sexta-feira, novembro 25, 2005

lutar contra moinhos de vento

Quando o mal-estar se instala é natural que se procure identificar os responsáveis. Dos motins em Paris, ao desemprego persistente na Alemanha, passando pelo crescimento medíocre da economia portuguesa, tudo parece ser responsabilidade do modelo social europeu. Neste caso, como em muitos outros, há uma atracção especial pelas explicações simplificadoras que, mais tarde, traz complicações.

Antes de mais, porque a própria ideia de modelo social europeu é equívoca. Não só a integração da política social é praticamente inexistente, como também, no espaço comum a quinze, a diversidade dos modelos sociais é assinalável. As dimensões centrais da política social continuam a ser da esfera de competência dos Estados membros, com influência residual da União Europeia, e a forma como os países europeus procuram conciliar disciplina orçamental com crescimento económico e promoção da coesão social varia quase tanto entre países europeus como entre estes e o modelo alternativo dos Estados Unidos da América.

Claro que há um “mal europeu”. Mas isto não quer dizer que toda a Europa esteja a lidar mal com os objectivos de crescimento económico e promoção da coesão social. Há, na Europa, um compromisso comum e distintivo com a justiça social como princípio norteador das políticas públicas; com o reconhecimento da coesão como factor produtivo e, ainda, com a valorização do diálogo social como a forma mais eficaz de compatibilizar interesses contraditórios. Mas o modo como estes princípios se organizam varia tanto que é impossível falar de um modelo social europeu único. Se isto não for entendido, pura e simplesmente não seremos capazes de enfrentar os problemas que existem e ficaremos enredados numa disputa ideológica, sem base empírica.

Eleger o modelo social europeu como causa de todos os males pouco mais é do que uma batalha contra moinhos de vento. Improdutiva e contraproducente.

É possível agrupar os países europeus em torno das prioridades do seu modelo de bem-estar. Os escandinavos dão prioridade à solidariedade e à redistribuição; os ‘continentais’, à coesão através da garantia do emprego estável para o ‘male-breadwinner’ e os anglo-saxónicos ao crescimento económico. É comum aceitar-se a inevitabilidade de ‘trade-offs’ entre estes princípios.

Contudo, a realidade revela algo de diverso.

Os países escandinavos são aqueles que não só mostram melhor ‘performance’ na política de redistribuição, como fazem parte das economias mais competitivas do mundo – à cabeça a Finlândia, mas, também, a Dinamarca e a Suécia – além de que todos estes países apresentam níveis de emprego muito elevados (72,7% para uma média de 63,3% (UE-25). Quer isto dizer que os países que, no espaço europeu, mais longe levaram o seu modelo social são aqueles que têm economias mais pujantes, maior criação de emprego, ao mesmo tempo que mantém o compromisso com a solidariedade.

Acontece que, ainda há uma década, o primeiro lugar no ‘ranking’ de ”casos problemáticos” não era ocupado, como agora, pela Alemanha, França e Itália, mas, sim, pelos países escandinavos. A falência do seu modelo social parecia inevitável. Os problemas que o atingiam eram diferentes daqueles que afectam outros países hoje. Até porque a estrutura social dos países nórdicos é diversa, bem como os dispositivos políticos e a cultura institucional dominante. Mas o que aconteceu, desde então, deveria ser motivo de maior atenção para os restantes países da União – à imagem do que foi feito no Reino Unido com Tony Blair, que emulou grande parte da estratégia reformista escandinava.

Em Portugal, e nos restantes países europeus, mais do que culpabilizar o modelo social europeu, talvez fosse preferível identificar os problemas na sua diversidade e, consequentemente, evitar soluções únicas. Aprender com a experiência escandinava significa, entre outras coisas, refutar o imobilismo, reformando com a consciência de que para garantir o futuro do modelo social é necessário mudar. Perante a escassez de recursos e o arrefecimento económico, os preconceitos ideológicos, de todos os quadrantes, estão longe de ser uma ajuda. Promover a flexibilização da legislação laboral, combinando-a com maior protecção social, diversificar o financiamento da segurança social e optar por focalizar selectivamente as políticas, designadamente as de combate à pobreza, nos grupos de facto mais desfavorecidos são pequenos passos. Passos produtivos e concretos.

