segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Hoje a Grécia, amanhã Portugal

“Depois de tomarmos decisões substantivas em relação à Grécia”. A frase do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schauble, nos longos 53 segundos que durou a conversa com Vítor Gaspar, passou despercebida, mas é o mais enigmático e preocupante momento do diálogo segredado. O que fica sugerido é que estamos a assistir a uma alteração profunda na posição em relação à Grécia. Se até há pouco tempo, a saída da Grécia do euro era “impensável”, entretanto passou a caber aos gregos decidir se queriam ou não permanecer na união monetária.
A actual posição alemã é bem mais coerente com a narrativa que se vislumbra na gestão da crise tal como defendida por Schauble. Não faz sentido continuar a emprestar dinheiro à Grécia, na medida em que o governo grego não revela particular empenho na aplicação do plano de resgate desenhado pela troika. A ideia é apelativa: o risco grego deve-se a uma atitude errada do governo e nada tem a ver com um programa incumprível, assente em exigências que, em lugar de responderem ao problema que procuram enfrentar (o endividamento), apenas o agravam, fazendo colapsar a economia. Os gregos têm a atitude errada, dizem-nos os alemães, na mesma medida que Portugal é, para o nosso primeiro-ministro, um país com o vício da preguiça.
Se nada mais houvesse, esta moralização da crise da zona euro tem um efeito: oferece-nos com facilidade bodes expiatórios – políticos irresponsáveis que se deixaram capturar por reivindicações de interesses e que foram arrastados para o despesismo – enquanto oculta o lado mais complexo da crise – um arranjo institucional da zona euro que criou incentivos perversos, ao mesmo tempo que inviabilizou o crescimento económico de alguns estados membros. O problema é que com este discurso, popular no curto prazo, os políticos estão apenas a comprar tempo (aliás, muito pouco tempo) até serem varridos – com a mesma intensidade dos seus antecessores nos governos europeus.
A última versão da nacionalização da crise da zona euro aponta uma nova saída. Perante a incapacidade do governo grego em estrangular a sua própria economia, sociedade e país, a única solução que resta é avançar para o que até há semanas era impensável: isolar a Grécia, deixando-a caminhar para a bancarrota. Para os mesmos optimistas que acreditam no pensamento mágico, de algum modo seria possível traçar uma fronteira entre a Grécia e os restantes países, à cabeça o próximo na linha de abate – Portugal. No fundo, a Grécia funcionaria como o Lehman Brothers e Portugal seria a AIG. Como sabemos, mesmo resgatada a AIG, não foi possível estancar o efeito de contágio do Lehman Brothers. Agora imaginemos o que será um default de um país dentro de uma zona monetária única. Um assustador salto no vazio que nada terá de ordenado.
Bem sei que falar em solidariedade europeia é pedir demasiado aos políticos míopes que nos lideram, mas, ao menos, era de esperar que se movessem pelo interesse próprio. A Grécia de hoje seremos nós amanhã. Depois, é uma questão de ordenar os restantes países europeus.
publicado no Expresso de 18 de Fevereiro.

