A culpa é do Constitucional
Primeiro
foram os malandros do rendimento mínimo, mas não falei por não ser pobre.
Depois, perseguiram os pensionistas. Nada disse então, por não ser velho. Em
seguida, castigaram os funcionários públicos. Decidi não falar porque não sou
funcionário público. Então, um dia, vieram tirar-me o meu subsídio de férias.
Por essa altura, já não restava nenhuma voz que, em meu nome, se fizesse ouvir.
O conhecido poema de Martin Niemoller, escrito num contexto brutal que nada tem
a ver com a nossa realidade, é ainda assim uma boa metáfora para os riscos da ação
política baseada na exploração do ressentimento.
Quando,
no Orçamento de 2012, o governo optou por discriminar negativamente os
pensionistas e os funcionários públicos, a estratégia tinha um objectivo:
colocar trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos. No fundo,
a ideia era simples e passava por dar corpo ao sentimento difuso de que os
funcionários públicos são uns preguiçosos com emprego protegido. Contudo, como
quase sempre acontece com as ideias populistas, o que parece ter um fascínio
inicial encarrega-se de trazer complicações sérias mais tarde. Essas
complicações acabam de chegar com o acórdão do Tribunal Constitucional.
Pouco
mais de meio ano passado de execução orçamental, aconteceu o previsível. A
austeridade só teve como consequência desequilibrar ainda mais as contas
públicas e a solução que resta é, pasme-se, agravar a dose. Para o ano, o que
nos espera é igualdade de tratamento. O que foi regra este ano para os
funcionários públicos e pensionistas será aplicado ao conjunto dos
trabalhadores, avisou com celeridade o primeiro-ministro com assinalável
sentido de Estado, à porta do teatro.
Como
é sabido, os nossos políticos são especialistas em encontrar desculpas para as
suas próprias decisões. Se até agora a troika
foi o passa-culpas por excelência do nosso governo, de uma coisa poderemos ter
a certeza: perante um falhanço colossal na execução orçamental, o que até aqui
era responsabilidade da troika
passará a ser culpa do Tribunal Constitucional. Cortaram-se subsídios de férias
e Natal por causa da troika,
aumentar-se-ão os impostos para todos por decisão de um conjunto de juízes. O
que era uma inevitabilidade resultante de uma estratégia catastrófica de Vítor
Gaspar passará a ser uma requisito formal. Do mesmo modo que o que era um falhanço
do governo, o prolongamento do programa de austeridade, passará a ser uma
vitória, devidamente caucionada pelo líder da oposição – que ficará sem a
pequena dose de discurso que lhe resta.
Num
país que tanto gosta de mimetizar os exemplos estrangeiros, talvez valesse a
pena atentar no que se passou com o programa de financiamento à Letónia. Num
país que foi alvo de uma das primeiras experiências laboratoriais da “austeridade
expansionista”, perante um chumbo constitucional de cortes nas pensões, o FMI
não exigiu a introdução de novas medidas e aceitou renegociar os valores do
défice. Era o que o governo português devia estar a fazer neste momento. Em lugar
de nos ameaçar com mais um aumento de impostos, a somar a tudo o resto.
publicado no Expresso de 7 de Julho
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