quinta-feira, novembro 22, 2012

A política sitiada


O cenário é o mesmo há longos meses. Começando em frente ao edifício novo, contornando a rua de São Bento, passando pelas escadarias principais e só terminando na Calçada da Estrela, o edifício da Assembleia da República encontra-se cercado por gradeamento. O que parecia temporário, uma sucessão de grades colocadas ad hoc, parece hoje ter vindo para ficar.
O simbolismo é evidente: o espaço de representação da soberania popular está fechado sobre si mesmo e teme quem representa. Talvez este seja o mais forte dos exemplos de um poder político sitiado, mas há muitos outros. Celebrações do regime que ocorrem à porta fechada; membros do Governo inibidos de sair dos gabinetes, a menos que acompanhados de um grande dispositivo policial; votações no parlamento apressadas para evitar manifestações e, como aconteceu esta semana, chefes de executivos estrangeiros que têm de ser recebido entre muralhas de fortes.
Dir-me-ão que algumas das democracias mais avançadas viveram largos anos com proteção policial ainda mais apertada. É um facto. Contudo, o que justifica esses dispositivos de segurança são ameaças terroristas e não propriamente a necessidade de lidar com níveis, por vezes descontrolados, de descontentamento popular.
Para quem valoriza a democracia representativa e vê na Assembleia da República a instituição soberana e o melhor dos garantes do bom funcionamento de um regime assente nas liberdades, naturalmente que o cerco montado ao Parlamento, que culminou nesta semana em ataques despóticos, à pedrada, só pode ser visto com muita preocupação. Mais, a escolha sistemática da Assembleia da República como lugar de convergência de manifestações (algo que não acontecia em Portugal) devolve-nos a um passado de turbulência institucional de má memória.
Estamos, contudo, perante um caso em que o poder político, em lugar de contrariar a tendência para o enclausuramento, optou por se entrincheirar, dando sinais de fragilidade que funcionam como incentivos para que o descontentamento se dirija, de forma cada vez mais intensa e violenta, às instituições da democracia representativa. E nenhuma escapará.
É evidente que a degradação económica e social, por si só, gera contestação, mas tal não implica a capitulação política a que, de facto, assistimos das instituições do regime – que parecem ter abdicado de proteger a sua gravitas. A questão das grades não é por isso marginal. Se há uma manifestação e é preciso proteger o parlamento, coloquem-se grades, mas no dia seguinte estas têm de ser retiradas e a dignidade institucional da Assembleia da República reerguida. A política é também uma disputa simbólica.
Tem sido muitas vezes sublinhado, com inteira razão, que o nosso tecido social tenderá a desfazer-se com a crise económica que temos vivido. Não sabemos quanto tempo mais as nossas sociedades aguentam a austeridade. Mas, temo, os nossos regimes políticos aguentarão ainda menos tempo se tivermos as instituições políticas sitiadas.
publicado no Expresso de 17 de Novembro

