quinta-feira, março 31, 2005

O reformismo e a futilidade

Na tomada de posse e, depois, na apresentação do programa de governo, José Sócrates apresentou duas medidas em duas áreas em que o discurso da necessidade de reforma tem estado mais presente: a saúde e a justiça. As medidas são conhecidas – o fim do monopólio das farmácias na comercialização de medicamentos de venda livre e a diminuição das férias judiciais. No entanto, apesar de se tratar de medidas com propósitos muito diferentes e destinadas a sectores afastados, geraram reacções paradoxalmente semelhantes no debate público. Reacções que revelam uma postura dominante em Portugal e que, da esquerda à direita, é contrária ao reformismo eficaz.
Colocando de lado os posicionamentos mais corporativos, que assinalavam os riscos e a perversidade das propostas em causa, ouvimos, frequentemente, a propósito destas iniciativas, dizer que, no essencial, não passavam de medidas de cosmética, pois não faziam o que era necessário: reformar os sistemas de saúde e judicial.
Parece evidente que o objectivo nunca foi a reforma global destas áreas sectoriais, mas essencialmente dar um sinal político daquilo que será a identidade do novo governo, designadamente no modo como procurará lidar com os interesses e as corporações. Contudo, a discussão gerada permitiu desvendar uma característica típica do discurso reactivo à mudança nas políticas públicas e que o economista político Albert Hirschman descreveu em “O Pensamento Conservador” (Difel, 1997).
A ideia de Hirschman é simples e muito interessante como instrumento de leitura dos debates sobre políticas públicas. De acordo com o seu argumento, os impulsos reformistas enfrentam invariavelmente três tipos de críticas reaccionárias ou conservadoras. A saber, as novas medidas ou são perversas (pois produzem consequências indesejadas ou mesmo contrárias ao inicialmente pretendido), ou acarretam riscos desnecessários ou, finalmente, são fúteis. Atentemos um pouco mais neste último argumento, já que, não só tem sido o mais presente face às duas propostas do governo, como revela muitos dos obstáculos que enfrenta em Portugal a agenda reformista.
A tese da futilidade remete para a ideia de que as tentativas reformistas estão condenadas ao fracasso, pois são superficiais, de fachada e incapazes de alterar as estruturas profundas da sociedade. No fundo, o que esta lógica argumentativa reproduz é, em última análise, a ideia que as políticas públicas são inconsequentes, pois nada conseguem mudar, limitando-se a somar um conjunto de medidas fúteis. Da saúde à justiça, passando pela educação, os sucessivos governos apresentam propostas que não fazem diferença nenhuma e que dão sempre prioridade àquilo que é secundário. A crer nesta perspectiva, o fim do monopólio da venda de medicamentos ou a diminuição das férias judiciais são apenas mais duas medidas, de um extenso rol de políticas inconsequentes.
Ora, este argumento esquece que a transformação social consequente radica, precisamente, no gradualismo e em sequências reformistas de curto e médio alcance. Até porque a alternativa é, normalmente, a lógica maximalista, que revela insensatez política e desconhecimento das estruturas sociais em que opera. Aliás, dois sintomas típicos do discurso dominante, quer à esquerda, quer à direita, sobre as reformas na sociedade portuguesa.
É por isso que ao dizer-se que as medidas apresentadas pelo novo governo são de natureza cosmética e que o que é preciso é promover “reformas a sério”, está-se a disseminar um discurso que reage e mostra desprezo pela mudança induzida pelas políticas públicas. Pôr fim ao monopólio na venda de medicamentos e diminuir o período de férias judiciais é apenas um princípio. E qualquer reformista sabe que, para mudar alguma coisa, se deve começar lenta e gradualmente por algum lado. Assim, ao invocar-se o argumento da futilidade como resposta a estas novas medidas, está-se, entre outras coisas, a recorrer a um discurso que tem uma lógica bloqueadora das tentativas políticas de transformação. No fundo, a um discurso que é inimigo do reformismo consequente, algo que, como é sabido, faz falta em Portugal.

publicado no Diário Económico

domingo, março 27, 2005

Il Trap?

