Tenho Medo
Se me perguntarem qual é a minha prioridade na educação dos meus filhos, direi que é garantir que eles não têm medo. Medo físico, medo das personagens assombrosas que lhes surgem nos sonhos, mas também que têm a coragem suficiente para fazerem face às tormentas com que se defrontarão ao longo da vida. Se tiverem confiança, o resto virá por acréscimo. Para parafrasear a escritora Natalia Ginzburg, em "Le piccole virtú" (infelizmente não traduzido em português), tendemos a ensinar às crianças muitas das pequenas virtudes (a poupança, a prudência, a astúcia, a diplomacia e o desejo de sucesso), mas nisso esquecemo-nos das grandes virtudes (a generosidade, o amor à verdade, a abnegação, a coragem e o desejo de saber mais).
Peço desculpa se, dito assim, parece uma questão privada, pouco adequada a uma coluna de opinião, por natureza pública. Infelizmente não é. Para que os meus filhos - e, acrescento, os nossos filhos - não tenham medo, tenho também de lhes poder dizer que, se for caso disso, a lei estará do lado deles para os proteger. É isso que me leva a fazer em público uma confissão que é semiprivada: eu tenho medo da justiça em Portugal e o que se vai sabendo do famigerado processo Casa Pia só consolida as minhas inquietações.
Tenho, como provavelmente a maioria dos portugueses, convicções subjetivas sobre a culpabilidade ou inocência dos envolvidos no processo e sobre o que se pode ou não ter passado em toda esta história. Mas a justiça, para nos proteger a todos, não pode assentar em convicções subjetivas, formadas no espaço público e sugeridas pelos media. Pelo contrário, a justiça tem não só de se basear em factos e em evidências verificáveis como abstrair-se do que a comunidade pensa.
Tudo o que não aconteceu ao longo do processo Casa Pia, marcado desde o início pelo justicialismo primário e pela construção de uma narrativa sobre a culpabilidade nos media. Oito anos passados, a única consequência palpável deste processo é que têm sido somadas vítimas às vítimas de abusos sexuais. A última das quais é o próprio sistema de justiça.
Uma coisa é acreditarmos na culpa ou inocência deste ou daquele arguido, outra é termos a certeza de que, em democracia, é impensável que alguém possa ser condenado apenas com base em prova testemunhal não sujeita ao escrutínio crítico, quando todos os outros elementos de prova ou não consolidaram os testemunhos ou contraditaram-nos mesmo. É mesmo um daqueles casos em que é preferível um culpado absolvido do que um inocente condenado. Mas não é apenas isso que está em causa.
É também um sentimento egoísta. Eu quero ter a certeza de que se um dia alguém apontar o dedo aos meus filhos, dizendo que eles cometeram um crime hediondo do qual estão inocentes, eles poderão defender-se e que a justiça estará do lado deles. E que nunca, em circunstância alguma, poderão ser condenados se não ficar claro como cometeram o crime, em que dia, em que lugar. Tudo o que seja diferente disto remete-nos para o reino da arbitrariedade e só pode causar perplexidade. Mas, acima de tudo, dá-nos boas razões para termos medo. Muito medo.
Custa-me muito ter de educar os meus filhos num país onde a justiça funciona assim.
publicado na edição de 11 de Setembro do Expresso.
Peço desculpa se, dito assim, parece uma questão privada, pouco adequada a uma coluna de opinião, por natureza pública. Infelizmente não é. Para que os meus filhos - e, acrescento, os nossos filhos - não tenham medo, tenho também de lhes poder dizer que, se for caso disso, a lei estará do lado deles para os proteger. É isso que me leva a fazer em público uma confissão que é semiprivada: eu tenho medo da justiça em Portugal e o que se vai sabendo do famigerado processo Casa Pia só consolida as minhas inquietações.
Tenho, como provavelmente a maioria dos portugueses, convicções subjetivas sobre a culpabilidade ou inocência dos envolvidos no processo e sobre o que se pode ou não ter passado em toda esta história. Mas a justiça, para nos proteger a todos, não pode assentar em convicções subjetivas, formadas no espaço público e sugeridas pelos media. Pelo contrário, a justiça tem não só de se basear em factos e em evidências verificáveis como abstrair-se do que a comunidade pensa.
Tudo o que não aconteceu ao longo do processo Casa Pia, marcado desde o início pelo justicialismo primário e pela construção de uma narrativa sobre a culpabilidade nos media. Oito anos passados, a única consequência palpável deste processo é que têm sido somadas vítimas às vítimas de abusos sexuais. A última das quais é o próprio sistema de justiça.
Uma coisa é acreditarmos na culpa ou inocência deste ou daquele arguido, outra é termos a certeza de que, em democracia, é impensável que alguém possa ser condenado apenas com base em prova testemunhal não sujeita ao escrutínio crítico, quando todos os outros elementos de prova ou não consolidaram os testemunhos ou contraditaram-nos mesmo. É mesmo um daqueles casos em que é preferível um culpado absolvido do que um inocente condenado. Mas não é apenas isso que está em causa.
É também um sentimento egoísta. Eu quero ter a certeza de que se um dia alguém apontar o dedo aos meus filhos, dizendo que eles cometeram um crime hediondo do qual estão inocentes, eles poderão defender-se e que a justiça estará do lado deles. E que nunca, em circunstância alguma, poderão ser condenados se não ficar claro como cometeram o crime, em que dia, em que lugar. Tudo o que seja diferente disto remete-nos para o reino da arbitrariedade e só pode causar perplexidade. Mas, acima de tudo, dá-nos boas razões para termos medo. Muito medo.
Custa-me muito ter de educar os meus filhos num país onde a justiça funciona assim.
publicado na edição de 11 de Setembro do Expresso.
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