segunda-feira, novembro 19, 2012

De caras


Querem saber o que é um debate estragado à partida? Olhem para aquele que tem sido anunciado sobre as funções do Estado. Com os atuais protagonistas políticos, é impossível termos uma discussão que é bem necessária.
Convém não esquecer como tudo começou. Este primeiro-ministro alcandorou-se ao poder afirmando que o desequilíbrio das contas públicas não implicava mais sacrifícios para os portugueses, pois tudo se resolvia cortando nas gorduras do Estado. Nunca saberemos qual foi a intenção da estratégia. Mas ou estávamos perante um caso de pura ignorância ou de demagogia desbragada que não olhou a fins para ganhar eleições. Independentemente da conclusão, as consequências são evidentes. Uma vez no poder, a margem de manobra de Passos Coelho estaria irremediavelmente comprometida – quando fosse necessário, nenhum português lhe reconheceria legitimidade para ser protagonista de um debate sério sobre funções do Estado e cortes na despesa. Para princípio de conversa, a estratégia de Passos Coelho não foi má, foi péssima.
Chegados aqui, os contributos do Governo continuam a não ser os melhores. Não apenas aguardamos um mea culpa face ao embuste da campanha, como, no mínimo, era necessário que se arrepiasse caminho perante o desastre da estratégia orçamental dos últimos dois anos. Era a única forma de se iniciar o debate alargado e politicamente sustentável de que necessitamos. Em lugar disso, o Governo finge que não teve nada a ver com a conversa sobre as gorduras do Estado, assobia para o ar perante o fracasso da execução orçamental e omite o que de facto se passou com a 5ª avaliação da troika.
Mais grave, a pairar por cima de tudo isto continua a mesma incompreensão do Executivo em relação às exigências éticas associadas à austeridade. Ninguém tinha dúvidas que o que nos esperava era muito difícil, mas, também, um mínimo de bom senso bastava para se perceber que todos os cuidados eram poucos para que a aplicação do memorando fosse politicamente exequível. E também aqui o Governo deitou tudo a perder, delapidando o capital de que agora necessita, desde logo para garantir a sua sobrevivência. Na última edição do Expresso, uma fonte governamental afirmava, com uma ligeireza chocante, de caras, podemos cortar 50 mil funcionários públicos”. Ou seja, para este Governo, tudo se resolve, de caras, acrescentando desempregados aos desempregados, como se se estivessem a somar parcelas abstractas numa folha de cálculo.
Esta semana, enquanto acompanhava as eleições norte-americanas, regressei ao impressionante memorial de Franklin D. Roosevelt. Ao percorrer, entre a pedra austera, as presidências de FDR, reencontrei uma frase lapidar: “nenhum país, por mais rico, pode permitir-se desperdiçar os seus recursos humanos. A desmoralização provocada pelo desemprego em massa é a nossa maior extravagância. Moralmente, é a maior ameaça à nossa ordem social”.
De caras que esta era uma frase que devia ser afixada nos gabinetes de todos os membros do Governo. Talvez depois fosse possível iniciar uma conversa.
publicado no Expresso de 10 de Novembro 

sábado, novembro 10, 2012

Que fazer quando tudo falha?


Há uma lei de ferro da política portuguesa. Quando colocada perante a questão de saber o que fazer quando tudo falha, a direita faz invariavelmente o mesmo – regressa aos clássicos. Entre os clássicos destaca-se a revisão da Constituição. Deste feita, foi usado um eufemismo, “refundar”, mas o sentido é o mesmo.
Convenhamos que é estranho que o mesmo primeiro-ministro que começou por fazer apelos lancinantes para que a troika nos viesse salvar, que depois afirmou que o programa da troika era o do PSD e, não contente, se ofereceu mesmo para ir além do memorando, enquanto se foi recusando liminarmente a renegociar o acordado, queira, um ano e meio depois, começar de novo, reclamando uma refundação.
A explicação talvez seja singela: o Governo falhou nas opções de fundo e no processo político e não lhe ocorreu nada melhor do que lançar uma cortina de fumo sobre o seu próprio falhanço.
            O falhanço nas opções é por demais evidente. Só isso pode explicar que tenhamos tido um debate sobre o Orçamento para 2013 que passou completamente ao lado da execução de 2012 e que pouco nos disse sobre a verdadeira efabulação que é a proposta apresentada – aliás acompanhada por um retificativo (o plano b de cortes na despesa). Não menos surpreendente é a “refundação” tirada da cartola nas jornadas parlamentares por Passos Coelho.
No último ano e meio, a estratégia do Governo passou por afastar sucessivamente parceiros: primeiro, foi afastado o PS, que começou por revelar uma disponibilidade intrépida para consensualizar soluções; depois, foi sendo afastado o Presidente, veja-se a dissonância em torno das políticas europeias, e a UGT; e, pasme-se, entretanto, até o CDS foi posto em cheque.
Não só o Governo não cuidou de cultivar a negociação e a consensualização mínima de soluções, como optou por insistir numa estratégia movida por fanatismo ideológico, implementada através de folhas de excel. Agora, agindo como se tivesse acabado de tomar posse, Passos Coelho vem pedir o apoio que nunca buscou e ainda ameaça com um segundo resgate caso esse auxílio não chegue. Já deixámos de estar face a um problema político para passarmos a estar confrontados com uma chico-espertice.
Este falhanço é, contudo, o melhor dos pretextos para o Governo fazer o que sempre ambicionou. Uma opção de fundo estapafúrdia – ir além da troika –, implementada por ministros incompetentes, só nos poderia conduzir ao beco sem saída onde nos encontramos. Chegados aqui, revelada a incapacidade do Executivo e obrigado este a promover um enorme aumento de impostos, o contexto para desmantelar o Estado social está criado.
Se mais provas fossem necessárias, esta semana ficou demonstrado que o essencial da agenda do Governo nunca foi disciplinar as contas públicas ou corrigir a trajetória da dívida (dois objectivos necessários e não concretizados), mas, sim, dar cabo dos equilíbrios sociais, económicos e políticos, sempre ténues, em que assenta a democracia portuguesa.
publicado no Expresso de 3 de Novembro. 


