Novas do capitalismo científico
As
palavras importam e em política importam muito. A semana passada, numa
entrevista reveladora ao Económico, António Borges reconhecia, com satisfação,
que o Governo estava a “limpar” a economia, para logo sublinhar a urgência de
uma baixa generalizada de salários; dias mais tarde, Vítor Gaspar diria, no tom
pausado próprio de quem cumpre uma missão, que era necessário “restringir as
extensões dos acordos colectivos de trabalho”, ou seja, não aplicar a milhares
de trabalhadores as condições salariais negociadas entre sindicatos e
empregadores. Pelo caminho, a troika, uma vanguarda do pensamento mágico, veio
responsabilizar, uma vez mais, a “rigidez do nosso mercado laboral” pelo
crescimento galopante do desemprego.
Estamos
perante gente perigosa, movida por um pensamento baseado num conjunto de
asserções académicas, com escassa ligação à realidade, mas que nos são
apresentadas como científicas, assentes em leis gerais. Mais, no que é um traço
distintivo, de cada vez que a realidade não confirma os seus pressupostos e não
se comporta como esperado, a justificação só pode ser uma: a dose aplicada não
foi suficiente. O desemprego está a aumentar devido à rigidez do mercado
laboral? Flexibilize-se a legislação. O desemprego continua a crescer? Isso só
pode acontecer porque não se flexibilizou o suficiente a legislação. Logo,
flexibilize-se ainda mais. Entretanto, caminhamos para a chinezização do nosso modelo económico.
Para
quem olha para a economia deste modo, o desemprego nunca pode ser consequência
da austeridade, do colapso da procura interna e da não utilização da capacidade
produtiva, tem de ser resultado de salários altos, de excesso de proteção
social, de outros factores de rigidez e, claro, da falta de cultura empreendedora
dos desempregados. Para estes vanguardistas do “capitalismo científico”, numa
economia totalmente flexível, níveis elevados de desemprego são uma
impossibilidade.
Que,
décadas depois, a mesma lógica de pensamento que caracterizava o socialismo
científico se tenha travestido e passado a caracterizar os arautos de uma
estratégia austeritária que, enquanto “limpa” tudo, trará um dia, não se sabe
bem quando, novos “amanhãs que cantam” é, ao mesmo tempo, irónico e assustador.
Esta
semana, num artigo notável no Financial Times, Martin Wolf reconhecia que “até
agora nunca tinha compreendido como é que tinha sido possível o que sucedeu na
década de 30”. Agora já percebia. “Tudo o que era necessário eram economias
frágeis, um sistema monetário rígido, um debate intenso sobre o que deveria ser
feito, a crença de que o sofrimento é bom, políticos míopes, inaptidão para
cooperar e incapacidade de estar à frente dos acontecimentos.” Talvez seja a
forma mais conseguida de descrever o momento em que nos encontramos. Se a tudo
isto juntarmos uma dose significativa de cegueira ideológica, a receita para o
colapso parece perfeita.
publicado no Expresso de 9 de Junho
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