quinta-feira, abril 26, 2012

Presos numa encruzilhada

Nenhum outro processo político europeu revela de forma tão clara a encruzilhada em que se encontra o centro-esquerda como a discussão sobre o novo Pacto Orçamental. Uma encruzilhada que não poderia deixar de ter consequências entre nós e que são agravadas pelo facto de Portugal se encontrar, de facto, sob tutela externa e o pedido de resgate ter ocorrido com um governo do PS. Não por acaso, a ratificação do Tratado serviu, uma vez mais, para expor a situação em que o PS se encontra. Os socialistas, por força das circunstâncias, não podiam não aprovar o Tratado, do mesmo modo que, se ambicionam ter uma estratégia, não podiam votar favoravelmente. No fundo, o PS estava perante um dilema do qual sairia sempre perdedor e que vai ter custos políticos profundos no médio prazo. Era possível ter feito diferente? Não. Era necessário fazer diferente? Sim. Apresentado como a componente orçamental que continua a faltar à integração monetária, o Pacto não só não cumpre esse objectivo como consolida uma estratégia política europeia de sentido único. Ao contrário do que foi prática na construção europeia, esta revisão do Tratado não procurou nenhum tipo de síntese ideológica. Ora, convém não esquecer, a integração europeia foi produto de um compromisso histórico entre social-democratas e democratas-cristãos. Este Tratado visa consagrar a hegemonia da direita liberal à custa da capitulação política das restantes mundividências. Há uma diferença significativa entre um consenso desejável em torno da necessidade de consolidação das contas públicas e uma homogeneização que afasta as possibilidades dos Estados-membros decidirem o modo como alcançam a disciplina orçamental e que tipo de Estado social desejam. As consequências são evidentes: se o Tratado for para levar a sério, os Estados-membros menos desenvolvidos ficam privados dos mecanismos de política económica que tornam possível recuperar atrasos, ao mesmo tempo que continuam a não ter os instrumentos financeiros desejáveis, característicos de um sistema federal. No fundo, alienamos soberania, sem qualquer tipo de contrapartidas. Ainda assim, há uma réstia de esperança. No essencial, estamos perante uma institucionalização da hipocrisia: não só os preceitos do Tratado não visam responder às dificuldades que enfrenta a zona euro hoje, como não vão ser cumpridos pelos mesmos governos que agora os subscrevem (dos 25 Estados, apenas quatro cumprem, neste momento, o número mágico para o défice estrutural – sendo que Alemanha e França não fazem parte do grupo). No seu livro póstumo, Thinking the Twentieth Century, Tony Judt, numa conversa com o também historiador Timothy Snyder, deixa-nos uma espécie de lamento céptico: “é provável que, enquanto intelectuais e filósofos políticos, estejamos perante uma situação em que a nossa tarefa principal não é imaginar mundos melhores, mas, antes, pensar como é que podemos prevenir mundos piores”. No fundo, como mostra a discussão política na Europa de hoje, é isso que nos resta. publicado no Expresso de 14 de Abril

Uma espécie de fetichismo

Num mundo perfeito, poderíamos desenhar o modelo de segurança social ideal. Esse modelo combinaria uma componente de repartição com uma de capitalização. Infelizmente, na realidade não há “posições iniciais”, pelo que nos resta encontrar formas graduais de reformar os sistemas tal como se foram institucionalizando. O modelo de segurança social português enfrenta problemas apenas no longo prazo (de acordo com o OE 2012 há reservas para pagar pensões até 2050). Ora, uma coisa é reformar o sistema previdencial preventivamente e com realismo (alterando fórmulas de cálculo, diversificando fontes de financiamento), conscientes de que a sustentabilidade é função, no essencial, do comportamento da economia, outra é, em nome de um fetichismo ideológico, recorrer ao plafonamento como solução mirífica. O plafonamento não só não é a única forma de introduzir mecanismos de capitalização, como não resolve o problema da sustentabilidade e até o aprofunda no médio prazo – estamos a falar da diminuição das contribuições hoje e das pensões no futuro. Num quadro de profundos desequilíbrios orçamentais, não se percebe como é que o mesmo Governo que não conseguiu encontrar alternativa para a diminuição da taxa social única é capaz de financiar a perda de contribuições na fase de transição. A menos que esta seja paga, de facto, por uma subida abrupta da idade legal de reforma. Contudo, o aspecto mais pernicioso deste debate é o modo como num contexto de profunda incerteza vem adicionar novos riscos numa área que, em todo o Ocidente, foi o cimento da consolidação dos Estados-nação desde o final do século XIX e das democracias desde o pós-guerra. É o que se chama brincar com o fogo. comentário à "proposta" de reforma do sistema de pensões publicado no Expresso de 21 de Abril

