De caras
Querem saber o que é um debate
estragado à partida? Olhem para aquele que tem sido anunciado sobre as funções
do Estado. Com os atuais protagonistas políticos, é impossível termos uma
discussão que é bem necessária.
Convém não esquecer como tudo começou.
Este primeiro-ministro alcandorou-se ao poder afirmando que o desequilíbrio das
contas públicas não implicava mais sacrifícios para os portugueses, pois tudo
se resolvia cortando nas gorduras do Estado. Nunca saberemos qual foi a intenção
da estratégia. Mas ou estávamos perante um caso de pura ignorância ou de demagogia
desbragada que não olhou a fins para ganhar eleições. Independentemente da
conclusão, as consequências são evidentes. Uma vez no poder, a margem de manobra
de Passos Coelho estaria irremediavelmente comprometida – quando fosse
necessário, nenhum português lhe reconheceria legitimidade para ser protagonista
de um debate sério sobre funções do Estado e cortes na despesa. Para princípio
de conversa, a estratégia de Passos Coelho não foi má, foi péssima.
Chegados aqui, os contributos do
Governo continuam a não ser os melhores. Não apenas aguardamos um mea culpa face ao embuste da campanha,
como, no mínimo, era necessário que se arrepiasse caminho perante o desastre da
estratégia orçamental dos últimos dois anos. Era a única forma de se iniciar o
debate alargado e politicamente sustentável de que necessitamos. Em lugar
disso, o Governo finge que não teve nada a ver com a conversa sobre as gorduras
do Estado, assobia para o ar perante o fracasso da execução orçamental e omite
o que de facto se passou com a 5ª avaliação da troika.
Mais grave, a pairar por cima de tudo
isto continua a mesma incompreensão do Executivo em relação às exigências
éticas associadas à austeridade. Ninguém tinha dúvidas que o que nos esperava
era muito difícil, mas, também, um mínimo de bom senso bastava para se perceber
que todos os cuidados eram poucos para que a aplicação do memorando fosse politicamente
exequível. E também aqui o Governo deitou tudo a perder, delapidando o capital de
que agora necessita, desde logo para garantir a sua sobrevivência. Na última
edição do Expresso, uma fonte governamental afirmava, com uma ligeireza
chocante, “de caras, podemos cortar 50 mil funcionários
públicos”. Ou seja, para este Governo, tudo se resolve, de caras, acrescentando
desempregados aos desempregados, como se se estivessem a somar parcelas
abstractas numa folha de cálculo.
Esta
semana, enquanto acompanhava as eleições norte-americanas, regressei ao
impressionante memorial de Franklin D. Roosevelt. Ao percorrer, entre a pedra
austera, as presidências de FDR, reencontrei uma frase lapidar: “nenhum país,
por mais rico, pode permitir-se desperdiçar os seus recursos humanos. A
desmoralização provocada pelo desemprego em massa é a nossa maior extravagância.
Moralmente, é a maior ameaça à nossa ordem social”.
De
caras que esta era uma frase que devia ser afixada nos gabinetes de todos os
membros do Governo. Talvez depois fosse possível iniciar uma conversa.
publicado no Expresso de 10 de Novembro
<< Home