segunda-feira, outubro 08, 2012

Um ar irrespirável


Há duas semanas, o país saiu à rua para se manifestar. Da esquerda à direita, ouviram-se vozes críticas das políticas do Governo. Mesmo o CDS, que faz parte da coligação, não hesitou em tornar público o seu desconforto com o confisco fiscal e com a aberração económica e social que eram as alterações à TSU. Não tenho dúvidas em reconhecer a ameaça que as medidas anunciadas representam e a recomposição dos equilíbrios de poder na sociedade portuguesa que lhes está implícita. Mas, se é possível estabelecer uma escala de gravidade nas opções políticas, devo dizer que as declarações da ministra da Justiça esta semana são ainda mais assustadoras.
            Uma coisa é um Governo afirmar uma visão distinta, mas politicamente legítima, sobre o que deve ser a organização da nossa economia política, outra, bem diferente, é colocar em causa o consenso civilizacional em que assenta a nossa democracia e, acrescento, qualquer sociedade decente. É essa a consequência das afirmações da ministra da Justiça quando, no mesmo dia em que três ex-governantes eram alvo de buscas domiciliárias, com a prisão de Caxias como pano de fundo, garantiu que “acabou o tempo da impunidade”.
Deixemos de lado o cinismo em todo o seu esplendor da afirmação de que as suas declarações não se reportavam a nenhum caso concreto ou o silêncio cúmplice com o facto intolerável de, entre nós, as buscas serem impunemente publicitadas, tornando indivíduos inocentes em condenados ambulantes, sem possibilidade de defesa. Concentremo-nos no “fim da impunidade”.
Não sei nada sobre os factos que estão na base desta investigação e, naturalmente, não ponho as mãos no fogo por ninguém. Mas sei que, em Portugal, está criado um caldo cultural e montado um circo justicialista propícios ao germinar de monstruosidades e de condenações sumárias na praça pública. O que se espera de um membro de um Governo numa democracia é que pedagogicamente contrarie a tendência, o que nos é oferecido pela ministra da Justiça é um reforço deste quadro sombrio.
Um titular do cargo de ministro da Justiça zela pela garantia de coisas elementares num Estado de direito, à cabeça de todas, a presunção de inocência, e não pode nunca pactuar com condenações baseadas em percepções públicas sobre corrupção, alimentadas por uma comunicação social que cavalga a insatisfação social. Quando tudo parece ruir, a última coisa de que precisávamos era de políticos que buscam a sua salvação pessoal na exploração dos sentimentos mais negativos sobre a classe a que pertencem, ultrapassando levianamente a fronteira que separa a barbárie da civilização e do Estado de direito. Até prova em contrário, os políticos são todos corruptos, é-nos sugerido diariamente; no fundo, Paula Teixeira da Cruz, ao afirmar que acabou o tempo da impunidade (para bom entendedor, o tempo em que a corrupção não era punida), vem confirmá-lo.
publicado no Expresso de 29 de Setembro