E, de repente, José Mourinho tornou-se a medida de todas as coisas. De tal modo, que até o primeiro-ministro é alvo de comparações com o treinador do Chelsea, supostamente por governar à sua imagem – vá lá saber-se o que é que isso quererá dizer. Acontece que por detrás da relevância mediática do fenómeno Mourinho, esconde-se um pouco da imagem que nós, portugueses, temos e fazemos do país. Um fascínio desmedido pelo sucesso como fim em si e, mais ainda, um embasbacamento paroquial quando este ocorre lá fora, no estrangeiro. Tudo desmedido, como que para revelar a pequenez das nossas ambições costumeiras. Com Mourinho, como com Figo e Cristiano Ronaldo, o problema não está na virtude evidente das suas carreiras e dos seus sucessos, está no modo como olhamos para o que têm feito. Um modo que condensa parte da nossa identidade colectiva. À cabeça, o sucesso como excepção, o deslumbramento face ao estrangeiro e, no caso de Mourinho, uma tolerância excessiva face à arrogância dos vencedores.
A atenção meio obsessiva com os jogadores e treinadores emigrantes não é, aliás, nova. De há uns anos para cá é sempre assim. Não há notícias desportivas que não revelem particular atenção aos portugueses que andam lá fora. Os de sucesso e todos os outros. Por exemplo, um jogador do Paços de Ferreira que tenha a sorte de assinar por um clube de fim da tabela italiano, de uma coisa pode estar certo, passará a ter a sua carreira seguida ao pormenor. Esteja sentado no banco e entre apenas 5 minutos cada dois meses ou jogue com regularidade, isso não deixará de ser alvo de aturado escrutínio na comunicação social portuguesa. Da Bélgica a Itália, passando pela Bulgária, sabemos tudo sobre os emigrantes do nosso futebol.
Dá-se o caso do mesmo não se passar nos países de origem de parte dos imigrantes que jogam entre nós. É que espanhóis, italianos, ingleses, franceses que vão para fora, desaparecem do mapa e o mais provável é ficarem votados ao esquecimento. Claro que isto revela um fenómeno simétrico ao nosso. Se nós temos um fascínio desproporcionado face ao estrangeiro, estes países têm, na mesma medida, um desprezo enorme pelo que se passa fora das suas fronteiras.
Ora, como é sabido, benfiquista emigrado sofre com o seu clube ainda mais do que quando em Portugal e, naturalmente, anseia por ver os golos, as imagens. Mas, a verdade é que, mesmo com treinador italiano, em Itália, do Benfica pouco se sabe e nada se vê. Nem os sucessos do Trap servem. Pense-se no que se passaria se fosse ao contrário.
É esse desconhecimento que tem feito com que, não raras vezes, me tenham perguntado: “il Trap, cosa sta faccendo?” Confesso que nunca sei bem o que responder. O que dizer a um amigo italiano que sabe que o Trap é treinador do meu clube? Fico invariavelmente confuso e desconfortável. Bem, o Trap – e isso eles sabem – é o Trap. Joga com a tracção toda a trás, é conservador, tem as suas fixações particulares e um conjunto de idiossincrasias relativamente exuberantes (à cabeça, o comportamento incomum no banco, sempre a falar com os suplentes, explicando-lhes não se sabe bem o quê). É um treinador de outro tempo. Mas, na realidade, que no futebol é o que conta, com o Trap, o Benfica leva uma inusitada vantagem no campeonato.
Tento, por isso, explicar que, ao contrário das últimas temporadas, temos estado sempre a disputar o título – sim, mesmo contra o Porto, que é a única coisa futebolisticamente relevante além fronteiras. Mas, acrescento que o Benfica joga um futebol deprimente, medroso e que nas competições europeias tivemos uma prestação miserável. Claro que a equipa é curta, com alguns jogadores medíocres. Mas que, no essencial, joga mal, ainda que vá vencendo e vá em primeiro.
Em fins de Março, a oito jornadas do fim, em primeiro lugar com seis pontos de avanço, continuo sem saber o que dizer do Trap. Se calhar, também eu padeço dos males nacionais e olho para tudo no futebol à imagem de Mourinho. Queria um Benfica hegemónico, arrogante, autoritário e a jogar bom futebol. Provavelmente, ambições ultrapassadas e fora do tempo, paradoxalmente um pouco à imagem do italiano. Pelo que o melhor que tenho a fazer é dizer aos meus amigos que estamos agradecidos ao Trap, quanto mais não seja por ter trazido o enebriante cheiro a título, ainda que condimentado com o estilo Mortimore. Ou porventura é, apenas, o Trap que tem de agradecer as borlas ao Porto e ao Sporting. Mas o italiano, que do futebol conhece muito, sabe certamente que as vitórias dependem muito do fracasso dos outros. Excepção feita a José Mourinho, claro.

