terça-feira, junho 26, 2007

O que vale a Presidência

A crer na imprensa, o Governo terá adiado a decisão sobre o novo aeroporto por seis meses, entre outros motivos, para não introduzir ruído na Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. Já aquando da saída de António Costa do executivo, teria havido um acordo tácito entre primeiro-ministro e Presidente a favor de uma remodelação cirúrgica, que garantisse o bom acompanhamento dos ‘dossiers’ europeus. Entretanto, também o maior partido da Oposição quase que prometeu suspender a sua actividade, sempre em nome da Presidência. Todos estes sinais são, acima de tudo, reveladores da importância que é dada entre nós à Europa. Mas mostram também uma visão enviesada do que é, de facto, o exercício da Presidência e a real capacidade desta em marcar a agenda europeia. Nenhum partido escapa a este caldo de cultura, que aliás esteve por detrás, por exemplo, do entusiasmo paroquial com que as mais altas figuras da nação receberam o abandono de Durão Barroso do Governo para rumar a Bruxelas.

Na maior parte dos Estados-membros, o exercício da Presidência é um assunto com baixa relevância na agenda política doméstica e em larga medida gerido pela administração pública. Presidir ao Conselho pode implicar um volume de trabalho acrescido para os membros do Governo, mas o papel efectivo destes é reduzido. Na verdade, o modo como se fala da Presidência em Portugal dificilmente encontra paralelo nos restantes Estados-membros. O que não é independente da nossa relação com Europa e dos níveis de aprovação que a pertença à União Europeia tem entre nós. De acordo com o Eurobarómetro, em 2007, 66% dos portugueses valoravam positivamente a pertença à União Europeia, valores que se afastam da média da UE-27 (59%).

Há boas razões para o nosso europeísmo. Por um lado, a sobreposição entre os processos de consolidação democrática, desenvolvimento económico e social e adesão europeia e, por outro, o papel que a Europa tem desempenhado na legitimação de medidas necessárias, mas que os actores nacionais tendem a ter fraca capacidade de pôr em prática autonomamente. Sem Europa não só teríamos tido muito mais dificuldade em consolidar a democracia, como o nosso padrão de políticas públicas seria comparativamente mais pobre.

Mas uma coisa é a valoração da Europa, outra é o papel real da Presidência do Conselho. A realidade da construção europeia é clara: os passos fundamentais resultaram de um exercício intergovernamental e de articulação entre Conselho e Comissão, muito liderado pelo eixo Paris-Berlim. Neste contexto, as Presidências são, no essencial, um assunto de gestão corrente, com fraca capacidade de marcação da agenda. Sucedem-se semestres em que nada de relevante acontece na UE e a memória do papel das Presidências esvanece-se rapidamente. Não por acaso, o Tratado em discussão prevê, e bem, o fim das presidências rotativas.

Desse ponto de vista, o que aconteceu com a Presidência portuguesa de 2000 é não apenas incomum, como irrepetível. Independentemente de juízos valorativos sobre a Agenda de Lisboa, a verdade é que se trata de um marco da última década de construção europeia, promovido pela Presidência em exercício. Acontece que a Agenda de Lisboa resultou da conjugação de um conjunto de factores contingentes, mas que, até pelas consequências para a política doméstica desse investimento, não parece que se repitam.

Nada disto impede que durante a Presidência portuguesa sejam dados passos importantes, nomeadamente a ultrapassagem da situação de bloqueio que enfrenta o anteriormente conhecido como Tratado Constitucional. Poderemos vir a ter um Tratado de Lisboa, mas não vale a pena termos ilusões de grandiosidade. Se assim acontecer, dever-se-á, naturalmente, menos à Presidência portuguesa e mais à evolução das negociações no Conselho.