publicado no diário económico

quinta-feira, novembro 17, 2005

o cheque em branco

O candidato Cavaco Silva tem montada uma estratégia de campanha bastante profissional. Não falar é a ideia-chave. Não por acaso, quando durante oito minutos apresentou a sua candidatura, aproveitou logo para dizer que não teria porta-voz. Estava dado o primeiro passo. Depois do tabu, o candidato não falaria, nem ninguém por ele. A situação gerou naturalmente momentos caricatos, à cabeça os protagonizados pela sua mandatária para a juventude, que se recusa a debater ou, ainda, as perguntas por escrito feitas aos candidatos que ora ficam sem resposta, ora são respondidas na terceira pessoa (”o Prof. Cavaco Silva pensa...”).
Mas esta semana, com a entrevista à TVI, a expectativa era que o candidato falasse e se comprometesse com alguma coisa. Eis o que se passou: Sobre a dissolução do Parlamento e consequente queda do Governo de Santana Lopes, disse que só Jorge Sampaio é que estava na posse de todos os dados; sobre o actual Governo, afirmou ser ainda cedo para avaliá-lo; sobre o Orçamento de Estado disse que era incorrecto fazer uma apreciação, tendo em conta que ainda se encontra em funções o Presidente Sampaio. Nada disto surpreende. O primeiro-ministro que fugia dos debates, transformou-se no proto-candidato que geria silêncios e agora no candidato que quando fala apenas diz vacuidades, fingindo pairar acima de tudo. Inclusive dos problemas concretos com que se confronta um Presidente da República. Para Cavaco Silva, o melhor era que não houvesse campanha e que fosse, desde já, entronizado Presidente da República.
Esta táctica tem, naturalmente, a ver com as características peculiares do candidato. Mas o que esconde é também uma outra coisa. Cavaco sabe que para superar os 46% que teve há dez anos precisa de fazer uma de duas coisas: ou gerir um silêncio em que não se compromete com nada, ou, em alternativa, revelar um jogo de cintura que lhe permita, ao mesmo tempo, fixar o eleitorado de direita não alienando aquele que está ao centro.
Acontece que Cavaco Silva não tem margem para esse jogo de cintura. Se, mesmo que por tacticismo, diz alguma coisa que possa parecer mais próximo do Governo de José Sócrates, logo coloca em causa as ambições governativas do PSD. Se revela sensibilidade (tardia) para que a Guerra do Iraque foi um erro insensato, logo os “bushistas” que o apoiam se sentirão defraudados.
Com uma direcção e comissão políticas inequivocamente de direita e que reproduzem em tudo a sua candidatura de há dez anos, Cavaco Silva sabe que a manta que cobre a sua plataforma eleitoral é curta. Se tapa à direita, logo destapa ao centro e, se tapa ao centro, logo deixa a direita descoberta. O silêncio que tem caracterizado a sua campanha é fruto deste dilema. Ao tudo querer abarcar, Cavaco Silva corre o risco de não mobilizar claramente ninguém. É um problema típico das campanhas muito certinhas e que seguem todas as regras dos manuais: perdem autenticidade e incorrem no risco de não agradar a nenhum dos seus diferentes segmentos de apoiantes.
Contudo, a estratégia do silêncio – que aliás não é novidade em actos eleitorais em Portugal – acarreta um risco bem maior e que vai para além das opções entre candidatos presidenciais. No caso concreto destas eleições, há o perigo de conferir um mandato a um candidato que nada diz sobre aquilo que é de facto o seu conteúdo funcional (nem sequer retrospectivamente ficamos a saber como agiria) e que, ao mesmo tempo, se escuda em declarações programáticas que estão fora das competências do Presidente da República, tal como previstas pela Constituição. Ao não se conhecer com clareza o que um candidato pretende fazer, votar nele é passar um cheque em branco. E a última coisa que o país precisava, a somar à crise económica e social, era de desresponsabilização política. Sem que se saiba exactamente o que é que os candidatos presidenciais pretendem de facto fazer, é impossível antecipar a sua acção e avaliá-la eleitoralmente, quando for caso disso.
publicado no Diário Económico.

quinta-feira, novembro 03, 2005

O caminho difícil

Os portugueses não gostam dos seus políticos. Foi sempre assim, poder-se-á afirmar – se exceptuarmos alguns curtos interregnos, próprios dos momentos carismáticos. Mas a verdade é que, em trinta anos de Democracia, nunca a relação entre cidadãos e políticos se caracterizou pelo actual grau de desconfiança. Nunca foi tão popular desprezar aqueles que nos governam, como nos lembra a sondagem ontem divulgada pelo DN.