publicado em A Capital

domingo, março 20, 2005

A parte grátis do programa

Durante a campanha eleitoral, José Sócrates fez uma inteligente gestão do que dizia. A atitude reservada foi prolongada ao período de feitura do governo e, nos últimos dias, transformou-se num inédito blackout extensível a todo o executivo – certamente para fazer face a alguns dislates iniciais e iniciáticos. Até aqui tudo bem. Acontece que a gestão contínua dos silêncios tem o reverso da medalha: aumenta as expectativas face aquilo que se dirá. E não tenhamos dúvidas, depois de uns meses de desvario santanista e de dois anos de erros de Durão, as expectativas dos portugueses são altas. Provavelmente demasiado altas.
Era por isso inevitável que quando o governo apresentasse o seu programa surgisse um coro de críticas. Um coro que aliás teria inevitavelmente vários tons. O daqueles que dizem, “nada de novo”, porque faltam as miríficas reformas; combinado com as vozes dos que afirmam que afinal a ampla maioria eleitoral de esquerda traduziu-se “num programa de direita e de cedência ao capital, ao neo-liberalismo e aos interesses”; e, finalmente, os que aparecem a dizer que, por detrás de umas quantas bravatas, fingindo que se enfrenta os interesses, “nada de relevante sobra”.
A mistura de cinismo com pessimismo, que faz hoje um conjunto hegemónico no país, leva inevitavelmente a que assim seja. O tradicional, e enraízado, nacional-pessimismo convive, nos nossos dias, de perto com o nacional-cinismo, no que é um decisivo obstáculo à mudança e à transformação social em Portugal.
Mas, no meio de tudo isto, fica o programa de governo. E a realidade é que no que a este toca não há pólvora por inventar – além de que o espartilho financeiro e administrativo do Estado é tal que qualquer esperança grandiosa terá, inevitavelmente, de sair frustrada. Deste ou de qualquer outro governo não se podem aguardar, hoje, grandes soluções. O que se pode e deve esperar é a soma de pequenas medidas e de reformas graduais. O problema é que nada disto se compadece com o ritmo da comunicação social e com as expectativas que os media foram alimentando nos portugueses, com colaboração política, é certo. Convém, no entanto, ter presente que uma maioria absoluta serve também para governar ao ritmo imposto pelo governo e não ao ritmo que resulta da pressão da comunicação social.
Para além do mais, dá-se o caso de parte importante do que há a fazer custar muito. Custar muito em termos financeiros e, em muitas situações, não menos em termos políticos. Tal não impede, contudo, que existam também coisas fundamentais que podem ser feitas e que são grátis. Estranhamente, passam os governos e mudam os ministros e muitas delas ficam invariavelmente por fazer.
Qualquer contacto, ainda que mínimo e superficial com a administração pública, revela rapidamente que à cabeça das políticas grátis está a mobilização e a activação dos serviços e dos agentes públicos. O que temos, hoje, em muitos ministérios, é uma administração abúlica, desmotivada, paralisada e esvaziada de conteúdos funcionais úteis. É por isso que se, em lugar da obsessão legisladora e regulamentadora de que têm padecido os sucessivos executivos portugueses, houvesse um investimento simétrico no envolvimento da administração nas tarefas de governação do país, aumentar-se-ia a eficácia e a eficiência do Estado. E isto, convém lembrar, é grátis.
Depois destes três anos, é evidente que há muita legislação que deve ser revista e alterada, dirigentes que devem ser substituídos, orgânicas que necessitam de ser reajustadas e, acima de tudo, prioridades políticas que devem ser reorientadas. No entanto, há uma parte do programa de governo que é grátis e deveria ser implementada. Esta passa por envolver mais a administração na concepção de políticas e principalmente mobilizá-la para a sua aplicação.
Activar os serviços, intensificar a fiscalização e a inspecção e colocar as respostas aos cidadãos no centro das preocupações da administração deveriam ser prioridades políticas. Parece evidente, mas frequentemente não o é. Para que o fosse, era preciso que para além da política, os governantes e os dirigentes estivessem mais preocupados com a gestão das pessoas e da administração. Não tem sido sempre assim e é pena. É que, para além de gratuito, é absolutamente necessário.

publicado em A Capital

domingo, março 13, 2005

E o partido, perdoar-lhe-á?