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

A culpa é da preguiça

Pieguices à parte, o primeiro-ministro achou por bem esta semana elaborar sobre os males do país e não lhe ocorreu melhor do que remeter as causas do nosso atraso para um problema genérico de indolência, que se manifesta numa propensão para a preguiça.
Revelando-se um genuíno anti-lafargueano, Passos Coelho ilustrou o “caso português” com um exemplo: “recordam-se o caricato que foi na altura, a troika estar em Lisboa a trabalhar, para saber como deviam fechar o acordo de ajuda a Portugal, estando o país fechado para férias devido a umas pontes”. As “pontes”, convém recordar, eram dois feriados – o 25 de Abril e a Páscoa (uma curiosa paridade entre, para utilizar a surreal formulação do Governo, um feriado civil e um religioso). Certamente entusiasmado pelo seu raciocínio, não escapou a Passos Coelho um corolário lógico – “a troika trabalhava, o País aproveitava as pontes” –, para logo revelar uma profunda ambição política, “transformar velhos comportamentos preguiçosos” (sic).
Reparem que não se trata de uma nova versão do discurso político anti-lamuriento, já de si um exemplo de infantilização da linguagem política a que os nossos líderes raramente escapam. Estamos perante uma leitura particular da crise e das suas manifestações em Portugal, através da qual o primeiro-ministro se coloca no ambiente de uma conversa de café.
Há, antes de mais, um problema de autoridade. Num momento de desmoronamento económico e social, são particularmente necessários líderes políticos que tenham densidade e funcionem como referências também morais, capazes de liderar pelo exemplo. O que nos é oferecido é o contrário. No que parece ter-se transformado num requisito para liderar partidos com ambições governativas, estamos rodeados de políticos que não se caracterizam por terem aplicado a si próprios critérios de exigência nos seus percursos académicos e profissionais. Na altura certa, em lugar do estudo, preferiram investir o seu tempo em eleições em juventudes partidárias. É absolutamente legítimo, mas quem identifica na preguiça um traço estrutural do nosso atraso, talvez devesse ter um cuidado acrescido com os seus telhados de vidro – se nada mais para não ser vítima do efeito de feedback do seu moralismo.
Mas, acima de tudo, o argumento da preguiça revela uma interpretação desadequada da natureza da crise. No fundo, estamos perante uma interiorização depurada da crise como “culpa moral”, que faz certamente rejubilar a Srª Merkel. Para Passos Coelho, pelos vistos, os problemas do euro são uma espécie de fábula: certos povos têm uma propensão incontrolável para o ócio, pelo que têm de mudar de atitude, expiando o mal e abandonando “velhas tradições” (começando pelo paradigma de hedonismo que dá pelo nome de Carnaval). É verdade que há muito literatura que procura explicar a diversidade do capitalismo e as suas diferentes trajectórias, mas desconheço tentativas de explicar atrasos económicos com base em feriados e pontes. Devo estar a ficar preguiçoso.

publicado no Expresso de 11 de Fevereiro

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

Abaixo de PIGS

Há títulos que falam por si e o das conclusões da última cimeira europeia é exemplar: “rumo a uma consolidação favorável ao crescimento e a um crescimento favorável ao emprego”. A frase não só não quer dizer nada, como encerra em si uma contradição de natureza esquizofrénica, reveladora do estado em que nos encontramos. George Orwell, estou certo, não hesitaria em classificá-la como um exercício acabado de novilíngua: uma soma de palavras, às quais se remove o sentido e que tem como finalidade restringir as possibilidades de raciocínio.
O que move a Europa continua a ser o mito da ‘austeridade expansionista’. No que se está a transformar numa tragédia em vários actos, nas cimeiras europeias insiste-se que a resposta à crise passa por provocar uma recessão, contraindo, em simultâneo, todas as economias, aguardando que daí resulte crescimento e recuperação. Acontece que não há evidência empírica que demonstre que a ideia funciona. Como aliás chamava a atenção esta semana Bradford DeLong, professor de economia em Berkeley, se a austeridade expansionista está a falhar na Grã-Bretanha, uma economia muito aberta e com mecanismos de flexibilidade que não existem na zona euro, é impossível que funcione em economias menos abertas e presas a uma moeda única.
Até agora, os resultados são os conhecidos: os fundamentos da economia todos de rasto, desemprego a disparar, em particular o dos jovens nos países da periferia, e sistemáticas revisões do PIB em baixa. À recessão somaremos mais recessão, que por sua vez exigirá maior austeridade, numa espiral recessiva sem fim à vista.
Neste contexto, a rejeição da proposta alemã para nomear um governador orçamental para a Grécia, que aliás faz parte das conclusões do último congresso da CDU, foi vista como uma vitória. Contudo, o mais certo é a ideia regressar e em força. Convenhamos que faz sentido. Depois do acrónimo PIGS e da crise como culpa moral, a requerer uma resposta assente no empobrecimento, o corolário lógico é colocar os países da periferia sob tutela política, tratando-os, de facto, abaixo de PIGS.
A proposta é coerente com a resposta à crise que tem sido dada pela Europa mas, também, com a postura dos governos das periferias. Como sublinhava com clareza o economista grego Yanis Varoufakis, a partir do momento que os governos aceitam empréstimos assentes em pacotes de austeridade que aprofundam a insolvência dos seus próprios países, e que automaticamente exigem mais empréstimos, chegará o momento em que os responsáveis políticos internacionais quererão ter poderes executivos. É apenas uma questão de tempo.
Contudo, se o momento chegar, seremos todos, da Alemanha à periferia, confrontados com a inviabilidade política e económica do caminho europeu. Até lá, valha-nos ao menos o conforto das palavras do nosso primeiro-ministro: “vamos cumprir o programa, custe o que custar”. Custe o que custar.

