Um ar irrespirável
Há duas
semanas, o país saiu à rua para se manifestar. Da esquerda à direita,
ouviram-se vozes críticas das políticas do Governo. Mesmo o CDS, que faz parte
da coligação, não hesitou em tornar público o seu desconforto com o confisco fiscal
e com a aberração económica e social que eram as alterações à TSU. Não tenho
dúvidas em reconhecer a ameaça que as medidas anunciadas representam e a
recomposição dos equilíbrios de poder na sociedade portuguesa que lhes está implícita.
Mas, se é possível estabelecer uma escala de gravidade nas opções políticas, devo
dizer que as declarações da ministra da Justiça esta semana são ainda mais
assustadoras.
Uma coisa é um Governo afirmar uma
visão distinta, mas politicamente legítima, sobre o que deve ser a organização
da nossa economia política, outra, bem diferente, é colocar em causa o consenso
civilizacional em que assenta a nossa democracia e, acrescento, qualquer
sociedade decente. É essa a consequência das afirmações da ministra da Justiça
quando, no mesmo dia em que três ex-governantes eram alvo de buscas
domiciliárias, com a prisão de Caxias como pano de fundo, garantiu que “acabou
o tempo da impunidade”.
Deixemos
de lado o cinismo em todo o seu esplendor da afirmação de que as suas
declarações não se reportavam a nenhum caso concreto ou o silêncio cúmplice com
o facto intolerável de, entre nós, as buscas serem impunemente publicitadas,
tornando indivíduos inocentes em condenados ambulantes, sem possibilidade de
defesa. Concentremo-nos no “fim da impunidade”.
Não
sei nada sobre os factos que estão na base desta investigação e, naturalmente,
não ponho as mãos no fogo por ninguém. Mas sei que, em Portugal, está criado um
caldo cultural e montado um circo justicialista propícios ao germinar de monstruosidades
e de condenações sumárias na praça pública. O que se espera de um membro de um Governo
numa democracia é que pedagogicamente contrarie a tendência, o que nos é
oferecido pela ministra da Justiça é um reforço deste quadro sombrio.
Um
titular do cargo de ministro da Justiça zela pela garantia de coisas
elementares num Estado de direito, à cabeça de todas, a presunção de inocência,
e não pode nunca pactuar com condenações baseadas em percepções públicas sobre
corrupção, alimentadas por uma comunicação social que cavalga a insatisfação
social. Quando tudo parece ruir, a última coisa de que precisávamos era de
políticos que buscam a sua salvação pessoal na exploração dos sentimentos mais
negativos sobre a classe a que pertencem, ultrapassando levianamente a
fronteira que separa a barbárie da civilização e do Estado de direito. Até
prova em contrário, os políticos são todos corruptos, é-nos sugerido
diariamente; no fundo, Paula Teixeira da Cruz, ao afirmar que acabou o tempo da
impunidade (para bom entendedor, o tempo em que a corrupção não era punida),
vem confirmá-lo.
publicado no Expresso de 29 de Setembro
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