Os filhos dos outros
Há um
par de princípios que tenho como fundamentais para a educação dos meus filhos: em
primeiro lugar, não desistir deles. Ter a certeza que, mesmo quando falharem,
apoiá-los-ei e não aceitarei que o falhanço seja definitivo. Em segundo lugar,
querer para eles sempre o melhor. Há uma ideia feita, muito propalada, que
defende que são as agruras na infância que enrijecem. Não me parece que assim
seja. Como ensina a escritora italiana Natalia Ginzburg num notável texto,
infelizmente não traduzido para português, “Scarpe Rotte” (Sapatos Rotos),
sobre a sua experiência de mãe na clandestinidade durante o fascismo, uma
infância protegida dá-nos a força que mais tarde vamos precisar para enfrentar
as dificuldades.
Se acredito
que estes princípios devem guiar a educação dos meus filhos, posso desejar algo
de diferente para os filhos dos outros? Claramente, não. Foi disso que me
lembrei quando confrontado com a proposta de Nuno Crato de tornar o ensino
profissional um recurso para os maus alunos do ensino básico. É o género de solução
que há quem deseje para os filhos dos outros, mas que é incapaz de desejar para
os seus próprios filhos.
Para
além de remeter para um modelo de ensino dual que caracterizou o salazarismo,
com um insucesso que nos continua a perseguir, a proposta assenta também num
equívoco muito disseminado e que é reproduzido acriticamente – a ideia de que
com a transição para a democracia se acabou com o ensino profissional em
Portugal. Esta falsidade confunde fim das escolas industriais e comerciais –
uma boa decisão que começou a ser germinada pelo Governo de Marcelo Caetano –
com transformação do ensino técnico.
Em
democracia, com nomes diferentes, é verdade, e com excesso de alterações de
modelo, foi feito um enorme investimento no ensino vocacional. Hoje,
estabilizado o sistema, a percentagem de alunos que frequenta a via
profissional é elevada (cerca de 40% dos alunos do secundário) e esta via
profissionalizante não tem já a imagem de parente pobre da escolaridade.
A
proposta do Governo, para além de tornar muito precoce a possibilidade de optar por uma via profissional (em
contra-tendência com todos os países com quem comparamos), tem um duplo efeito
negativo. Ao mesmo tempo que desvaloriza o ensino profissional (passa a ser de
novo uma opção para as crianças que
“não servem para escola”), significa, de facto, que o sistema educativo desiste
de combater a chaga social que é o insucesso escolar.
Numa só
medida, o país desistiria de continuar a lutar contra o insucesso escolar com
mais tempo de trabalho, maior acompanhamento em disciplinas nucleares como o
português, a matemática e o inglês (ou as crianças da via profissional não
teriam competências básicas nestas disciplinas, que são precisamente as que provocam
maior insucesso escolar?) e tornaria o ensino profissional uma opção fácil,
certificando “talhantes e canalizadores” sem competências básicas. No fundo, o
país não só passaria a desistir dos filhos dos outros, como lhes reservaria uma
segunda escolha.
publicado no Expresso de 1 de Setembro
<< Home