publicado no Expresso de 4 de Fevereiro

Comentário ao diálogo Schauble/Gaspar e à sondagem Fevereiro

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

Uma lenta agonia

Para além dos dramáticos efeitos económicos e sociais, a crise só pode acelerar a degradação da política. Os sintomas já andam por aí a pairar, mas tornar-se-ão rapidamente muito evidentes. Se aceitarmos que as instituições representativas são o reflexo de uma determinada estrutura social, é natural que, quando esta se desagrega, o espelho também se parta. O problema é que a crise, um dia, será ultrapassada, mas dificilmente será possível recuperar a credibilidade entretanto perdida das instituições da democracia como as conhecemos.
O que se vai passando no movimento sindical é, a este propósito, uma realidade que vive frequentemente submersa, mas que, de quando em quando, vem à tona. Foi o que aconteceu nos últimos dias, expondo os estrangulamentos das centrais sindicais portuguesas. Ainda que, por razões distintas, não será fácil o caminho da UGT e da CGTP.
As dificuldades da UGT são bem mais evidentes. Não por acaso, desde que assinou o acordo, João Proença tem-se desdobrado em declarações justificativas. Mas é evidente que, até por força da existência do memorando de entendimento – subscrito, convém não esquecer, por PS e PSD –, à UGT não restava outra opção se não chegar a um entendimento. A propensão negocial está inscrita no seu código genético e é o que dá sentido à existência da central – não sendo um parceiro negocial, a UGT condena-se à irrelevância. O problema é que a UGT não pode não negociar mas, hoje, negociar significa aceitar como termos do debate condições que têm inscritas, em si, o declínio do próprio movimento sindical. É por isso que o mais preocupante do acordo não é flexibilização da legislação laboral, é a individualização das relações de trabalho que está implícita em muitas das soluções.
A capitulação negocial da UGT é aparentemente uma benesse para a CGTP: por um lado, fica com o monopólio da contestação social organizada; por outro, deixa o campo aberto à afirmação de um novo secretário-geral, com a difícil tarefa de substituir um líder carismático. Estamos perante uma ilusão. O que assistiremos, muito provavelmente, é um crescente entrincheiramento da CGTP e um reforço da tutela política do Partido Comunista. Apesar da convergência estratégica, Carvalho da Silva garantia alguma autonomia táctica da CGTP face ao PC e promovia um mínimo de pluralismo interno. Com Arménio Carlos, a CGTP pode ter a ilusão de que representa o descontentamento social, mas ficará ainda mais presa ao PC, condenando-se a um lento definhamento, assente numa retórica sindical que não tem aderência ao mercado de trabalho de hoje.
Ainda assim, há um espaço de manobra possível para o movimento sindical inverter a tendência de declínio: romper com a agenda dominante, centrada em temas que nem sequer são vistos como os mais relevantes pelos trabalhadores portugueses, e libertar-se das tutelas partidárias, que asfixiam a sua capacidade de representação. Num cenário de degradação económica, não se vê como é que será possível iniciar este caminho.

publicado no Expresso de 28 de Janeiro

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Comentário SIC-N