A miséria da ética social


Entre o sem número de patacoadas anunciadas pela coligação que nos governa, destaca-se a promessa de que as medidas do Executivo seriam marcadas por uma “ética social na austeridade”. Fazia todo o sentido. Níveis de austeridade como os que enfrentamos ameaçam a democracia e a existência de algum esforço – mesmo que ténue – para compensar os que mais sofrem com o processo de ajustamento é decisiva. Não só porque é a única forma de garantir que o regime resiste, mas também porque só assim é politicamente viável cumprir o memorando com a troika.
Por razões que ainda não compreendemos plenamente, Passos Coelho resolveu regressar do verão anunciando uma medida – as alterações na TSU – que configurava um inusitado movimento redistributivo, penalizando os mais fracos e reforçando os mais fortes. Depois, a história é conhecida: a proposta caiu às mãos da rua, o CDS aproveitou para cavalgar o descontentamento e a crise política instalou-se no Conselho de Ministros. Pelo caminho, a popularidade do Governo colapsou.
Como que para provar que o Governo não aprende, nem sequer com os próprios erros, esta semana não ocorreu nada melhor ao Executivo do que anunciar novos cortes na rede de mínimos sociais. Do subsídio de desemprego ao complemento solidário para idosos, passando pelo rendimento social de inserção nada escapou ao que pode ser descrito como um ataque tentado com “napalm social”. Não sabendo onde cortar, o Governo optou por poupar, com desvelo pornográfico, na proteção aos mais desfavorecidos: pobres, idosos e desempregados.
Este opção não é politicamente neutra: enquanto se degrada a rede de mínimos sociais, empurrando milhares de cidadãos para abaixo do limiar de pobreza, vamo-nos aproximando de um passado onde a fome e a indigência social eram o último recurso dos desempregados. Quando temos um mercado de trabalho profundamente deprimido, é caso para dizer: bem regressados à barbárie social.
Na ausência de facto de um primeiro-ministro, Vítor Gaspar, fazendo prova de vida da sua qualidade de regente, aproveitou para explicar, no parlamento, o contexto da opção: “existe um enorme desvio entre o que os portugueses acham que devem ter como funções do Estado e os impostos que estão dispostos a pagar”. A asserção pode bem ser verdadeira, mas talvez valha a pena ter a percepção que, a existir, esse desvio não radica na despesa com a rede de mínimos sociais (um instrumento fundamental para que sejamos uma sociedade, se nada mais, decente). Estamos a falar de um conjunto de medidas que dá um contributo marginal para a despesa, mas que contribui muito significativamente para a redução de desigualdades e, acima de tudo, para o aliviar das formas mais extremas de pobreza.
Quem não percebe que são anúncios como este que degradam de modo irreversível a capacidade política do governo e a execução do memorando de entendimento, pura e simplesmente deixou de manter níveis de contacto, ainda que ténues, com a realidade. 
publicado no Expresso de 27 de Outubro