Entre as várias razões para que isso aconteça, destaca-se, naturalmente, a crise. Depois de décadas em que os políticos iam prometendo e, de facto, as coisas iam melhorando – ou pelo menos havia uma expectativa realista de que assim fosse –, hoje, não só os políticos prometem menos, como é difícil encontrar alguém que exprima uma confiança, ainda que ténue, de que o País pode melhorar. Quando a sensação é de que a crise veio para ficar, culpar os políticos torna-se a opção mais fácil.

Mas se esta é uma tendência que já se fazia sentir, há agora uma novidade. Não são apenas os portugueses que não gostam dos políticos e que lhes devotam um popular desprezo. São também os políticos que não gostam de si próprios e se sentem envergonhados pela sua condição. Quer seja por tacticismo puro, ou por interiorização da opinião popular, a verdade é que se tem tornado difícil encontrar entre os políticos quem assuma a sua condição. Desse ponto de vista, a campanha presidencial tem consolidado a tendência.

É verdade que, nas eleições de 1986, a candidatura da Engª Pintasilgo assentava numa plataforma política fora dos partidos e alternativa a estes – era uma candidatura que agregava os últimos resquícios de um basismo militante e de uma democracia participativa que caracterizou alguns sectores da esquerda no pós-25 de Abril. Mas não se tratava de um discurso anti-política e obteve apenas 7% dos votos. Mesmo o Eanismo sob a forma de partido – o PRD –, pese embora os seus efeitos nefastos, nunca foi maioritário.

Hoje não é assim. A crer nos resultados das primeiras sondagens, quanto mais um candidato se afastar do universo ”hediondo e pusilânime” dos partidos, quanto mais fustigar, mesmo que implicitamente, a classe de que faz parte, mais apoio popular terá. A questão é séria e está para além de meras escolhas entre esquerda e direita. Trata-se de saber que tipo de Democracia queremos para Portugal. Quando se passa o ponto em que já nem os políticos estão dispostos a defender a actividade política, entramos num mundo perigoso e de contornos indefinidos. É um caminho fácil, mas que desconhecemos onde nos pode levar.

Isto não quer dizer que a vida partidária não tenha muitas ”culpas no cartório”. Pelo contrário. Mas o acto de ser candidato a umas eleições deveria servir, não para renegar a actividade política e, pelo caminho, o conflito institucionalizado, típico das democracias-liberais, mas, sim, para fazer pedagogia sobre o que mudar e em que sentido. Quem finge que não faz parte do jogo e que, mesmo que por descontentamento com o estado das coisas, faz parecer que paira acima dele, está a reforçar a descrença na Democracia.

O que se está a passar nos primeiros momentos desta campanha presidencial é apenas um sintoma de algo mais complexo. Em Portugal, o que compensa politicamente é manter uma posição de pouco comprometimento. Para falar claro, o que compensa é não ”meter a mão na massa”. Os ”senadores” de todos os quadrantes políticos já perceberam uma coisa: quando saem do pedestal em que se encontram e vão a jogo, logo perdem a sua popularidade. Fácil nos nossos dias é a demissão cívica e cavalgar a onda de impopularidade face aos partidos e aos políticos. Difícil é sujeitar-se ao voto popular, assumindo a condição de político. Acontece que, para que melhoremos a política, precisamos de mais pessoas com vontade de escolher o caminho difícil e o que temos visto é o contrário.

P.S. - Confesso que os meus níveis de confiança no sistema judicial são muito baixos. Pura e simplesmente acho que, entre nós, a velha máxima, ”quem não deve, não teme”, não se aplica. Desde a semana passada, quando fiquei a saber, pela voz do presidente do seu sindicato, que a independência dos magistrados do Ministério Público dependia do facto de terem um sub-sistema de saúde mais protector do que o do conjunto da administração pública, fiquei ainda mais preocupado. Se bem percebi, um seguro de saúde mais generoso é quanto vale a independência do Ministério Público. Assustador.
publicado no Diário Económico.