O aspecto mais surpreendente do elenco ministerial que ontem tomou posse não foi nem o número significativo de independentes, nem a presença de Freitas do Amaral. Na verdade, o que mais surpreende no novo governo é este não reflectir os equilíbrios do Partido Socialista e, acima de tudo, não dar o poder desejado aquela que foi a base de apoio interno de José Sócrates. Este facto revela, aliás, que o novo primeiro-ministro interpretou bem os sinais que decorrem da esmagadora votação que os portugueses lhe deram nas últimas eleições.
Na realidade, a presença de um número significativo de independentes no governo não espanta. Era esperada e é, em larga medida, explicada pelo discurso que se generalizou na sociedade portuguesa sobre a necessidade de abrir a acção governativa aos que vêm da sociedade civil – uma entidade meio misteriosa, onde há muita gente capaz e com vontade e disponibilidade para trabalhar, mas onde encontram também albergue muitos dos adesivos e transformistas da nossa praça. Como é sabido, cada vez que muda o governo logo aparecem os recém convertidos, disponíveis para assumirem responsabilidades sem sequer passar o necessário período de nojo. É a vida política portuguesa.
O que não deixa de ser espantoso é que também os políticos tenham incorporado, de modo excessivo, o discurso dos “independentes da sociedade civil”. Ao fazê-lo desvalorizam-se a si próprios, dando legitimidade à dicotomia que os remete para o grupo dos “políticos profissionais” (algo que entre nós é quase um insulto). Convém, aliás, ter presente que praticamente só em Portugal é que existe a figura do independente como a conhecemos. Na maior parte das democracias avançadas a política está entregue, e bem, aos políticos. As razões para que assim seja são muitas. Para consumo interno, bastaria olhar para a história portuguesa para rapidamente nos apercebermos que, em ambos os quadrantes políticos, os melhores ministros foram invariavelmente os ministros políticos. Entre outras coisas porque têm treino e pouca tendência para o dislate e para falar antes e fora do tempo.
Mas enquanto a presença de independentes não surpreende, já o mesmo não se pode dizer da fraca representação da base de apoio interno de José Sócrates. Como é público, José Sócrates é alguém que não vem de fora da política. A sua vida foi legitimamente feita no interior do partido, cimentando-se em cumplicidades e redes de apoio, que naturalmente lhe facilitaram a vida quando chegou o momento de se candidatar a Secretário-Geral.
Contudo, do mesmo modo que ter um conjunto alargado e identificado de apoiantes foi uma alavanca importante para alcançar o poder interno, já o mesmo não pode ser dito do momento do PS se apresentar ao país. Aos olhos dos portugueses, a sua base de apoio era um obstáculo. José Sócrates terá percebido isto. Por isso, cedeu “aos seus” nas listas para os órgãos do partido e nas listas de deputados. Mas não cedeu no que era de facto mais importante, na feitura do governo. Prova disso mesmo é o número reduzido de deputados que foram para o governo. Se nada mais, o que esta opção revela é algo de fundamental: a autonomização do líder por relação aos que o apoiaram internamente. Por força do expressivo resultado eleitoral que alcançou, José Sócrates adquiriu uma notável autonomia, que corporizou no elenco governativo.
O problema é que enquanto com o seu governo, José Sócrates conquista uma importante margem de autonomia face ao partido – um pouco à imagem do que fez Cavaco Silva no início da sua governação –, ao mesmo tempo, o partido que o levou ao poder sentir-se-á descontente e insatisfeito. Resta saber como é que este difícil equilíbrio será gerido. E que ponto será encontrado entre a governamentalização do partido e a autonomia estratégica deste. Uma coisa é certa: do mesmo modo que José Sócrates precisa de consolidar a sua autonomia, e tem-no feito, uma vez no poder, o partido, se quer manter a sua vitalidade, deve também fazê-lo. Conseguir as duas coisas em simultâneo, sem ressentimentos de nenhuma das partes é uma tarefa simultaneamente difícil e necessária.

