A culpa é da preguiça
Pieguices à parte, o primeiro-ministro achou por bem esta semana elaborar sobre os males do país e não lhe ocorreu melhor do que remeter as causas do nosso atraso para um problema genérico de indolência, que se manifesta numa propensão para a preguiça.
Revelando-se um genuíno anti-lafargueano, Passos Coelho ilustrou o “caso português” com um exemplo: “recordam-se o caricato que foi na altura, a troika estar em Lisboa a trabalhar, para saber como deviam fechar o acordo de ajuda a Portugal, estando o país fechado para férias devido a umas pontes”. As “pontes”, convém recordar, eram dois feriados – o 25 de Abril e a Páscoa (uma curiosa paridade entre, para utilizar a surreal formulação do Governo, um feriado civil e um religioso). Certamente entusiasmado pelo seu raciocínio, não escapou a Passos Coelho um corolário lógico – “a troika trabalhava, o País aproveitava as pontes” –, para logo revelar uma profunda ambição política, “transformar velhos comportamentos preguiçosos” (sic).
Reparem que não se trata de uma nova versão do discurso político anti-lamuriento, já de si um exemplo de infantilização da linguagem política a que os nossos líderes raramente escapam. Estamos perante uma leitura particular da crise e das suas manifestações em Portugal, através da qual o primeiro-ministro se coloca no ambiente de uma conversa de café.
Há, antes de mais, um problema de autoridade. Num momento de desmoronamento económico e social, são particularmente necessários líderes políticos que tenham densidade e funcionem como referências também morais, capazes de liderar pelo exemplo. O que nos é oferecido é o contrário. No que parece ter-se transformado num requisito para liderar partidos com ambições governativas, estamos rodeados de políticos que não se caracterizam por terem aplicado a si próprios critérios de exigência nos seus percursos académicos e profissionais. Na altura certa, em lugar do estudo, preferiram investir o seu tempo em eleições em juventudes partidárias. É absolutamente legítimo, mas quem identifica na preguiça um traço estrutural do nosso atraso, talvez devesse ter um cuidado acrescido com os seus telhados de vidro – se nada mais para não ser vítima do efeito de feedback do seu moralismo.
Mas, acima de tudo, o argumento da preguiça revela uma interpretação desadequada da natureza da crise. No fundo, estamos perante uma interiorização depurada da crise como “culpa moral”, que faz certamente rejubilar a Srª Merkel. Para Passos Coelho, pelos vistos, os problemas do euro são uma espécie de fábula: certos povos têm uma propensão incontrolável para o ócio, pelo que têm de mudar de atitude, expiando o mal e abandonando “velhas tradições” (começando pelo paradigma de hedonismo que dá pelo nome de Carnaval). É verdade que há muito literatura que procura explicar a diversidade do capitalismo e as suas diferentes trajectórias, mas desconheço tentativas de explicar atrasos económicos com base em feriados e pontes. Devo estar a ficar preguiçoso.
publicado no Expresso de 11 de Fevereiro
Revelando-se um genuíno anti-lafargueano, Passos Coelho ilustrou o “caso português” com um exemplo: “recordam-se o caricato que foi na altura, a troika estar em Lisboa a trabalhar, para saber como deviam fechar o acordo de ajuda a Portugal, estando o país fechado para férias devido a umas pontes”. As “pontes”, convém recordar, eram dois feriados – o 25 de Abril e a Páscoa (uma curiosa paridade entre, para utilizar a surreal formulação do Governo, um feriado civil e um religioso). Certamente entusiasmado pelo seu raciocínio, não escapou a Passos Coelho um corolário lógico – “a troika trabalhava, o País aproveitava as pontes” –, para logo revelar uma profunda ambição política, “transformar velhos comportamentos preguiçosos” (sic).
Reparem que não se trata de uma nova versão do discurso político anti-lamuriento, já de si um exemplo de infantilização da linguagem política a que os nossos líderes raramente escapam. Estamos perante uma leitura particular da crise e das suas manifestações em Portugal, através da qual o primeiro-ministro se coloca no ambiente de uma conversa de café.
Há, antes de mais, um problema de autoridade. Num momento de desmoronamento económico e social, são particularmente necessários líderes políticos que tenham densidade e funcionem como referências também morais, capazes de liderar pelo exemplo. O que nos é oferecido é o contrário. No que parece ter-se transformado num requisito para liderar partidos com ambições governativas, estamos rodeados de políticos que não se caracterizam por terem aplicado a si próprios critérios de exigência nos seus percursos académicos e profissionais. Na altura certa, em lugar do estudo, preferiram investir o seu tempo em eleições em juventudes partidárias. É absolutamente legítimo, mas quem identifica na preguiça um traço estrutural do nosso atraso, talvez devesse ter um cuidado acrescido com os seus telhados de vidro – se nada mais para não ser vítima do efeito de feedback do seu moralismo.
Mas, acima de tudo, o argumento da preguiça revela uma interpretação desadequada da natureza da crise. No fundo, estamos perante uma interiorização depurada da crise como “culpa moral”, que faz certamente rejubilar a Srª Merkel. Para Passos Coelho, pelos vistos, os problemas do euro são uma espécie de fábula: certos povos têm uma propensão incontrolável para o ócio, pelo que têm de mudar de atitude, expiando o mal e abandonando “velhas tradições” (começando pelo paradigma de hedonismo que dá pelo nome de Carnaval). É verdade que há muito literatura que procura explicar a diversidade do capitalismo e as suas diferentes trajectórias, mas desconheço tentativas de explicar atrasos económicos com base em feriados e pontes. Devo estar a ficar preguiçoso.
publicado no Expresso de 11 de Fevereiro
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