Um ato falhado
Quando
o mundo que construiu à sua volta dá sinais de estar a ruir, o
primeiro-ministro, no registo ligeiro em que se especializou, resolveu jogar a
cartada da desconfiança difusa e crescente face a tudo o que cheire a política.
“Que se lixem as eleições”, afirmou, depois da “porcaria na ventoinha” no debate
no Estado da Nação, e imediatamente antes do memorável discurso de Cantanhede,
onde, entre outras pérolas de retórica, nos avisou que “saberemos
onde chegar quando não nos comportarmos como baratas tontas” (sic). Um homem
também é a forma como fala.
Não
menosprezemos, contudo, o potencial político da desvalorização das eleições. Os
portugueses desconfiam dos políticos, os políticos não perdem uma oportunidade
para darem razões para os portugueses desconfiarem deles e a crença de que há
uma contradição crescente entre interesse nacional e interesses partidários vai
fazendo caminho.
Mas,
o que se espera de um primeiro-ministro não é que cavalgue o funesto processo
de “medina carreirização” da vida pública portuguesa. Pelo contrário. Um líder deve
ser capaz de fazer pedagogia e de aproximar os interesses dos portugueses do
modo como exerce o poder, bem como da visão que tem para o país. Mais, Passos
Coelho, enquanto se está a lixar para as eleições, está também a passar um
atestado de menoridade aos portugueses. No fundo, diz-nos que só somos capazes
de votar com base num interesse pessoal de curto prazo e de natureza material,
desprovido de percepção estratégica. Felizmente, os portugueses têm um bom
senso que o primeiro-ministro desconhece.
Há,
em tudo isto, um lado que é explicável pela psicologia. Estamos perante um ato
falhado. É natural que quem organizou a carreira movido pela conquista do
poder, invariavelmente alcandorado por Miguel Relvas, precise de repetir em
público que aquilo que o motiva não é ganhar eleições ou o poder pelo poder. Contra
isso, contudo, continua a pairar o espectro do monumental embuste que foi a
última campanha eleitoral. Convém recordar, tudo se resolvia com cortes nas
gorduras do Estado, não haveriam mais sacrifícios e, no fim, se fossemos além
da troika, o sol brilharia para todos nós. A mensagem que perdura é clara: “que
se lixem a seriedade e Portugal, o que nós queríamos mesmo era chegar ao pote”.
Como
se não bastasse o populismo de curto-prazo, Passos Coelho aproveitou também a
oportunidade para avisar que não se importaria de perder umas eleições para
“salvar o país”. Uma coisa é utilizar o sentimento antipolíticos, outra, ainda
assim mais preocupante, é o tom messiânico subjacente à declaração. A história
ensina-nos a desconfiar de quem se propõe salvar um país e os cuidados devem
ser redobrados perante alguém impreparado e que tem revelado sinais de total
desorientação, num momento em que a estratégia que delineou está a falhar
redondamente.
publicado no Expresso de 28 de Julho
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