quinta-feira, dezembro 29, 2011

Comentário SIC-N

terça-feira, dezembro 27, 2011

A crise veio a calhar

A crise é uma oportunidade, ouvimos dizer constantemente. É verdade. Esta crise tem sido uma oportunidade para implementar uma agenda ideológica que de outro modo não seria possível concretizar. Esta semana isso ficou muito claro.
Após nos ter sido dito, durante meses, que havia um desvio que implicava um esforço colossal, ficámos a conhecer a tradução prática do desejo nunca escondido de ir além da troika. Perante o compromisso de fixar o défice em 5,9% do PIB em 2011, o Governo decidiu apresentar um valor mais baixo, 4,5%. Não só ficámos a saber que este Governo acredita na ideia mágica de ‘austeridade expansionista’ – e que por isso estrangula a economia para lá daquilo a que estamos comprometidos – como tivemos um exemplo prático do que é de facto uma ‘malabarice’.
A transferência do fundo de pensões dos bancários representa um encaixe de 6 mil milhões de euros, o que permite baixar o défice em quase 4 p.p.. Desde logo, esta receita extraordinária sugere que não era preciso ter aplicado um imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal, como o Governo decidiu. A crer na explicação do primeiro-ministro, talvez não seja assim: “se não tivéssemos feito isso nem sequer nos tinham deixado utilizar os fundos de pensões para pagar o défice". Extraordinário. A troika, no fundo, só fechava os olhos a uma ‘malabarice’ contabilística desde que o Governo criasse um novo imposto.
Ainda assim, o problema essencial não é esse. O encaixe que hoje é feito com o fundo de pensões traduz-se num conjunto de responsabilidades futuras e sobre estas pouco se sabe. No passado, a propósito de exercícios do género, o Tribunal de Contas recomendou que “fossem realizados estudos actuariais independentes e isentos de conflitos de interesses, que calculem o valor das responsabilidades transferidas”. Existem estudos sobre esta transferência? Sabemos como é que vão ser pagas as pensões dos bancários no futuro? Ficamos a aguardar a explicação pausada de Vítor Gaspar sobre o que é uma antecipação de receitas extraordinárias. Até lá, o valor final do défice para este ano não passa, mais uma vez, de uma manigância a pagar no futuro.
E oportunidade é mesmo a expressão adequada. No preciso momento em que a segurança social pública contraía mais responsabilidades, o ministro da tutela regressava à velha proposta de limitar o valor das pensões. Estamos face a um eufemismo para se dizer uma outra coisa – queremos diminuir a base contributiva, logo colocar em causa a sustentabilidade financeira do sistema. É uma ideia que pode bem ser classificada como sendo de criança: a menos que se explique como se financiam os custos de transição, não se vê como é que é possível evoluir de um sistema de repartição, em que os descontos de hoje pagam as pensões de hoje, para um que limita os descontos hoje para limitar o valor das pensões amanhã. Talvez aumentando a dívida pública. O mais provável é que tudo não passe de uma oportunidade histórica para se desmantelar o Estado Social.
A crise veio mesmo a calhar.

