Uma coligação de gente perigosa
A crise é uma oportunidade. Esta coluna
poderia começar assim todas as semanas, para depois prosseguir com mais um
exemplo. Mas, na verdade, nunca em nenhuma outra altura ficou tão claro que a
crise é, de facto, uma oportunidade. Uma oportunidade para impor uma agenda
política que de outro modo não seria possível de implementar. Esta crise,
sabemos hoje, tem sido a oportunidade há muito esperada para pôr em marcha a
maior experiência de engenharia social que o país conheceu.
Na última semana, em dose dupla,
primeiro por Passos Coelho e depois por Vítor Gaspar, assistimos ao anúncio do
que, a ser aprovado, será a maior redistribuição de riqueza alguma vez ocorrida
no Portugal democrático. As alterações na taxa social única, combinadas com
cortes nas pensões, no salário mínimo e aumentos nos impostos, não só provam
que o Governo está empenhado em ir bem para além da troika, como demonstram que
o que está em causa já não é a consolidação das contas públicas, mas, sim, um
processo de alteração das relações de poder económico em Portugal, que encontra
na devastação social e no empobrecimento instrumentos privilegiados.
Nenhum país foi tão longe na
experiência que agora se anuncia em Portugal. Uma experiência onde cegueira
ideológica se articula com governação através dos modelos econométricos que
tanto fascínio exercem sobre o ministro Vítor Gaspar. Ora, como é sabido, a
realidade e o bom senso são duas variáveis que tendem a não estar presentes
nestes modelos. Aliás, esta semana, em entrevista à TSF, o ex-presidente
brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, sublinhava que “a economia é uma
navegação; não é uma ciência”. Em Portugal, o triunvirato que nos governa, liderado
por um primeiro-ministro impreparado, coadjuvado por uma dupla de fanáticos,
Gaspar e Borges, acredita piamente no contrário e está a entregar-nos como
cobaias para uma experiência académica.
Desde Vasco Gonçalves que Portugal não era
governado por gente tão perigosa. O trio Passos/Gaspar/Borges vê-se a si próprio
como uma nova vanguarda, a quem a verdade foi revelada e que julga representar os
interesses objectivos do país. Acontece que se continuarmos a insistir no ir
para além da troika, se não combatermos politicamente as exigências que nos são
feitas, se “não berrarmos” nas instâncias internacionais (para usar a feliz
expressão de Ferreira Leite), daqui a um ano teremos, de novo, metas do défice
revistas e mais anúncios de cortes e aumento dos impostos. Não é preciso nenhum
modelo para prever que a receita que falhou no último ano falhará num patamar
ainda mais elevado no próximo ano.
Neste momento só podemos esperar uma
coisa. Que em nome da sensatez e dos equilíbrios institucionais, este processo
seja parado já. Se não o for agora, será tarde de mais: os estragos estarão feitos
e a revolta e a mudança terão lugar na rua.
publicado no Expresso de 15 de Setembro.
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