segunda-feira, setembro 26, 2011

Dívida e castigo

A história está repleta de eventos estruturais desencadeados por acontecimentos secundários. A da Europa não é exceção. Quando o jovem Gavrilo Princip disparou sobre o arquiduque Francisco Fernando, poucos antecipariam o início de uma ‘era de catástrofe’ que duraria três longas décadas. Há atos que têm o condão de revelar todas as tensões de um momento e com isso colocam a história em movimento. Por vezes para o bem, na maior parte das vezes para o mal.
As declarações do Comissário europeu Guenther Oettinger, afirmando que “as bandeiras dos pecadores da dívida deveriam ser colocadas a meia haste”, podem bem ser um destes eventos. O que o Comissário fez foi dar voz ao pensamento dominante na Alemanha: a crise do euro deve ser lida à luz de um conto moral em que o descontrolo das dívidas soberanas se resolve com atos punitivos. A narrativa é apelativa, os governos endividaram-se excessivamente, têm de pagar um preço e a austeridade é a única resposta. Fica sugerida a necessidade de uma punição moral para responder a uma década de desvario hedonista.
Perante o poder avassalador deste conto moral, os países “pecadores” têm optado por apontar o dedo ao vizinho do lado, convencidos que assim expiam o crime e aliviam o castigo. “Nós não somos a Grécia” é um mantra que tem sido usado à exaustão, procurando criar a ilusão de que não nos acontecerá o que foi acontecendo à Grécia no último ano e meio. Ora de cada vez que os países da periferia da zona Euro se procuram distanciar da Grécia estão, de facto, a colocar as suas bandeiras a meia-haste.
É evidente que a natureza dos desequilíbrios macroeconómicos portugueses, irlandês, espanhóis ou italianos é muito diferente da dos gregos e diversa entre si. Pelo que daí decorram necessidades de ajustamento distintas. Contudo, “nós somos a Grécia” na medida em que o calvário grego será percorrido por todos os países da periferia da zona Euro. Um percurso feito sobre os escombros do projeto europeu e assente numa espiral de contágio recessivo.
Um ano e meio de sucessivos pacotes de austeridade deveriam obrigar a uma avaliação da estratégia até aqui seguida. Como demonstra a experiência grega, se nada mudar, os países da periferia morrerão da cura: a ausência prolongada de crescimento leva ao incumprimento das obrigações financeiras, inviabilizando o pagamento da dívida.
O que tem ficado demonstrado é que a moeda única é um factor de estrangulamento económico e a causa última dos desequilíbrios dos países da periferia. Ao mesmo tempo que retirou os mecanismos essenciais para os países levarem a cabo ajustamentos macroeconómicos (a desvalorização cambial e o controlo da inflação), não só não criou instrumentos alternativos, como passou a fazer depender qualquer solução dos humores políticos das opiniões públicas. Hoje, ao contrário do anunciado, o euro não tem promovido a estabilidade, mas a perturbação económica. Mais grave, em lugar de aprofundar as solidariedades europeias, tem reforçado os egoísmos. É de novo altura de colocar as bandeiras europeias a meia-haste. Todas.

publicado no Expresso de 17 de Setembro

Regresso do Bloco Central

Os meus debates com o Pedro Marques Lopes, moderados pelo Paulo Tavares, regressaram à TSF, agora com novo horário: ao Sábado, às onze da manhã, com repetição à meia-noite. A primeira edição teve como pretexto a entrevista de Passos Coelho à RTP e pode ser ouvida aqui.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Debate na SIC-N sobre a Madeira

