Dissolução Psicológica
Numa
entrevista ao Der Spiegel, o primeiro-ministro italiano, Mario Monti, colocou o
dedo na ferida: “as tensões que acompanham a zona euro
levam implícita a semente da dissolução psicológica da Europa”. A frase é reveladora
do impasse europeu. Mais do que um problema de ausência de lideranças ou de
inexistência de soluções técnicas para resolver a crise da dívida soberana, o
que a Europa enfrenta é uma crise dos seus fundamentos, o modo como interesses dos
Estados se podem (re)articular, fazendo convergir prioridades nacionais com
processo de integração.
Contra a sobrevalorização das
grandes ideias e o papel das lideranças carismáticas, talvez valha a pena
recordar que, no essencial, a construção europeia foi o resultado contingente
de um falhanço e de uma incapacidade.
A
União Europeia surgiu para responder a um anseio popular – durante a primeira
metade do século XX, o Estado-nação tinha falhado, revelando-se incapaz de
garantir segurança e bem-estar económico e social – e, para ajudar a
ultrapassar uma conjunto de dilemas nacionais, uma entidade supranacional foi
vista como sendo mais eficaz. A Europa pode bem ser vista como um projeto
político funcional, no qual os Estados aceitaram alienar parte da sua soberania
em nome de preferências nacionais, assente na memória popular dos cataclismos
que marcaram o continente no século XX.
Ora
a dissolução psicológica de que falava Mario Monti é, hoje, produto de uma
alteração profunda das circunstâncias. Não apenas a convergência entre os
interesses dos Estados se dissipou, como os cidadãos europeus estão a deixar de
olhar para a integração como um processo benévolo, capaz de os resgatar dos
nacionalismos. Bem pelo contrário.
Hoje,
os interesses do centro não são convergentes com os da periferia e a ideia de
que os interesses do centro ganhariam com uma maior articulação com os do leste
vai fazendo caminho, fazendo emergir a possibilidade real de descartar a
periferia. Ao que acresce que a legitimidade da ideia de Europa vai perdendo
popularidade a um ritmo intenso.
Talvez
valha a pena ter presente que em 1997 o projeto do euro se iniciou com menos
apoio do que o mercado único em 1992 e que, logo no seu início, na Alemanha, as
avaliações negativas já eram superiores às positivas. Com o intensificar da
crise económica, a hostilidade ao projeto europeu, assente aliás em clivagens
sociais muito definidas, apresenta um potencial negativo muito forte. Como
ninguém duvida que a superação da atual situação implica um reforço dos poderes
do Banco Central Europeu e uma intervenção mais musculada desta instituição,
talvez valha a pena ter presente que os dados do Eurobarómetro revelam que quer
na Alemanha, quer em França o número dos que não confiam no BCE já é superior
ao daqueles que confiam.
O
sinal parece-me claro: a menos que se suspenda a democracia nos países europeus
por tempo indeterminado, não se percebe como é que é possível ultrapassar o
impasse que vivemos hoje. A dissolução psicológica pode bem tornar-se o
primeiro passo da dissolução material da Europa.
publicado no Expresso de 11 de Agosto
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