domingo, abril 22, 2012

Expresso da meia-noite sobre segurança social

terça-feira, abril 17, 2012

A tempestade perfeita no PS

A sucessão de mini-crises no Partido Socialista, que teve esta semana o seu apogeu, pode ser lida como fruto da incapacidade de afirmação de António José Seguro, mas é bem mais do que isso. O PS enfrenta uma tempestade perfeita onde dificuldades estruturais se conjugam com obstáculos conjunturais e incapacidade da actual direcção.
Acima de todos os problemas circunstanciais, os socialistas enfrentam um de natureza estrutural, que dura já há algumas décadas. O sucesso político da esquerda democrática durante a segunda metade do século XX foi fruto de um contexto social, demográfico e económico que se alterou profundamente. No mundo de hoje, já distante do ‘liberalismo protegido’ do pós-guerra, a social-democracia passou a ter enormes dificuldades de afirmação. Não por acaso, a sua hegemonia em meados da década de noventa assentou numa agenda modernizadora que rompeu com a tradição e que aparentava ter sido desenhada para um novo contexto. Perante a crise da zona euro e a iminente consagração nos tratados de uma leitura da crise que institucionaliza o projecto político da direita, assistimos a uma capitulação política da esquerda democrática e vivemos as consequências das escolhas feitas pelos governos europeus há perto de uma década, que eram maioritariamente da terceira via.
Independentemente da leitura que possamos fazer das opções recentes, a verdade é que não há uma resposta coerente, do lado da esquerda, aos desafios que hoje se colocam. Até existir esta resposta, torna-se difícil construir um discurso programático consistente onde quer que seja. Portugal não é excepção. A crise, que aparentava ser uma oportunidade para reinventar a esquerda, transformou-se num poderoso mecanismo desagregador.
Como se não fossem suficientes os obstáculos estruturais, há factores conjunturais a limitar a acção de Seguro. Não só nenhum líder da oposição foi capaz de se afirmar após o seu partido ter saído do governo, como o PS se encontra preso ao memorando de entendimento e é, de facto, fortemente responsabilizado pela crise que Portugal enfrenta. Por mais capacidades que Seguro tivesse, teria necessariamente de percorrer um longo calvário.
Sendo a margem de manobra do novo secretário-geral do PS curta, a verdade é que Seguro não tem sabido estar acima das circunstâncias. Não só revelou dificuldade em definir um campo programático (e quando o fez escudou-se nas questões éticas, um refúgio que tem consequências perversas e que ofusca os temas económicos e sociais), como, perante cada crise, em lugar de alargar a sua influência e construir pontes, foi-se fechando sucessivamente. Entre a sofreguidão dos que o querem apear, sem qualquer horizonte estratégico, e uma gestão burocrática que vai de acantonamento em acantonamento, torna-se difícil identificar racionalidade na acção política do PS. O mais provável é a actual direcção do PS não acabar bem, mas também, por mais golpes de asa que houvesse, dificilmente um líder do PS seria capaz de se afirmar no actual contexto.
publicado no Expresso de 6 de Abril