P.S. Ter posto fim ao ritual meio patético das saudações ao novo governo foi mais uma boa iniciativa de José Sócrates na forma como se apresenta para governar. Era bom que, agora, também muitos dos rituais formais existentes na administração pública – por ex., as suas excelências a propósito de tudo e nada – fossem também eliminados. Dessacralizando o poder onde ele deve ser dessacralizado

publicado em A Capital

domingo, março 06, 2005

Habituem-se todos

“Este Governo não será formado nem na comunicação social, nem pela comunicação social”. Foi isto mais ou menos que António Vitorino disse, na noite eleitoral, quando questionado sobre a sua eventual participação no governo. Acrescentou ainda um “habituem-se”. Não sei se premeditado ou não, a verdade é que esta frase acabou por ser o primeiro dos sinais políticos do novo governo. É que contrariamente ao expectável e ao habitual, aquilo a que assistimos foi a uma gestão da concepção orgânica do governo, bem como dos nomes dos ministros feita com discrição e reserva.
O facto de ter sido esta a primeira imagem dada pelo novo primeiro-ministro é um sinal muito positivo, até porque como é sabido “não há segundas oportunidades para causar uma primeira impressão”. E o que aqui que se trata não é apenas de uma primeira impressão, mas, sim, de um sinal de ruptura com o passado recente e, espera-se, também de mudança na relação entre política e comunicação social tal como a conhecemos em Portugal.
É sobejamente sabido que Santana Lopes começou a cair, exactamente, pela sua relação claustrofóbica e doentia com os media. O mundo de Santana Lopes circunscrevia-se ao que acontecia na comunicação social. O resto parecia não existir. Foi assim que a mesma comunicação social que o levou ao “colo” durante anos a fio, rapidamente o destruiu. Os primeiros dias do curto, mas intenso e trágico consulado de Santana Lopes foram disso reveladores. Primeiro era um governo mais pequeno, depois a desconcentração dos ministérios, ainda houve tempo para um desfilar de nomes nos jornais e tudo acabou por não se concretizar como prometido pelo então primeiro-ministro indigitado ou pelas suas fontes próximas. O descalabro começou no momento inicial. Desse ponto de vista, o início de José Sócrates não podia ter sido mais contrastante.
Mas o processo de formação deste governo representa também uma ruptura com as práticas dominantes no Guterrismo e com o que é habitual no PS – onde normalmente tudo se sabe na comunicação social ainda antes de acontecer. E se para José Sócrates ser contrastante com Santana Lopes é importante, não é menos verdade que distanciar-se do Guterrismo é um passo necessário para a afirmação do seu projecto político. E a este nível, as questões simbólicas e processuais são fundamentais para a diferenciação do novo governo face aos anteriores executivos socialistas.
No entanto, um dos aspectos mais relevantes da formação do governo gerida com secretismo e reserva tem a ver com o papel da comunicação social. Depois de nos dias iniciais os media terem lançado para o ar uns quantos nomes de ministeriáveis –naquilo que é a sua prática habitual de “lançar barro à parede” –, face à ausência de reacções e ao silêncio que obtiveram como resposta, as secções de política nacional ficaram literalmente vazias. Não totalmente, pois foram surgindo notícias sobre as lutas internas do PSD. Notícias feitas e baseadas em fontes anónimas, próximas e que são simétricas ao que aconteceria se o Governo tivesse sido formado nos moldes tradicionais.
Ao não alimentar a imprensa com as notícias de que preguiçosamente a imprensa vive, José Sócrates colocou uma importante pressão sobre a comunicação social. O que leva a pensar que se esta forma de actuação continuar, a comunicação social ver-se-á obrigada a compensar o vazio de intriga e de boatos com verdadeiras notícias: substantivas e com relevância. Para tal era fundamental, por exemplo, que do noticiário político desaparecessem as fontes anónimas, ou pelo menos as notícias que delas dependem inteiramente.
Por ter assumido uma ruptura com o Santanismo e também com o Guterrismo e por se ter relacionado de modo diferente com comunicação social, começa por bom caminho o novo governo. Mas o início nada é comparado com o que aí vem. E para o que aí vem era fundamental que todos se habituassem a uma nova relação entre política e comunicação social. O processo de formação deste governo é um exemplo de uma prática de que ambas as partes beneficiariam. Governe agora o governo com a mesma discrição.

publicado em A Capital