quinta-feira, agosto 25, 2005

É o mercado, estúpido!

A compra da Media Capital pelo grupo espanhol Prisa tem sido um exemplo paradigmático da forma como aqueles que, entre nós, defendem em abstracto o mercado se comportam quando este funciona contrariando as suas agendas. No fundo, a situação não é muito diferente da dos clubes de futebol que são favoráveis ao sorteio dos árbitros, mas assim que lhes sai um árbitro menos simpático, logo se apressam a sublinhar as virtudes das nomeações.

É neste contexto que, para além da discussão jurídica sobre a renovação das licenças de televisão à SIC e à TVI, têm surgido, no debate político, dois tipos de argumentos sobre os riscos da entrada no mercado nacional do grupo espanhol. O facto de Marques Mendes – certamente influenciado pela sua experiência de tutela da comunicação social durante os governos de Cavaco Silva – ter feito do assunto preocupação política amplificou o tema.

Um primeiro argumento, mais caricato, afirma que a TVI tem sido, durante a era Moniz, o verdadeiro contrapoder na sociedade e na política portuguesa (ao regime ou à conjuntura, não se chega a perceber). Onde existe o telelixo e a informação populista – que, com frequência, atenta contra liberdades individuais e a dignidade humana – quem defende este argumento vê na TVI, designadamente nos seus telejornais, um sinal de democratização do acesso aos meios de comunicação social, com o qual, naturalmente, as elites convivem mal. Entre outros problemas, este argumento tem o de confundir massificação com democracia, esquecendo que esta depende mais do pluralismo e da garantia de direitos do que de ser popular e, no caso dos media, apresentar grandes audiências. Se a entrada da Prisa significar, como tem sido dito, a transformação da TVI numa televisão com informação de referência, quem ganha são os portugueses e o seu exercício de cidadania. É natural que este facto crie desconforto a quem tem beneficiado politicamente com a informação tablóide.

Um segundo argumento assenta na alegada proximidade entre o grupo Prisa e o PSOE. De tantas vezes repetida, esta asserção levou a que, no espaço de poucas semanas, o El País tenha passado de jornal de referência a pasquim ao serviço dos socialistas espanhóis. Verdadeiramente espantoso. É que dizer que o El País é um jornal do PSOE é o mesmo que afirmar que o Guardian e o Independent são do Labour; o Daily Telegraph e o Times dos Convervadores; o Figaro da UMP; o Le Monde do PSF ou até, pensando no caso português, que o Expresso e a SIC são do PSD, tendo em conta que o seu principal accionista é militante número um deste partido. No fundo, trata-se de confundir posicionamentos ideológicos dos meios de comunicação social com alinhamentos político-partidários.

É que sendo verdade que na maior parte das democracias institucionalizadas o alinhamento ideológico e político dos órgãos de comunicação social é assumido (uns são de centro-esquerda outros de centro-direita), este não se traduz em alinhamento partidário. Em Portugal, pelo contrário, aquilo a que assistimos frequentemente é a uma relação esquizofrénica dos meios de comunicação social com o seu público. Os media proclamam a sua isenção e ao mesmo tempo têm agendas ideológicas implícitas ou, em versões mais extremas, à segunda e terça-feira têm uma agenda para à quarta e quinta terem outra – o que só gera equívocos. Não ganharíamos, por isso, todos em saber com que linhas se cose a informação que nos é dada? Não é a clarificação ideológica da comunicação social preferível a uma independência que é, inevitavelmente, artificial? Claro que nada disto, como os exemplos que vêm de fora mostram (pense-se no caso do El País), implica que um jornal de centro-esquerda seja caixa de ressonância de um partido do mesmo espaço político ou que um de centro-direita cumpra o mesmo objectivo face a um partido da sua área ideológica.

A entrada no mercado português do grupo Prisa pode ter, entre outras virtudes, a de contribuir para clarificar o espaço dos media em Portugal, aumentando o seu pluralismo e, espera-se, transformando uma informação tablóide em informação de referência. Que tenha sido o mercado a prosseguir esse objectivo é que não deixa de causar desconforto a todos os que defendem a sua acção, mas apenas quando os resultados lhes são favoráveis.

publicado no Diário Económico.

quinta-feira, agosto 11, 2005

Quem paga a democracia?

As notícias sobre o “mensalão” trouxeram de novo a discussão sobre o financiamento dos partidos políticos. Desta feita, o caso parece circunscrever-se ao Brasil. Contudo, numa altura em que a campanha autárquica se aproxima, perante o número impressionante de outdoors já afixados em muitos concelhos do País, não podemos deixar de pensar nos muitos mensalões que por cá têm necessariamente de existir. O assunto é sério, pois mina a credibilidade do regime, e deve ser discutido sem demagogias.