terça-feira, abril 10, 2012

Olhar para trás

Olhar para trás
Ao longo de três décadas, pese embora divergências significativas, os sucessivos governos foram convergindo em torno de uma agenda modernizadora. Por vezes com exageros, por outras com demasiada timidez, quer os executivos do PS, quer os do PSD reformaram as políticas públicas sem lançar um olhar nostálgico em relação ao passado. Os erros cometidos foram, naturalmente, muitos. O maior dos quais, provavelmente, foi o da política de terra queimada – que levou frequentemente cada governo a fazer tábua rasa do que havia sido feito pelo executivo anterior. Mas, independentemente das escolhas feitas, nunca assistimos a nenhum tipo de saudosismo.
Como se não bastassem a estratégia de empobrecimento, os estímulos à emigração e uma ministra da Justiça que não perde uma oportunidade para revelar vontade de criminalizar a actividade política dos seus antecessores, Nuno Crato anunciou, agora, o regresso aos exames na “4ª classe”.
Por mais voltas que se dê, a proposta parece encontrar fundamento apenas numa visão idílica de um passado que nunca existiu: o da exigência e do “antigamente é que se aprendia”. Mas, para além da carga simbólica, o regresso aos exames da 4ª classe tem o condão de centrar a discussão sobre educação numa dicotomia simplista (facilitismo vs rigor) e assente em falsas evidências.
Talvez um princípio avisado para o reformismo seja não cair na tentação do excesso de experimentalismo. Portugal tem muito a aprender com as soluções dos outros países, com os seus erros e sucessos. Ora, se nada mais, o facto de não existir rigorosamente nenhum país europeu com exames no 4º ano deveria ser motivo para ponderação. Mas, para o governo português, isso parece pouco importar.
É claro que os exames são um mecanismo fundamental para a aferição de conhecimentos e não podemos conceber ensino sem avaliação. Contudo, não são os exames que, por si só, garantem a qualidade da aprendizagem. Ora, hoje já existem provas para aferir os conhecimentos das crianças de nove anos que terminam o 4º ano (com uma avaliação qualitativa).
Esta fixação examinadora, que visaria contrariar a alegada cultura de facilitismo que terá contagiado todo o ensino em Portugal, esbarra nas evidências. Para além dos países que melhores resultados têm nas comparações internacionais serem aqueles que menos e mais tarde examinam, Portugal é também um caso de não facilitismo, apresentando uma das maiores percentagem de jovens até aos 15 anos que chumbou pelo menos uma vez. Os números impressionam: 35% dos jovens portugueses reprovaram, valor bem acima da média da OCDE (13%).
Nesta como em muitas outras matérias, talvez fosse preferível que o Governo, em lugar de encontrar resguardo em diatribes ideológicas, ainda para mais de carácter saudosista, e num maniqueísmo retórico, que só serve para esconder fragilidades programáticas, procurasse aproximar Portugal das boas práticas europeias. Ao olhar para trás, a estratégia do Governo só agudizará a natureza dos nossos problemas e contribuirá para focar o debate político em dicotomias redutoras e extremistas.

publicado no Expresso de 31 de Março

Contracorrente especial PS (3 de Abril)

terça-feira, abril 03, 2012

O PSD reconstruído

A história do PSD tem muitos traços persistentes. Contudo, é bem possível que o congresso deste fim-de-semana consolide algumas rupturas significativas. Em parte explicáveis por uma situação económica e social em profunda mutação, que obriga a um reposicionamento dos sociais-democratas. Mas a alteração de contexto não explica tudo.
Desde a formação, o PSD foi sempre um partido eclético, abarcando desde alguma da oposição ao regime até sectores claramente de direita. Ao não reproduzir linearmente clivagens sociais, o PSD conseguiu abarcar diversos grupos, muitos deles de natureza contraditória. Além do mais, fundado num contexto em que a direita jogava à defesa, o que foi uma necessidade – a ausência de um compromisso ideológico claro – tornou-se numa vantagem – permitindo ao partido tornar-se eleitoralmente competitivo, enquanto representante dos interesses das classes médias com perspectivas de mobilidade social ascendente.
A fraca institucionalização do partido foi sendo compensada por lideranças capazes de unir os vários PSDs. O cimento dessa unidade foi invariavelmente o poder executivo. Não por acaso, quando na oposição, o PSD foi trucidando líderes, invariavelmente representantes de facções internas e incapazes de reproduzir os equilíbrios de poder que Sá Carneiro e, acima de tudo, Cavaco Silva foram capazes de estabelecer. Desde então, muita coisa se alterou. As passagens pelo poder com Durão e Santana empurraram o PSD para a direita e Passos Coelho não hesitou em afirmar-se como um líder ideologicamente menos eclético e assumidamente liberal.
Depois de vencer as eleições com uma plataforma que suspendeu a retórica liberal e geriu inteligentemente o ressentimento em relação a Sócrates, Passos Coelho viu-se no poder. Uma vez no Governo, o reformismo tem-se circunscrito à desvalorização salarial, ao desmantelamento do Estado e a retórica mais liberal foi afastada da versão do programa que será aprovado no congresso. Sem conseguir reformar as políticas públicas, também por muita impreparação e indisponibilidade para enfrentar, de facto, os interesses instalados, o Governo parece ter centrado as suas energias na criminalização da actividade do executivo anterior, mantendo Sócrates no centro da agenda política.
Com o empobrecimento como núcleo duro da estratégia política e com uma base de apoio interno assente num grupo ultra-liberal, na rede de poder autárquico e nas solidariedades construídas na JSD, Passos Coelho tem manifestado dificuldade em alargar a sua influência e em atrair algumas elites que sempre desempenharam um papel importante e que se mantêm fieis a Cavaco Silva. Por agora, com a Troika como desculpa, a táctica vai sendo suficiente. Mas será possível a este PSD voltar a ter uma estratégia e ser o partido das classes médias pouco politizadas, mas com forte expectativa de mobilidade social?

publicado no Expresso de 24 de Março