quinta-feira, outubro 20, 2005

Reformar com quem?

“O problema do governo é que não comunica bem e não explica aos portugueses o que anda a fazer”. Ainda que timidamente, a ideia já se ouvia por aí. Contudo, depois do resultado autárquico ganhou uma nova força. Nada de novo. Se fosse possível definir uma tipologia das fases da governação em Portugal, rapidamente nos aperceberíamos que ao “estado de graça” se segue, invariavelmente, a fase do “até estão a fazer coisas acertadas, o problema é que a mensagem não passa”. É o que se costuma chamar de crítica construtiva, matéria em que se têm especializado os dirigentes dos aparelhos partidários, quer do PS, quer do PSD, que, quando no poder, têm naturais dificuldades em gerir as expectativas dos militantes de base.

Mas tendo em conta que é um fenómeno que se repete, talvez valha a pena questionar até que ponto a responsabilidade da má comunicação é sistematicamente dos agentes, no caso os governantes, e olhar com mais atenção para o que se passa com a estrutura. No fundo, a questão que se coloca é a de saber se há de facto um problema dos governos em passar a mensagem ou, pelo contrário, o que há, hoje, é pouca ou nenhuma disponibilidade da sociedade portuguesa para ouvir e, consequentemente, apoiar o que os governantes dizem.

No passado, criar coligações que suportassem a mudança com benefícios imediatos ou de médio prazo foi, relativamente, fácil – mesmo que para tal fosse necessário reforçar clivagens sociais, agradando a uns e desagradando a outros. A questão agora é outra e bem mais séria. O que está em causa não é apenas o que fazer, que reformas levar a cabo, mas, cada vez mais, saber se há uma coligação social que permita a sua execução. A dificuldade não está tanto em identificar as medidas impopulares que importa implementar, mas, sim, em criar as coligações sociais que permitam a concretização desse objectivo. Será possível reformar Portugal? Estão os portugueses dispostos a ouvir o que os governantes têm para lhes dizer e a suportar eleitoralmente medidas difíceis?
O contexto é conhecido. Depois de quase trinta anos em que, entre nós, o que o que os governos tiveram de fazer foi, em importante medida, gerir expectativas crescentes, o País vive, há perto de cinco anos, uma crise económica e social, mas, também, de governabilidade. Aos governos cabe agora, no essencial, dar más notícias. Ao optimismo em relação ao futuro sucedeu-se um pessimismo do qual parece difícil vislumbrar saída.

Isto acontece numa altura em que as clivagens tradicionais do voto – religiosidade e secularização; capital e trabalho – têm perdido relevância e as novas clivagens, que se reportam às questões pós-materialistas, são em Portugal pouco mobilizadoras (ao contrário por exemplo de Espanha, onde o PSOE apostou claramente nestas questões, veja-se o caso da legalização do casamento entre homossexuais). A consequência é, desde logo, que a ancoragem eleitoral dos partidos é muito mais fraca. Ter uma expressiva maioria absoluta num dia pode não significar quase nada no dia seguinte, como aliás se viu nas últimas autárquicas. Quando a fidelização do voto partidário é cada vez mais fraca e as políticas macro-económicas fragilizam ainda mais essa relação, a ingovernabilidade ameaça ser o regime. Haverá saída para o dilema que vivemos?
Sim, desde que a governação seja levada a cabo cuidando pouco das coligações de apoio circunstanciais. Não que não fosse preferível gerir o país com suporte social. Acontece que o que há a fazer é tão custoso que dificilmente se conseguirá combinar governação com popularidade. É que pode dar-se o caso de não haver “ninguém” com quem reformar o País. A consequência deste cenário é, inevitavelmente, a penalização eleitoral de quem governa nas chamadas eleições de segunda ordem e um crescente afastamento entre as bases do partido que apoia o Governo, qualquer que ele seja, e o próprio executivo.