No Brasil como em Portugal – aliás, como na maior parte das democracias – existe um sério problema de financiamento dos partidos políticos. Aceitando que sem partidos políticos livres não há democracia, estamos perante um sério problema de financiamento do próprio sistema democrático. Perante este facto, o argumento normalmente usado é que os partidos gastam muito dinheiro. Ou seja, só há uma questão com o financiamento porque os gastos partidários são excessivos. Será que é mesmo assim?

A razão primeira para o crescimento dos gastos partidários é o afastamento crescente dos cidadãos face à política ou vice-versa. Por paradoxal que possa parecer, quanto maior é o desinteresse pela política, mais os partidos têm de gastar nas suas actividades. Neste contexto, as campanhas eleitorais tornaram-se particularmente relevantes, ainda que nelas se corporizem muitos dos males da política.
As campanhas servem para confirmar todas as ideias negativas sobre a política, mas são também um momento quase único de mobilização. Quando, durante meses a fio, a política não existe e está afastada das preocupações da maioria dos cidadãos, são fundamentais aquelas curtas semanas em que os candidatos estabelecem laços, ainda que frágeis e temporários, com os eleitores. Numa altura, em que o direito de antena nos meios de comunicação de massas (leia-se nas televisões que é o que conta) é cada vez mais escasso, a alternativa que resta aos partidos é intensificar a sua presença nos poucos momentos em que o podem fazer. Mas isso custa muito dinheiro e tenderá a custar sempre mais.

Basta pensar que o essencial das campanhas assenta em momentos de massas que, hoje, pouco têm de espontâneo. Na maior parte das acções de campanha (ex. os comícios ou os jantares de apoio), a parte fundamental da mobilização recai, com custos elevados, sobre as máquinas partidárias, nomeadamente através do aluguer de autocarros. A estes gastos há que acrescentar a importância crescente dos outdoors (que são actualmente dos meios de campanha mais eficazes, porque permitem uma presença mais duradoura dos candidatos e das suas ideias-chave). Estas são as formas que os partidos têm para se tornarem visíveis nos media e criar um efeito de mobilização popular. São formas caras, mas o problema é que as alternativas para mobilizar eleitoralmente os cidadãos ou são piores ou nem sequer são viáveis.
Quando os cidadãos não se interessam pela política e nos meios de comunicação de massas a política só tem direito de antena sob a forma de escândalo, restam poucas alternativas aos partidos para além de gastarem muito dinheiro durante as campanhas eleitorais. A política tornou-se mais irrelevante, pelo que os partidos mais precisam das campanhas para se tornarem circunstancialmente relevantes. Estamos perante um dos mais sérios problemas das democracias liberais.

A política tem custos crescentes que ninguém está disposto a suportar. Os militantes, porque são cada vez menos, não o podem fazer. Os privados, se o fazem é porque têm um interesse particular na actividade política, divergente do interesse comum. O Estado que é quem deveria suportar o sistema democrático – se bem que hoje o faça de um modo bem superior ao do passado – vê-se confrontado com a crise de legitimidade dos partidos e, aos olhos do contribuinte, dificilmente pode pagar mais.

Acontece que a realidade encontra sempre modo de contornar os problemas. No caso do financiamento partidário, a alternativa é as diversas formas de “mensalões”. Umas mais sofisticadas, outras menos. Umas mais danosas para o interesse público, outras mais fundadas nesse alicerce – pretensamente inofensivo – da sociedade portuguesa que é a “cunha”. A verdade é que os gastos com campanhas (e as campanhas para as autárquicas de Outubro estão aí para prová-lo) são invariavelmente superiores aos limites estabelecidos por lei.

O problema é que isto acontece não porque haja uma tendência partidária para o despesismo (se bem que também exista), mas, sim, porque é necessário gastar nas campanhas para que a democracia vá, com dificuldade, existindo. É por isto que, chegado do outro lado do Atlântico, o mensalão deveria servir para nos questionarmos se não seria preferível, colectivamente, pagarmos mais para que a democracia se financie com independência. A alternativa é permitir a continuação da promiscuidade entre interesses privados e interesse público. Em Portugal como no Brasil, o problema não é este mensalão, mas, sim, o facto da democracia poder transformar-se num gigantesco mensalão.
versão integral do artigo publicado no Diário Económico