terça-feira, agosto 22, 2006

Retratos da pobreza

Paradoxalmente, é no Verão, tempo de férias e de entrega a práticas menos comuns ao longo do ano, que mais clara se torna a pobreza do País. Não a pobreza material, que nos torna os mais desiguais da Europa a 15, envergonhando-nos a todos como sociedade, mas a que resultando desta se manifesta de muitas outras formas. Faça-se o exercício de sair do País, estar umas semanas fora e depois regressar, não abruptamente, de avião, mas aproximando-se aos poucos, de automóvel, do Norte da Europa para o Sul. Não há bandeirinhas à janela que nos salvem: continuamos a não resistir à comparação.

O primeiro choque é o da condução nas estradas. Em Portugal vive-se uma autêntica guerra civil, difícil de explicar por critérios racionais. Basta passar a fronteira para as velocidades moderadas serem substituídas pelos ases do volante, em excesso de velocidade permanente e a praticar o desporto nacional de encostar ao carro da frente. O que se passa nas estradas portuguesas não tem paralelo em nenhum País europeu e coloca-nos fora da civilidade, em territórios de pobreza absoluta.

Logo a seguir, o “planeamento” urbano do território. Do interior para o litoral, uma mancha desordenada, provando o empenho nacional em destruir o País: do campeonato de rotundas obtusas no interior norte, acompanhadas pela construção desprovida de identidade e pelo nacional-eucaliptismo, até à construção selvática, violentadora da orla costeira, no litoral. Olhe-se para a forma como se foi construindo em Portugal e não se pode deixar de hesitar entre duas hipóteses: ou incompetência pura de quem tem responsabilidades ou um qualquer eufemismo para corrupção. No fim, fica a dúvida sobre qual das hipóteses é pior. Também aqui somos bem mais pobres do que os nossos parceiros europeus e com a ameaça permanente que paira sobre o litoral alentejano – uma das poucas zonas relativamente imunes ao cataclismo urbanístico –, os sinais são de que queremos insistir no caminho da pobreza.

Depois, o desafio do turismo. Há já bons anos que Portugal, como se costuma dizer, aposta no turismo. Aposta mas é difícil ganhar a aposta quando, salvo excepções, os serviços associados ao turismo são de baixíssima qualidade. Há por exemplo um mito: em Portugal come-se bem. É, em parte, verdade. Mas comer bem implica ter um bom atendimento quando se come fora. Ora, entre nós, os restaurantes alternam entre os de bom preço com qualidade satisfatória e serviço amadorístico e aqueles que têm preços exorbitantes para o que se come e para a forma como somos atendidos. Há ainda a hesitação permanente entre a “opção Quarteira” e a “opção golfe”. No fim, acabamos por não ser competitivos em nenhuma das duas.

Mas, porventura, um dos aspectos mais reveladores da nossa pobreza é o modo como utilizamos os espaços públicos. Nas cidades e vilas do País, o que se vê são ruas desertas. Com um clima menos propício, os europeus vivem fora de casa, nos cafés, ao fim da tarde. Os portugueses – e aqui os jovens são a excepção – vivem fechados em casa, presos na dependência nacional à televisão e ao que ameaça tornar-se o eixo central da nossa identidade cultural: as telenovelas. O declínio da convivialidade e da utilização da rua é um sinal dum país mais pobre e enclausurado pela televisão – em média os portugueses vêem cerca de 3 horas e meia por dia de televisão.

É verdade que nas últimas três décadas e com particular intensidade desde a adesão, Portugal se transformou muito. Nenhum destes exemplos diminui o alcance das transformações sociais ocorridas: somos hoje menos desiguais e com menos pobres, produzimos mais riqueza, temos melhores cuidados de saúde, fizemos crescer exponencialmente a frequência do ensino. Em muitos domínios, designadamente nas práticas de consumo, somos mesmo dos mais “avançados”. Mas, ainda assim, os sinais de modernidade confundem-se com a persistência da pobreza. Ambos são mais visíveis quando nos comparamos com os nossos parceiros europeus. Em meados dos anos sessenta, Alexandre O’Neill, no poema País Relativo, falava dum “País pobrete e nada alegrete,/ baú fechado com um aloquete” (...) e que “engravatado todo o ano (se assoava) na gravata por engano”. Quarenta anos depois, continuamos demasiadamente assim: pobres, fechados e com uma aparência de modernidade que, ao primeiro embate, se esvanece.

