Sacudir a água do capote
Não
precisamos de recuar muito no tempo para reconstruir a história. Há pouco mais
de um ano, fazia sentir-se por aí um clamor profundo para que se chamasse o
“FMI”. Era-nos dito que era a forma de colocar fim ao despautério governamental,
ao descontrolo das contas públicas e a solução para que se fizessem as reformas
necessárias, invariavelmente adiadas. Com o inestimável contributo do
Presidente da República, foi provocada uma crise política que tudo resolveria.
Pelo caminho, José Sócrates, ao mesmo tempo que se recusava a governar com o
FMI, negociava um pedido de resgate, envolvendo o PS num paradoxo insuperável,
também no médio prazo. No dia 5 de Maio, com, pasme-se, um governo
demissionário, o memorando era apresentado e ninguém se eximiu de assumir a sua
paternidade.
Eduardo
Catroga, numa memorável aparição televisiva, reclamava todos os louros do
programa e declarava desassombradamente que o PSD iria ser “muito mais radical no nosso programa do que a troika”. Para que não restassem dúvidas,
Passos Coelho, então candidato a primeiro-ministro, afirmaria que “o programa
do PSD está muito para além daquilo que a troika
propõe". Sócrates, empurrado pelas circunstâncias que já não
controlava, apresentava o memorando como bem menos agressivo do que a intenção
original da troika.
Sabemos hoje que o memorando tinha
metas para a consolidação orçamental inviáveis e assentava numa estratégia desligada
da realidade com um conjunto de condicionalismos devastadores. A ideia de
austeridade expansionista foi mais uma vez testada com o insucesso de sempre.
Contra todas as evidências e avisos, estrangulou-se a economia, fez-se colapsar
a procura interna, aumentou-se a pressão fiscal e o inevitável aconteceu: a
economia deprimiu, o desemprego aumentou para além das estimativas, a receita
fiscal ficou bem abaixo do orçamentado e a despesa com os estabilizadores
automáticos, pese embora todas as reformas, não parou de aumentar. No fim, sem
surpresas, mesmo com um ministro das Finanças completamente alinhado com o
pensamento mágico da troika, o défice
não será cumprido e a dívida continua a crescer. Claro que está tudo a correr
melhor do que o previsto, na visão lúcida de António Borges.
Chegados aqui, assistimos também à
repetição de um filme de péssima qualidade. A troika insiste no passa-culpas que sempre fez perante o seu
histórico de intervenções de insucesso e que é típico dos radicalismos
ideológicos: o problema nunca é da natureza do programa, mas do modo como é
aplicado. A declaração de que “este programa é do governo” vai nesse sentido. O
corolário lógico é claro: para a troika,
o programa grego está a falhar porque o governo não se empenhou o suficiente no
seu cumprimento, enquanto o programa português está a falhar porque o governo
se empenhou demasiadamente. Não se chega a perceber qual será a dose justa de
empenho necessária para que um programa deste tipo corra bem. Mas em algum
momento, a troika e os seus agentes
nacionais terão de ser seriamente avaliados.
artigo publicado no Expresso de 8 de Setembro.
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