segunda-feira, setembro 19, 2011

As tentações do PS

Há um conjunto de inevitabilidades no horizonte. Quando os anúncios cândidos do ministro das Finanças se concretizarem, o descontentamento aumentará. Pelo caminho, a coesão interna da coligação sofrerá abalos significativos. Ainda assim, a impopularidade de Passos Coelho pode não se traduzir em ganhos de popularidade para Seguro. Os socialistas enfrentam problemas conjunturais e estruturais que dificultam a sua afirmação política, o que os obriga a resistir a várias tentações contraproducentes.
Uma primeira tentação traz problemas no médio prazo. A combinação de voluntarismo ideológico com a convicção de que a austeridade pode ser expansionista tem empurrado o governo para além da troika. Este contexto cria uma oportunidade: o PS tornar-se no guardião do memorando de entendimento. É evidente que os socialistas não podem, agora, estar na oposição como se não tivessem estado no poder, mas, também, não podem cavar uma trincheira em torno da defesa das propostas da troika. O exercício é difícil, mas seria um erro manter uma atitude defensiva, abdicando da iniciativa, ainda para mais em torno de opções programáticas que violentam o património programático do centro-esquerda.
Ter vida para além da troika implica que o PS recupere a inclinação reformista e não ceda ao conservadorismo da defesa do status quo ou, pior, que descambe para a mitificação de um passado inexistente (seja no Serviço Nacional de Saúde ou na regulação do mercado de trabalho). Não se deve contrapor à narrativa liberal que Passos Coelho utilizou, uma outra, com as mesmas características formais. O mais certo seria essa tentação descambar no mesmo exercício pueril em que resultou o liberalismo de blogosfera do primeiro-ministro.
Desde logo, é necessário saber resistir aos temas populares (à cabeça, a demagogia em torno do combate à corrupção, que empurrará os partidos para um beco sem saída), mas, também, aos que têm a ver com o sistema político (das leis eleitorais ao voto dos deputados, passando pela obsessão rotativista com nomeações de boys). Centrar a iniciativa nos temas económicos e sociais é exigente e implica romper com o vício da politiquice, uma herança do processo formativo nas juventudes partidárias.
A este nível, antes das soluções, são necessárias prioridades. Quando se assiste a uma reconfiguração do Estado Social, substituindo-o por um conjunto de respostas de mínimos que asfixiam as classes médias baixas, a diferenciação não pode passar pela “sensibilidade social”, mas, sim, por procurar combinar sustentabilidade financeira com equidade e universalismo. Todas as propostas dos socialistas deveriam passar por este crivo.
Finalmente, mais do que enveredar pela auto-crítica em relação ao passado, assente em traços da personalidade de Sócrates ou no tipo de exercício do poder interno ao PS, é fundamental que se rompa com a língua de pau na política europeia. O socialismo democrático encontra-se hoje em maus lençóis também porque quando teve maioria política na Europa falhou.

publicado no Expresso de 10 de Setembro.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Comentário sobre efeito de contágio da Grécia

segunda-feira, setembro 12, 2011

Uma grande transformação

“Não existe essa coisa da sociedade”, afirmou Margaret Thatcher, num conhecido epitáfio para o neoliberalismo dos anos oitenta, para depois concluir que “só existem indivíduos e famílias”. A afirmação não pode deixar de ecoar hoje, quando a espiral de austeridade está a provocar uma transformação social, como não ocorria desde o pós-guerra.
Talvez nunca como agora tenha sido tão adequado falar de ‘desenraizamento social da economia’, o risco que Karl Polanyi identificava como traço distintivo das economias políticas dos anos 30. Como sublinhava em “A Grande Transformação” (um livro escrito durante a Guerra e cuja anunciada edição portuguesa não poderia ser mais oportuna), até ao capitalismo moderno, nenhuma outra sociedade havia sido auto-regulada por um padrão institucional assente no valor de mercado, mantendo-se imune à interferência de qualquer outro factor externo. Com consequências: em lugar de a economia estar incorporada nas relações sociais, foram as relações sociais que passaram a estar incorporadas na economia, subordinando as opções políticas ao mercado e provocando um deslassar da sociedade. Lendo, hoje, Polanyi, uma transformação parece garantida, conheceremos um outro mundo no fim da austeridade: com menos sociedade e ainda menos comunidade.
Em Portugal, onde o Governo não esconde a ambição de ir além da Troika, a ruptura só poderá ser mais intensa. Uma coisa é o necessário controlo da despesa, outra, bem diferente, é, com esse pretexto, brincar com o fogo, promovendo um enfraquecimento da comunidade e uma diminuição da soberania. Como lembrava Helena Garrido esta semana no Jornal de Negócios, “Portugal tem de existir”.
Eis dois exemplos que vão ter efeitos irreversíveis e que são, de facto, ameaças à existência de um país soberano, assente numa comunidade de pertença.
O primeiro é a construção de um Estado Social de mínimos, dirigido aos mais pobres. Desde o ‘passe social’ com descontos ultra-exclusivos à ASAE ter deixado de inspeccionar lares e creches, passando pelo que se anuncia no acesso à saúde, abundam os exemplos em que do excesso de gratuitidade se evoluiu para uma retirada de benefícios às classes médias baixas. Esta opção esquece que os direitos sociais fazem parte do código genético da nossa democracia e que são um mecanismo de legitimação política. Pura e simplesmente não existem democracias sem integração das classes médias.
O segundo é um programa de privatizações que aliena uma fatia importante do que resta da soberania. Vender ao desbarato empresas do sector energético ou das águas não é comparável com o processo de privatizações que ocorreu nos anos oitenta – e que obedeceu a uma necessária liberalização – é, sim, uma ameaça à independência do país, sem que se vislumbrem vantagens.
Se este Governo fizer o que, levado pelas suas ilusões ideológicas pueris, ameaça, daqui a uns anos saberemos qual é a diferença entre ter uma comunidade que forma um país ou termos um conjunto de indivíduos e famílias.

publicado no Expresso de 3 de Setembro