Publicado no Diário Económico.

terça-feira, agosto 08, 2006

A política maniatada

Nas últimas semanas, ficámos a saber que um vereador da Câmara de Lisboa tem por regra mais assessores do que qualquer ministro e que o presidente da mesma autarquia bate o primeiro-ministro aos pontos na necessidade de aconselhamento no seu gabinete – certamente sinal da complexidade das funções que exerce. Não foi necessário que passassem muitos dias para ficarmos a “desconhecer” os contornos dum negócio entre a Câmara de Lisboa e, como se usa dizer, um “promotor” imobiliário (entre outras coisas, conhecido por se vangloriar pelo facto de não pagar IRS e por invadir treinos do Benfica) – espantoso, tantos assessores e nenhum cuidou de, pelo menos, manter as aparências. Já no final da semana passada, os vereadores do PS em Oeiras fizeram o que, dum modo ou outro, sempre fizeram: aceitaram integrar o executivo liderado por Isaltino de Morais.

Nenhum destes acontecimentos é particularmente surpreendente. Pelo contrário, são histórias que, ainda que com actores diferentes, tendem a repetir-se, até no modo relativamente pacífico como são recebidas pela opinião pública. No fundo, trata-se apenas do cumprimento de expectativas: as pessoas sabem que o mundo autárquico tende, em muitos casos, a funcionar assim e aceitam esse funcionamento com o cinismo com que olham crescentemente para a política. Mas o que está em causa não é apenas o modo como estes episódios servem para confirmar a imagem degradada da política, é também a forma como a vida político-partidária se encontra maniatada pelas dinâmicas, frequentemente, perversas do poder autárquico.

Se a urbanização da Infante Santo, dado o carácter insatisfatório das explicações dadas, aparenta ser um caso da esfera judicial, já o exército de assessores da Câmara de Lisboa e a participação dos vereadores do PS no executivo de Isaltino de Morais tratam-se de fenómenos comuns ao poder autárquico. Fenómenos que são fruto de mecanismos perversos e que se encontram mais ligados do que aparentam. Aliás, é isso que ajuda a explicar as reacções muito moderadas das oposições. Todos parecem ter “rabos de palha”.

Hoje em dia, as câmaras municipais são, frequentemente, espaços privilegiados de criação de clientelas partidárias, tornando-se instrumentos fundamentais para a reprodução do poder interno aos partidos. Desse ponto de vista seria interessante saber com exactidão quem são os assessores da Câmara de Lisboa. Mas se numa autarquia de grande dimensão a questão já é complicada, ainda mais se torna em concelhos pequenos, que por si só já estão longe de serem espaços abertos e plurais. Aí, todo o poder político gira em torno do poder autárquico (ou da sua variante, as empresas municipais) e as lógicas de fechamento tornam-se ainda mais poderosas.

A questão é que não é só quem ganha as eleições autárquicas que beneficia da distribuição de poder através das autarquias. Quem perde também o faz frequentemente. O que nos leva até Oeiras. A lei eleitoral autárquica em Portugal permite, em caso de maioria relativa, a integração da oposição no executivo. Isto é, há membros do executivo que nele participam com funções de gestão, à margem do programa maioritário sufragado. Por absurdo, seria o mesmo que termos os partidos da oposição a participar no Conselho de Ministros. Trata-se, no fundo, dum sistema que serve para acomodar as vozes “críticas”, com precarização das regras da transparência e da fiscalização, ao mesmo tempo que cria espaços para que todos os partidos possam “alimentar” clientelas. As mesmas que depois se encarregarão de reproduzir, de forma circular, o poder interno.

Ora se pensarmos que o poder nos partidos é, em larga medida, a soma destes poderes locais, temos um cenário nada optimista. Daí a importância de alterar a lei eleitoral autárquica para que os executivos passem a ser monocolores, formados pelo partido mais votado, reforçando os poderes de fiscalização da sua acção pelas assembleias municipais. Em nome da transparência.

Podemos entreter-nos a afirmar que o poder local foi uma das principais conquistas de Abril, mas se nada for feito para contrariar as lógicas clientelares e os conluios que frequentemente lhe estão associados, o mesmo poder autárquico encarregar-se-á de minar ainda mais a credibilidade da democracia política. Pelo caminho perdemos todos e perdem também as centenas de excelentes autarcas que continuam a existir.

publicado no Diário Económico.