publicado no Expresso de 16 de Dezembro

segunda-feira, dezembro 19, 2011

Um pouco mais de compaixão e de pedagogia

Quando, numa conferência de imprensa, a ministra italiana do trabalho bloqueou na palavra ‘sacrifícios’ e irrompeu em lágrimas fiquei, a um tempo, perplexo com a fragilidade que não desejo nos políticos perante a adversidade e solidário com alguém incapaz de conter a expressão do seu humanismo. Do mesmo modo que, dias depois, ao ver a mensagem ao país do primeiro-ministro irlandês, após a apresentação do orçamento, não consegui conter a surpresa ao ouvi-lo, dirigindo-se aos irlandeses, dizer com uma clareza quase soletrada, “vocês não são responsáveis”, enquanto explicava a natureza da crise, o papel dos sacrifícios e sugeria um horizonte para o futuro – “recuperar a soberania económica”.
A compaixão que descobrimos no bloqueio emocional da ministra italiana ou a atitude pedagógica do primeiro-ministro irlandês são dois factores que podem fazer diferença perante uma crise da dimensão daquela que enfrentemos. E compaixão e pedagogia são duas coisas que têm faltado ao governo português.
A compaixão é uma virtude. Resulta da empatia face ao sofrimento dos outros e da vontade de aliviar esse mesmo sofrimento. As civilizações ocidentais têm na compaixão uma pedra basilar e não há humanismo sem essa qualidade. Ora a austeridade não é uma proclamação vaga, tem consequências palpáveis, aumenta a carestia de vida de muitos. Em momentos como estes, precisamos colectivamente de compaixão, de sentir que um político que se vê impelido a escolher um caminho árduo, não se torna, por isso, irremediavelmente frio, incapaz de projectar em si o sofrimento dos outros. O que a ministra italiana revelou foi isso mesmo: capacidade de se colocar no lugar dos outros. A democracia tem de ser também o regime da compaixão.
No mesmo sentido, a pedagogia é mobilizadora. Não precisamos de políticos que se deixem cegar pelo voluntarismo e que, pelo caminho, percam a ligação à realidade. Mas também não nos podemos contentar com políticos que capitulam perante as dificuldades e se limitam a dizer que elas tenderão a crescer. Explicar, explicar, explicar é a única forma conhecida de envolver e mobilizar. Nos treze minutos em que se dirigiu aos irlandeses, Enda Kenny não faz outra coisa que não seja explicar e fá-lo sem juízos morais e sem culpabilizações espúrias.
Duas atitudes muito contrastantes com aquilo a que assistimos em Portugal.

P.S.
“O que a história ensina é que os governos e as pessoas nunca aprendem com a história”, afirmou Hegel. Quando escrevo, não são ainda conhecidas as conclusões da enésima cimeira para salvar o euro. Mas uma coisa é certa: a Europa prossegue na ilusão de que pode continuar a alterar tratados, alienando soberania, ainda para mais num contexto de profunda austeridade, descartando a democracia. Há demónios que convém não despertar. Se não deixarmos entrar a democracia a bem, ela forçará a entrada pela porta das traseiras e, nessa altura, não haverá cimeira salvífica.

publicado no Expresso de 10 de Dezembro

quarta-feira, dezembro 07, 2011

Um político assume-se

“A intuição é uma disciplina que não foi à escola”, disse um dia o escritor brasileiro Millôr Fernandes. A frase não pode deixar de ecoar enquanto se lê a autobiografia que Mário Soares lançou esta semana, “Um Político Assume-se”, que tive o privilégio de apresentar. Nas quinhentas páginas, que cobrem o longo século XX e que chegam até aos nossos dias, apesar de todas as alterações nas circunstâncias, há um aspecto muito constante: um protagonista que se moveu frequentemente por intuições.
Podemos todos já ter discordado de Mário Soares em vários momentos, mas todos lhe reconhecemos uma intuição política rara, uma espécie de ‘astúcia da razão’ que não se aprende. Este elemento intuitivo choca com a ideia hoje prevalecente de que a ação política mais eficaz é baseada na racionalidade informada – através da leitura de sondagens e de ‘focus groups’. Ora, se pensarmos bem, nas grandes opções – quando afrontou o Estado Novo e rompeu com a unidade da oposição; quando defendeu a opção europeia e a democracia liberal contra a deriva totalitária; e, mais recentemente, quando criticou a colonização ideológica da social-democracia – Mário Soares arriscou e teve as intuições certas.
Esta propensão ao risco serve, aliás, para contrariar uma ideia feita em relação a Soares. Ao contrário do que é muitas vezes sugerido, não foi um político que, ao longo da sua vida, interpretou o sentimento da maioria e o procurou representar. O que se passou foi quase sempre o oposto. Não estamos perante alguém que se limitou a gerir silêncios e expectativas, aguardando que as suas posições se tornassem maioritárias. Pelo contrário, o percurso de Soares revela uma interpretação da ação política ao arrepio da visão calculista. Os exemplos em que provocou rupturas e contrariou o ambiente político da época são muitos. Foi essa atitude que lhe permitiu transformar ideias incertas e minoritárias em posições maioritárias e até hegemónicas.
Não por acaso, as suas tomadas de posição causaram muitas vezes incompreensão, mesmo no seu espaço político. Com o passar do tempo, acabaram por se revelar certeiras. Steve Jobs, que tinha uma conhecida desconfiança dos estudos de mercado, disse que “as pessoas não sabem o que querem até tu lhes mostrares”. A asserção, aplicada à política, não poderia ser mais verdadeira. Até porque é essa a função dos líderes: procurar mudar as sondagens, em lugar de as cavalgar, através de uma visão do que as pessoas querem, mesmo antes de estas estarem conscientes das suas ambições políticas.
Há, hoje, uma manifesta impaciência face aos políticos. Julgo que tal não resulta, no essencial, de uma ausência de consciência colectiva dos desafios que enfrentamos. Resulta, em importante medida, da ausência de líderes que sigam as intuições, que arrisquem e se assumam, para além das circunstâncias. Podemos ter discordado de Mário Soares e do seu percurso, mas não podemos negar a notável atualidade da forma como vê a atividade política.