Por tudo isto, se bem que o Governo não deva abdicar da sua função de orientação dos eleitores (ou seja, passar a mensagem), não há razão nenhuma para que viva atormentado com o facto de não ser ouvido e de ter maus resultados eleitorais. A situação do País é tal que, mais do que um projecto de poder, é fundamental que o Governo tenha um projecto de transformação. Provavelmente os dois são incompatíveis. Resta por isso saber se no PS e no Governo há disponibilidade para entre ganhar eleições e reformar Portugal, escolher a segunda opção.

artigo publicado no Diário Económico

quinta-feira, outubro 06, 2005

O que está em causa

É invariavelmente assim: quando há eleições autárquicas, as oposições aproveitam para fazer do acto eleitoral um momento de avaliação do executivo. Já o Governo – qualquer que seja – tende a transformar as eleições em 308 escolhas, onde o que conta são, acima de tudo, dinâmicas locais, impossíveis de extrapolar para o conjunto do país. Nesta, como em muitas outras matérias, as duas partes têm razão e nenhuma tem razão. As eleições autárquicas servem para avaliar da popularidade do Governo, mas são também, inequivocamente, 308 disputas locais, de cujos resultados é difícil extrair linearmente uma leitura nacional. Mas isso é o que em condições normais seria alvo de leituras políticas. Será também assim no próximo Domingo?

É trágico, mas trinta anos após o 25 de Abril, nas próximas eleições autárquicas o mais importante não é nem a avaliação da popularidade do Governo, nem as 308 disputas concelhias. O que está em causa é, acima de tudo, uma escolha conjunta dos portugueses sobre a democracia que querem e o tipo de políticos que desejam.

O poder local é uma das principais conquistas da democracia portuguesa. Em trinta anos, pelo País fora, foi possível encontrar milhares de autarcas que, com enorme generosidade, deram (e dão) o melhor de si e, principalmente, se revelaram capazes de mobilizar energias e recursos para transformar Portugal – o que na ausência de governos locais, pura e simplesmente, não teria acontecido com a mesma intensidade. Mas se o poder autárquico é parte fundamental da herança democrática, é, hoje, em muitas casos, um factor de descredibilização do próprio regime e dos princípios em que este assenta. Porventura, em nenhumas eleições autárquicas este facto foi tão claro como nas do próximo Domingo.

Para além da avaliação da “obra” e, como se usa dizer, do modelo de desenvolvimento seguido – que gostemos ou não, é matéria da escolha legítima – há três outros aspectos que, corporizando-se de modo particularmente visível no poder autárquico, representam uma degradação da democracia e serão alvo de escrutínio no Domingo.

Em primeiro lugar, a frequente incapacidade dos partidos, ao nível concelhio, para mobilizarem os sectores mais dinâmicos da sociedade – o que leva a um afastamento crescente dos cidadãos da vida partidária. Muitas das vezes, e especialmente nas estruturas locais, os partidos têm lógicas de recrutamento e de reprodução do poder perversas que, em lugar de mobilizarem, afastam e promovem a mediocridade. A consequência deste fechamento é a escolha de candidatos autárquicos que nada representam para os eleitores e que resultam apenas de lutas intestinas e claustrófobicas.

Depois, a tendência para a despolitização das eleições, bem visível em muitas campanhas que, despidas de qualquer linguagem política, valorizam aspectos neutros (por ex. a capacidade de trabalho e a honestidade), como se as escolhas autárquicas não tivessem um sentido político. Esta desvalorização da actividade política pelos seus próprios agentes é um autêntico “cavalo de Tróia” da demagogia.

E, ainda, o populismo de pendor caudilhista e o caciquismo – frequentemente temperados com afrontas ao Estado de direito – que hoje fazem parte da agenda de muitos presidentes de Câmara. Pelo País fora, nuns casos com mais mediatismo noutros com menos e de todas as cores partidárias, os exemplos de degradação populista da democracia pululam.

É por tudo isto que o que está em causa nas próximas eleições autárquicas é, também, a nossa responsabilidade colectiva enquanto cidadãos de contrariar a degradação da democracia nas suas várias formas. Tal implica votar, em cada concelho, nas candidaturas que revelem abertura à sociedade, que assentem em opções claras – não se escondendo na despolitização da actividade política – e, finalmente, que contrariem o populismo, a demagogia e os ataques ao Estado de Direito. Votar assim significa, naturalmente, votar em partidos diferentes consoante o concelho. Se os portugueses assim o fizerem, estarão a dar um voto de confiança na democracia e a ajudar aqueles que, em todos os partidos, combatem a tendência para a descredibilização do sistema.

publicado no Diário Económico.