A política sitiada
O
cenário é o mesmo há longos meses. Começando em frente ao edifício novo,
contornando a rua de São Bento, passando pelas escadarias principais e só
terminando na Calçada da Estrela, o edifício da Assembleia da República
encontra-se cercado por gradeamento. O que parecia temporário, uma sucessão de
grades colocadas ad hoc, parece hoje
ter vindo para ficar.
O
simbolismo é evidente: o espaço de representação da soberania popular está
fechado sobre si mesmo e teme quem representa. Talvez este seja o mais forte
dos exemplos de um poder político sitiado, mas há muitos outros. Celebrações do
regime que ocorrem à porta fechada; membros do Governo inibidos de sair dos
gabinetes, a menos que acompanhados de um grande dispositivo policial; votações
no parlamento apressadas para evitar manifestações e, como aconteceu esta
semana, chefes de executivos estrangeiros que têm de ser recebido entre
muralhas de fortes.
Dir-me-ão
que algumas das democracias mais avançadas viveram largos anos com proteção
policial ainda mais apertada. É um facto. Contudo, o que justifica esses
dispositivos de segurança são ameaças terroristas e não propriamente a
necessidade de lidar com níveis, por vezes descontrolados, de descontentamento
popular.
Para
quem valoriza a democracia representativa e vê na Assembleia da República a
instituição soberana e o melhor dos garantes do bom funcionamento de um regime
assente nas liberdades, naturalmente que o cerco montado ao Parlamento, que
culminou nesta semana em ataques despóticos, à pedrada, só pode ser visto com
muita preocupação. Mais, a escolha sistemática da Assembleia da República como
lugar de convergência de manifestações (algo que não acontecia em Portugal)
devolve-nos a um passado de turbulência institucional de má memória.
Estamos,
contudo, perante um caso em que o poder político, em lugar de contrariar a
tendência para o enclausuramento, optou por se entrincheirar, dando sinais de
fragilidade que funcionam como incentivos para que o descontentamento se
dirija, de forma cada vez mais intensa e violenta, às instituições da
democracia representativa. E nenhuma escapará.
É
evidente que a degradação económica e social, por si só, gera contestação, mas
tal não implica a capitulação política a que, de facto, assistimos das
instituições do regime – que parecem ter abdicado de proteger a sua gravitas. A questão das grades não é por
isso marginal. Se há uma manifestação e é preciso proteger o parlamento, coloquem-se
grades, mas no dia seguinte estas têm de ser retiradas e a dignidade
institucional da Assembleia da República reerguida. A política é também uma
disputa simbólica.
Tem
sido muitas vezes sublinhado, com inteira razão, que o nosso tecido social
tenderá a desfazer-se com a crise económica que temos vivido. Não sabemos
quanto tempo mais as nossas sociedades aguentam a austeridade. Mas, temo, os nossos
regimes políticos aguentarão ainda menos tempo se tivermos as instituições políticas
sitiadas.
publicado no Expresso de 17 de Novembro
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