A miséria da ética social
Entre
o sem número de patacoadas anunciadas pela coligação que nos governa,
destaca-se a promessa de que as medidas do Executivo seriam marcadas por uma
“ética social na austeridade”. Fazia todo o sentido. Níveis de austeridade como
os que enfrentamos ameaçam a democracia e a existência de algum esforço – mesmo
que ténue – para compensar os que mais sofrem com o processo de ajustamento é
decisiva. Não só porque é a única forma de garantir que o regime resiste, mas
também porque só assim é politicamente viável cumprir o memorando com a troika.
Por
razões que ainda não compreendemos plenamente, Passos Coelho resolveu regressar
do verão anunciando uma medida – as alterações na TSU – que configurava um
inusitado movimento redistributivo, penalizando os mais fracos e reforçando os
mais fortes. Depois, a história é conhecida: a proposta caiu às mãos da rua, o
CDS aproveitou para cavalgar o descontentamento e a crise política instalou-se
no Conselho de Ministros. Pelo caminho, a popularidade do Governo colapsou.
Como
que para provar que o Governo não aprende, nem sequer com os próprios erros,
esta semana não ocorreu nada melhor ao Executivo do que anunciar novos cortes
na rede de mínimos sociais. Do subsídio de desemprego ao complemento solidário
para idosos, passando pelo rendimento social de inserção nada escapou ao que
pode ser descrito como um ataque tentado com “napalm social”. Não sabendo onde
cortar, o Governo optou por poupar, com desvelo pornográfico, na proteção aos
mais desfavorecidos: pobres, idosos e desempregados.
Este
opção não é politicamente neutra: enquanto se degrada a rede de mínimos sociais,
empurrando milhares de cidadãos para abaixo do limiar de pobreza, vamo-nos
aproximando de um passado onde a fome e a indigência social eram o último
recurso dos desempregados. Quando temos um mercado de trabalho profundamente
deprimido, é caso para dizer: bem regressados à barbárie social.
Na
ausência de facto de um primeiro-ministro, Vítor Gaspar, fazendo prova de vida
da sua qualidade de regente, aproveitou para explicar, no parlamento, o
contexto da opção: “existe um enorme desvio entre o que
os portugueses acham que devem ter como funções do Estado e os impostos que
estão dispostos a pagar”. A asserção pode bem ser verdadeira, mas talvez valha
a pena ter a percepção que, a existir, esse desvio não radica na despesa com a
rede de mínimos sociais (um instrumento fundamental para que sejamos uma
sociedade, se nada mais, decente). Estamos a falar de um conjunto de medidas
que dá um contributo marginal para a despesa, mas que contribui muito
significativamente para a redução de desigualdades e, acima de tudo, para o
aliviar das formas mais extremas de pobreza.
Quem
não percebe que são anúncios como este que degradam de modo irreversível a
capacidade política do governo e a execução do memorando de entendimento, pura
e simplesmente deixou de manter níveis de contacto, ainda que ténues, com a realidade.
publicado no Expresso de 27 de Outubro
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