Tanto mais que o tipo de diferenciação que procurou assenta também numa rutura com a agenda tradicional da direita portuguesa. Se, no passado, a distinção se fazia mais nos temas relacionados com costumes, com tiradas conservadoras ou argumentos securitários, projetando uma imagem de autoridade, Passos Coelho procura afirmar-se com uma agenda liberal, demarcando-se onde PS e PSD tradicionalmente estavam mais próximos: no papel do Estado na economia e nos temas sociais.

Podemos considerar que não há um bloco social maioritário que apoie a agenda de Passos Coelho e que o PSD, ao encostar-se muito à direita, diminuiu o seu potencial eleitoral; podemos também pensar que o PSD escolheu o instrumento errado, pois fazia mais sentido rever a sua declaração de princípios do que rever a Constituição, que deve refletir um amplo consenso. Seja como for, a redefinição programática do PSD obrigou também o PS a reposicionar-se e, mesmo que tenha sido feita de forma tosca e confusa, trouxe consigo uma clarificação ideológica que é positiva.

Texto publicado na edição do Expresso de 18 de setembro de 2010

sábado, setembro 18, 2010

Tenho Medo

Se me perguntarem qual é a minha prioridade na educação dos meus filhos, direi que é garantir que eles não têm medo. Medo físico, medo das personagens assombrosas que lhes surgem nos sonhos, mas também que têm a coragem suficiente para fazerem face às tormentas com que se defrontarão ao longo da vida. Se tiverem confiança, o resto virá por acréscimo. Para parafrasear a escritora Natalia Ginzburg, em "Le piccole virtú" (infelizmente não traduzido em português), tendemos a ensinar às crianças muitas das pequenas virtudes (a poupança, a prudência, a astúcia, a diplomacia e o desejo de sucesso), mas nisso esquecemo-nos das grandes virtudes (a generosidade, o amor à verdade, a abnegação, a coragem e o desejo de saber mais).

Peço desculpa se, dito assim, parece uma questão privada, pouco adequada a uma coluna de opinião, por natureza pública. Infelizmente não é. Para que os meus filhos - e, acrescento, os nossos filhos - não tenham medo, tenho também de lhes poder dizer que, se for caso disso, a lei estará do lado deles para os proteger. É isso que me leva a fazer em público uma confissão que é semiprivada: eu tenho medo da justiça em Portugal e o que se vai sabendo do famigerado processo Casa Pia só consolida as minhas inquietações.

Tenho, como provavelmente a maioria dos portugueses, convicções subjetivas sobre a culpabilidade ou inocência dos envolvidos no processo e sobre o que se pode ou não ter passado em toda esta história. Mas a justiça, para nos proteger a todos, não pode assentar em convicções subjetivas, formadas no espaço público e sugeridas pelos media. Pelo contrário, a justiça tem não só de se basear em factos e em evidências verificáveis como abstrair-se do que a comunidade pensa.

Tudo o que não aconteceu ao longo do processo Casa Pia, marcado desde o início pelo justicialismo primário e pela construção de uma narrativa sobre a culpabilidade nos media. Oito anos passados, a única consequência palpável deste processo é que têm sido somadas vítimas às vítimas de abusos sexuais. A última das quais é o próprio sistema de justiça.

Uma coisa é acreditarmos na culpa ou inocência deste ou daquele arguido, outra é termos a certeza de que, em democracia, é impensável que alguém possa ser condenado apenas com base em prova testemunhal não sujeita ao escrutínio crítico, quando todos os outros elementos de prova ou não consolidaram os testemunhos ou contraditaram-nos mesmo. É mesmo um daqueles casos em que é preferível um culpado absolvido do que um inocente condenado. Mas não é apenas isso que está em causa.

É também um sentimento egoísta. Eu quero ter a certeza de que se um dia alguém apontar o dedo aos meus filhos, dizendo que eles cometeram um crime hediondo do qual estão inocentes, eles poderão defender-se e que a justiça estará do lado deles. E que nunca, em circunstância alguma, poderão ser condenados se não ficar claro como cometeram o crime, em que dia, em que lugar. Tudo o que seja diferente disto remete-nos para o reino da arbitrariedade e só pode causar perplexidade. Mas, acima de tudo, dá-nos boas razões para termos medo. Muito medo.

Custa-me muito ter de educar os meus filhos num país onde a justiça funciona assim.

publicado na edição de 11 de Setembro do Expresso.

sexta-feira, setembro 10, 2010

O choque social é tecnológico

Portugal precisava de um impulso de modernização tecnológica aplicado à administração pública como de pão para a boca. Mas o choque tecnológico pode também ter consequências sociais, alargando desigualdades já muito profundas. E, quando combinado com deslumbramento tecnológico, o desastre é garantido: dos chips para as matrículas, apresentados como parte de um “cluster da telemática rodoviária”, ao VIA CTT que ninguém utilizou, já se inventou de tudo. Agora, ficou a saber-se, os beneficiários das prestações não-contributivas (RSI, subsídio social de desemprego e abono de família) têm de fazer prova de recursos através do site da Segurança Social. Como se não bastasse, em plena crise económica, começar por apertar o cerco àqueles que mais sofrem com o desemprego e a pobreza, o Governo lembrou-se também de lhes exigir o que não são capazes – aceder a um site na internet (que não têm) e preencher formulários que requerem competências específicas (que provavelmente lhes escapam). Se os cortes nas prestações sociais revelavam prioridades políticas erradas, o modo como estão a ser adoptados esconde um profundo desconhecimento do país, feito de muita pobreza persistente.
publicado no Expresso de 4 de Setembro.

quinta-feira, setembro 09, 2010

Presos no Pântano

A partir de quinta-feira há uma garantia: o quadro parlamentar não mudará até, pelo menos, Maio. Com o aproximar das presidenciais, Cavaco Silva fica constitucionalmente inibido e Portugal fica politicamente preso num pântano. Sem maioria parlamentar, sem coligações e com uma tensão pré-negociação do Orçamento que não se ajusta aos desequilíbrios que temos de enfrentar. Tudo isto serve para lembrar que o primeiro dos problemas do país é de natureza política. Na Europa, há países com défices mais elevados (Irlanda), níveis de endividamento superiores (Itália), mais desemprego (Espanha) e até com perspectivas económicas mais débeis (Grécia), mas não há nenhum país que não tenha um Governo de maioria absoluta ou uma coligação governamental ou de incidência parlamentar. É essa a nossa singularidade. Depois das legislativas, os partidos não foram capazes de se entender e o assomo de responsabilidade que PS e PSD revelaram por altura dos PEC entretanto desfez-se. O cenário tornar-se-á agora ainda mais pantanoso. Ao Governo não resta alternativa senão aprovar o Orçamento com o PSD, com o beneplácito do candidato Cavaco Silva, que foge a sete pés de uma campanha contaminada por uma crise política de natureza orçamental. Ao mesmo tempo, o PS apoia um candidato que preferia um Orçamento viabilizado à esquerda, sendo que à esquerda não há possibilidades de criar condições políticas para conter a despesa. Já o PSD, pressionado pelas sondagens positivas, tem revelado um frenesim que faz com que Passos Coelho opte por arremedos de crise em lugar de procurar entendimentos. Nos próximos tempos, para utilizar uma expressão cara ao Presidente, tudo indica que a nossa situação será insustentável. Mas, antes de tudo, politicamente insustentável.

publicado no Expresso, de 4 de Setembro (e porque hoje é 9 de Setembro)