terça-feira, julho 25, 2006

Uma proposta aventureira

“A oposição não apresenta alternativas”. A frase é tantas vezes repetida que quando a realidade aparenta contrariá-la, gera-se um enorme entusiasmo. Foi assim quando o PSD, após meses de silêncio, anunciou uma reforma para a Segurança Social. Marques Mendes vestia a pele do líder duma oposição “construtiva”. No Estado da Nação, veio a resposta do primeiro-ministro: o PSD chegou tarde. Sobre a bondade da proposta, nem um argumento. Tudo sintomas de degradação do debate político. Tudo porque nem o que o PSD apresentou é uma proposta do que quer que seja – limita-se ao enunciar vago dum princípio; nem é bom princípio responder a más “propostas” com truques parlamentares.

O que diz então o PSD: que concorda com o essencial da reforma do Governo (o factor de sustentabilidade e o período de transição para a fórmula de cálculo), mas propõe acrescentar um plafonamento vertical (i.e. parte das remunerações iria para uma conta individual, fora da lógica de repartição). Assim, o sistema português passaria a ter uma pensão básica para todos os trabalhadores (um sistema público de mínimos), sendo que o complemento dessa pensão resultaria da rentabilidade das contas individuais. Para além deste princípio genérico, pouco mais é dito.

Em algumas declarações fica a saber-se que este regime seria apenas aplicável aos jovens; noutras que para a conta individual iriam 6 a 8 pontos percentuais da taxa social única (o que faz variar brutalmente o impacto financeiro); quanto à conta propriamente dita, ficamos sem conhecer o seu modo de gestão; ficando também sem se saber se a pensão mínima é indexada ou não. Ou seja, apresenta-se um princípio vago e nada é dito sobre a sua concretização.

Mal vai um país quando uma página A4 é considerada uma proposta alternativa de reforma duma área central da governação. Há alturas em que é mesmo preciso fazer as contas, não bastando juntar meia-dúzia de ideias.

No entanto, a vacuidade da proposta do PSD não deve impedir que se discuta a bondade do princípio que lhe está implícito: o plafonamento vertical. E, sejamos claros, independentemente de simpatizarmos com a ideia, há um problema sério de custos de transição dum sistema de repartição puro, como o português, para um misto, como aquele que é enunciado pelo PSD. Podemos achar muito interessante esta mudança, mas para a defendermos há que explicar bem como se pretende pagá-la. A imprecisão da proposta do PSD não permite dizer quanto custa e a solução para o financiamento da transição é insatisfatória.

De acordo com o PSD, a emissão de dívida pública de longo prazo permitiria financiar a transição, até porque a Comissão Europeia não a considera para efeitos de défice excessivo. Dois equívocos sérios. O aumento da dívida pública para financiar a segurança social não é considerado para o défice apenas durante os primeiros 5 anos – ora estamos a falar de custos de transição que rondarão os 30 anos e que em 2030 atingirão cerca de 64 mil milhões de euros – e este exercício limita-se a transferir um problema dum lado para outro: cria despoupança pública para fazer crescer a poupança privada individual.

O PSD contrapõe com uns quantos exemplos estrangeiros, confundindo várias coisas: casos em que a transição foi feita com superavites no sistema, com outros em que se está a falar de plafonamento horizontal e ainda outros em que a maturidade do sistema é fraca, criando condições mais favoráveis para a mudança.

Pelo caminho, esquece um princípio que deve estar presente nas reformas de políticas públicas: os custos associados à mudança para modelos virtuosos podem ser de tal modo elevados que é preferível fazer afinações nas soluções existentes, mesmo que não sejam óptimas. Propor a mudança dos princípios fundadores é um aventureirismo, sobre o qual não se conhece nem os custos, nem o modo como se paga.

