Memória do Futuro
Memória do Futuro
O
historiador Anthony D. Smith escreveu que “sem memória não há
identidade; sem identidade, não há nação”. Vale a pena refletir sobre a asserção,
num dia em que se celebra pela última vez o feriado do 5 de Outubro, data da implantação da
República, e quando, daqui a um par de meses, também o 1º de Dezembro, dia da
nossa independência, deixará de ser feriado nacional.
Como
acontece com todas as formas de identificação (à cabeça a família, mas, também,
a religião), a pertença a uma nação implica a partilha de referências a um
passado comum, através do qual se constrói uma identidade. A memória colectiva
é o cimento da vida em comunidade e, numa era em que tudo se dispersa e parece
ruir, a nação é ainda um lugar privilegiado de identificação. Um porto de
abrigo, mas, também, de partida.
Há,
contudo, em torno da comemoração das efemérides políticas um discurso
recorrente, que sugere que são resquícios de um passado distante, que pouco diz
aos portugueses de hoje. Nada de mais errado. Mesmo que a componente
popular dos festejos se vá diluindo – o que é natural –, essa não é razão para
suprimir a celebração institucional do que é a memória territorializada de uma ‘comunidade
imaginada’, na feliz expressão de Benedict Anderson. Uma nação, convém
recordar, não só não existe ‘em si’, como é socialmente construída e
alicerça-se não num conjunto de relações individuais, mas numa meta-memória,
assente em afinidades políticas que não podem deixar de ser invocadas – sob
pena de se extinguirem, arrastando com elas a própria comunidade política.
Ao suprimir os feriados do 5 de Outubro e do 1º de Dezembro, o Governo
revela um misto de leviandade e irresponsabilidade, sugerindo, uma vez mais,
que está convicto de que tudo é reconstruível a partir da vontade política do
momento, num experimentalismo que só pode correr mal. Mal ou bem, hoje com uma
distância simbólica crescente, os feriados que celebram o regime e a
independência são uma forma de sincronizar o nosso passado colectivo com o
presente, construindo uma memória coletiva, que é um requisito para existirmos
como nação no futuro.
Convém, contudo, não desvalorizar que o fim da celebração da
República tem também um efeito de ocultação do que é, ou deveria ser, o chão
comum em que assenta o nosso regime e a nossa comunidade. A República, por um
lado, como representação pluralista e livre dos cidadãos, e quadro
institucional no qual se constrói a nação; por outro, como regime onde
prevalece o primado da política como resposta à questão económica e social e
não o contrário.
Esta crise tem sido, de facto, uma oportunidade para brincar com o
fogo, e como descobriremos, infelizmente, à degradação económica e social
seguir-se-á a decadência política e institucional, num contexto em que os laços
que nos uniram foram sendo paulatinamente destruídos. Se não nos celebramos
como comunidade política independente, corremos o risco de o deixar de ser.
Publicado no
Expresso de 5 de Outubro
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