artigo publicado no Expresso de 3 de Dezembro

terça-feira, dezembro 06, 2011

Para que serve uma greve?

Há duas formas de desvalorizar uma greve: afirmar que é contraproducente, ao acentuar clivagens entre quem pode e quem não pode fazer, e sublinhar que não produz efeitos, pois a legitimidade eleitoral sobrepõe-se à ‘força da rua’. São riscos evidentes para a mobilização do movimento sindical. Mas será que as greves gerais não mudam de facto nada?
Esta greve não assentou apenas numa mobilização burocrática, circunscrita aos sectores tradicionais. Como acontece invariavelmente em Portugal, a mobilização foi essencialmente no sector público, mas com níveis de adesão maiores e envolvendo grupos profissionais que tendencialmente aderem menos. Ao mesmo tempo, a extensão da austeridade anunciada (e a sua natureza não equitativa) pode bem ter feito com que o sentimento da maioria dos portugueses não tenha sido hostil aos grevistas.
Se nada mais, uma greve serve para dar voz ao descontentamento social e acomodá-lo institucionalmente. Desde logo, é um dos poucos momentos em que o ‘país de baixo’, escassamente revelado no espaço público, emerge: o Portugal dos muitos baixos salários, das vidas de precariedade e que é quase sempre ocultado por uma coligação entre o fascínio com o que é moderno e o revanchismo social. Nos próximos anos, o descontentamento do país que não vive acima das suas possibilidades tenderá a crescer e os sindicatos terão um papel decisivo a desempenhar, nomeadamente garantindo que a contestação não se torna difusa e inorgânica – uma ameaça real à democracia.
Não vale a pena iludir a questão. Uma greve geral tem um impacto económico directo escasso e a sua função principal é procurar alterar as relações de poder, influenciando o que em Portugal é, de facto, o actor principal – o Governo. Bem sei que a amostra é reduzida, pois entre nós só ocorreram duas greves gerais da CGTP com a UGT (1988 e 2010), mas, em ambos os casos, as greves produziram efeitos: abriram as portas à negociação, obrigaram a cedências, culminando em acordos de concertação.
A grande questão agora é saber de que modo o Governo interpreta a greve. Se opta por prosseguir o caminho de rupturas sociais e económicas, sem alargar a base de apoio político e social, ou se, pelo contrário, procura negociar e concertar interesses. A opção seguida terá, certamente, efeitos económicos e sociais, mas nela jogar-se-á uma questão política decisiva e que poderá mudar o mapa das relações de poder em Portugal.
O radicalismo que move o Governo não augura nada de bom. Mas uma coisa é clara, se o executivo optar por continuar a avançar sozinho provocará, para além do empobrecimento, uma alteração estrutural no sistema de representação de interesses em Portugal. Com consequências imediatas: coloca a UGT nos braços da CGTP e empurra o PS para a rua. No curto prazo, a táctica pode fazer sentido para o Governo, mas revelar-se-á dramática para o país. À ruptura económica e social juntar-se-á a ruptura política.

publicado no Expresso de 26 de Novembro