O problema é que, na gestão das expectativas em relação aos seis meses de exercício de Presidência, o governo joga uma carta arriscada. Se tudo correr bem, pode capitalizar internamente resultados nos quais, verdade seja dita, desempenhou um papel não tão importante como quer fazer crer. Do mesmo modo que se os resultados forem, como têm sido nas últimas Presidências, escassos, o Governo será internamente responsabilizado pelas consequências de processos que não controla. Entretanto, a política nacional ameaça entrar em hibernação.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, junho 12, 2007

As perplexidades da OTA

Não é fácil perceber o que se tem passado politicamente com o processo de construção do novo aeroporto. O que há meia dúzia de anos parecia assentar num duplo consenso (a necessidade de substituir a Portela e a escolha da localização OTA) evoluiu para uma confusão argumentativa difícil de acompanhar. A evolução do tema na discussão pública levanta um conjunto de perplexidades.

Uma primeira que resulta da ausência de uma estratégia comunicacional forte. Não se compreende que, quando para apresentar um logotipo se recorre a agências de comunicação, num investimento da envergadura da construção de um aeroporto não haja uma linha de comunicação perceptível. Em investimentos como o que está em causa, ter um argumentário claro é tão importante como avaliar o impacto ecológico da opção ou os custos de construção. Parece que se apostou tudo no consenso político e se subestimou a necessidade de ter um “plano b” preparado para o momento em que aquele fosse posto em causa. Hoje, nem sequer os parâmetros da discussão se mantêm estáveis: discute-se a necessidade de um novo aeroporto para logo depois se estar a debater possíveis localizações, já para não falar de quando se questiona tudo ao mesmo tempo.

A segunda perplexidade tem a ver com o fim do consenso. Uma coisa é sabida sobre a política portuguesa, só fomos capazes de tomar opções difíceis quando uma de duas condições esteve presente: uma sólida coligação interna ou um forte constrangimento externo.

Os exemplos mais conhecidos da coligação interna estão associados à política externa. Em primeiro lugar, o processo de adesão à União Europeia, em que os dois principais partidos, de modo a criarem condições institucionais e financeiras para entrarmos na CEE, optaram por formar uma coligação política de ‘strange bedfellows’, em lugar de promoverem a dissensão. Mas, para além da Europa, as opções da política externa portuguesa assentaram tradicionalmente num consenso entre PSD e PS. Consenso que vigorou até à intervenção no Iraque.

Já o constrangimento externo serviu para levar a cabo reformas impopulares, aumentando a capacidade política dos actores nacionais favoráveis às mesmas e pressionando o país para procurar soluções que de outro modo não buscaria. O FMI no passado e a União Europeia nos nossos dias foram decisivos, por exemplo, para a promoção da disciplina orçamental. Sem esses constrangimentos a propensão para o desequilíbrio orçamental seria imparável, com consequências trágicas para o país.

Ora, a construção de um novo aeroporto assentou durante cerca de uma dezena de anos num consenso interno, cimentado por um constrangimento externo. PS e PSD concordavam com a necessidade de construir um novo aeroporto e a opção OTA era dominante, tendência que foi consolidada pela janela de oportunidade aberta pelo recurso ao financiamento comunitário. Perante a dimensão do investimento, a garantia de que essas condições estavam presentes era condição necessária à sua concretização.

Convém não esquecer o momento e os motivos porque o novo aeroporto foi primeiro posto em causa. Estávamos em plena campanha das legislativas de 2002, quando Durão Barroso afirmou que “enquanto houver uma criança em lista de espera nos hospitais não haverá Ota”. Coincidentemente ou não, estavam lançadas as raízes para o fim do acordo em torno da OTA e para que o populismo ganhasse lastro na política portuguesa. Pouco tempo depois, também o consenso na política externa portuguesa seria rompido, com a Cimeira das Lajes.

Hoje, perante a ausência de um argumentário disseminado sobre a necessidade de um novo aeroporto e sobre a sua localização preferencial e com o espaço aberto a todos os populismos, um investimento de grande envergadura encontra-se bloqueado. O grave é que enquanto se assiste à confusão argumentativa em torno do novo aeroporto, fica-se com a ideia que o País regressou a um tempo em que a promoção da dissensão política era mais importante do que a capacidade de tomar opções estratégicas, ainda que impopulares e custosas. Chegados aqui, pode ser que, pelo menos, a trapalhada a que se chegou a propósito da OTA sirva para recordar a importância para Portugal dos amplos consensos políticos. Caso contrário, estaremos condenados a reagir a pressões externas.

publicado no Diário Económico.