Isto é particularmente verdade para Portugal, onde há uma relação quase esquizofrénica com o nosso modelo de pensões. Muitos não gostam da sua natureza – o que é legítimo – e defendem alternativas que nunca conseguem concretizar, dada a impossibilidade de financiar a mudança. A proposta do PSD é apenas mais um exemplo – particularmente pouco sustentado – disto mesmo.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, julho 11, 2006

Os ministros independentes

Entre as singularidades da política portuguesa, encontram-se os ministros independentes. Apresentados aquando da formação dos governos como um sinal de abertura à “sociedade civil”, tendem mais tarde a revelar-se, com excepções, casos problemáticos. Os exemplos recentes de Freitas do Amaral ou, para nos mantermos no actual executivo, o de Campos e Cunha, estão aí para provar como uma vantagem aparente pode trazer problemas no médio prazo (ou porque revelam cansaço ou inabilidade política ou quebras de solidariedade com a linha governativa). Mas para além das idiossincrasias dos ministros, a “independência” é, acima de tudo, um sintoma da fragilidade do sistema político português e das dificuldades que enfrentam, desde a sua génese, os partidos do “arco governativo”.

Não se pense que o número crescente de ministros sem filiação partidária é um sinal de aproximação do nosso sistema à norma europeia. Pelo contrário. As democracias olhadas como exemplares e mais institucionalizadas, caracterizam-se precisamente pela ausência de ministros vindos de “fora” do sistema partidário. No Reino Unido, os membros do Governo são necessariamente deputados, eleitos em eleições competitivas, em círculos uninominais e nos países escandinavos, os governantes tendem a ser “políticos profissionais”, saídos dos aparelhos partidários. Num caso e noutro, há incentivos para que os melhores vão a votos e, não menos importante, se envolvam na vida partidária. Em Portugal há, exactamente, o incentivo contrário.

A este propósito, a saída de Freitas do Amaral do executivo gerou um tipo de comentário sintomático: o Governo passava a falar a uma só voz, tendo em conta que deixou de haver personalidades que ombreassem com o primeiro-ministro. Acresce que este facto é visto como uma desvantagem.

Percebo que se valorize o pluralismo, mas não me parece que haja qualquer vantagem em o País ter ministros que fazem ouvir as suas opiniões sobre política geral fora do Conselho de Ministros. A governabilidade – que dá-se o caso de ser absolutamente vital para o país – está mais bem garantida com um Governo coeso, do que com um conjunto de vozes independentes. Portugal precisa mais de Governos normalizados, estáveis e sem perturbações do que de vozes com autonomia.

Mas a nomeação de independentes é, antes de mais, sinal da fragilidade dos partidos. Com a agravante que tem como efeito reforçar essa mesma fragilidade.

Em primeiro lugar, porque é reveladora da personalização excessiva da política portuguesa em torno dos sucessivos líderes do Governo. Não por acaso, os partidos portugueses têm muito poucos ou nenhuns poderes de configuração dos executivos. Pelo que é natural que se os partidos servem para fazer campanhas e, uma vez estas terminadas, “recolhem” às sedes, haja uma secundarização dos quadros partidários. A isto há que juntar a percepção de que, para quem ambiciona governar, é uma vantagem não pertencer ao aparelho. A consequência é a degradação crescente da imagem dos partidos e dos seus militantes, compensada pela valorização dos independentes.

Depois, trata-se duma tentativa de os partidos resolverem o seu tradicional problema de falta de ancoragem social. Ao trazerem independentes para o Governo, o que os partidos estão a confirmar é que não são representativos da sociedade e que para se tornarem legítimos aos olhos do eleitorado, não lhes basta ganharem eleições. Enquanto o fazem, acabam por interiorizar ainda mais as suas fragilidades, quando o que deviam fazer era contrariá-las. A consequência, também aqui, é uma menorização da função representativa dos partidos – para a qual, convém lembrar, não é conhecida alternativa democrática.

O entusiasmo com que são recebidos os ministros independentes, os episódios que lhes costumam estar associados e o fechamento dos executivos que é imputado às suas saídas, são tudo sinais da fraca institucionalização da democracia portuguesa. O problema essencial é que são sinais que em lugar de serem contrariados tendem a ser reforçados por todos os actores – membros dos Governos, dirigentes partidários e comunicação social.

publicado no Diário Económico.