terça-feira, junho 19, 2012

Novas do capitalismo científico


As palavras importam e em política importam muito. A semana passada, numa entrevista reveladora ao Económico, António Borges reconhecia, com satisfação, que o Governo estava a “limpar” a economia, para logo sublinhar a urgência de uma baixa generalizada de salários; dias mais tarde, Vítor Gaspar diria, no tom pausado próprio de quem cumpre uma missão, que era necessário “restringir as extensões dos acordos colectivos de trabalho”, ou seja, não aplicar a milhares de trabalhadores as condições salariais negociadas entre sindicatos e empregadores. Pelo caminho, a troika, uma vanguarda do pensamento mágico, veio responsabilizar, uma vez mais, a “rigidez do nosso mercado laboral” pelo crescimento galopante do desemprego.
Estamos perante gente perigosa, movida por um pensamento baseado num conjunto de asserções académicas, com escassa ligação à realidade, mas que nos são apresentadas como científicas, assentes em leis gerais. Mais, no que é um traço distintivo, de cada vez que a realidade não confirma os seus pressupostos e não se comporta como esperado, a justificação só pode ser uma: a dose aplicada não foi suficiente. O desemprego está a aumentar devido à rigidez do mercado laboral? Flexibilize-se a legislação. O desemprego continua a crescer? Isso só pode acontecer porque não se flexibilizou o suficiente a legislação. Logo, flexibilize-se ainda mais. Entretanto, caminhamos para a chinezização do nosso modelo económico.
Para quem olha para a economia deste modo, o desemprego nunca pode ser consequência da austeridade, do colapso da procura interna e da não utilização da capacidade produtiva, tem de ser resultado de salários altos, de excesso de proteção social, de outros factores de rigidez e, claro, da falta de cultura empreendedora dos desempregados. Para estes vanguardistas do “capitalismo científico”, numa economia totalmente flexível, níveis elevados de desemprego são uma impossibilidade.
Que, décadas depois, a mesma lógica de pensamento que caracterizava o socialismo científico se tenha travestido e passado a caracterizar os arautos de uma estratégia austeritária que, enquanto “limpa” tudo, trará um dia, não se sabe bem quando, novos “amanhãs que cantam” é, ao mesmo tempo, irónico e assustador.
Esta semana, num artigo notável no Financial Times, Martin Wolf reconhecia que “até agora nunca tinha compreendido como é que tinha sido possível o que sucedeu na década de 30”. Agora já percebia. “Tudo o que era necessário eram economias frágeis, um sistema monetário rígido, um debate intenso sobre o que deveria ser feito, a crença de que o sofrimento é bom, políticos míopes, inaptidão para cooperar e incapacidade de estar à frente dos acontecimentos.” Talvez seja a forma mais conseguida de descrever o momento em que nos encontramos. Se a tudo isto juntarmos uma dose significativa de cegueira ideológica, a receita para o colapso parece perfeita.

publicado no Expresso de 9 de Junho