Empobrecimento e três rupturas
Na história da democracia portuguesa não se encontra outro ano como o próximo. Pela primeira vez, o empobrecimento será uma realidade incontornável, vista pelo poder político como tendo um carácter moralmente regenerador. Com uma diferença relevante: estaremos perante um retrocesso, que ocorre depois de décadas de crescimento e de expectativas sociais crescentes. Ainda assim, mesmo 2012 deve ser visto como um ano de transição. A verdadeira incógnita é que país existirá nos anos seguintes. Não é fácil antecipar. Em todo o caso, será garantidamente muito diferente daquele que conhecemos nas últimas décadas.
Em importante medida, o que ocorrerá nos próximos anos é consequência da escassa margem de manobra que resta a um país sob vigilância externa e que se financia através de um plano de resgate, negociado em condições políticas muito frágeis, no quadro de uma crise sistémica na zona euro. Em todo o caso, estes constrangimentos não só não inviabilizam totalmente os caminhos alternativos, como não obrigam a que se opte pela estratégia de enorme risco que Portugal escolheu.
Iremos assistir a processos de desestruturação social e de desmantelamento do Estado sem que se vislumbre um esforço de mobilização em torno de um modelo alternativo. Além do mais, o caminho traçado não assenta em pequenos passos graduais, mas num experimentalismo político contaminado por grandes doses de voluntarismo ideológico – que, aliás, vê a crise como oportunidade para operar transformações estruturais. Ao empobrecimento, que se manifestará no recuo da riqueza produzida em Portugal, estará associado um conjunto de rupturas que pode ser desagregado, para efeitos analíticos, em três tipos: económica; social e política.
1. Ruptura económica. Nas últimas décadas, e com um impulso decisivo após a União Económica e Monetária, as vantagens comparativas da economia portuguesa passaram a depender menos da competição pelos baixos salários e mais da capacidade das empresas em alargar a produção a novos sectores, do investimento na diferenciação do produto em sectores tradicionais e da procura de novos mercados. Este exercício dependeu de um investimento das políticas públicas na qualificação dos activos e numa redução dos custos de contexto, apostando na simplificação administrativa e na adaptabilidade das relações laborais. Não fora a degradação da envolvente externa, este percurso vinha revelando algumas virtualidades (visíveis, por exemplo, na evolução positiva das exportações). Contudo, não estávamos perante uma opção imaculada. Pelo contrário, tornou-se evidente a necessidade de escolher uma trajectória em que a evolução dos custos do trabalho fosse mais sensível às necessidades dos sectores exportadores e urgia ir mais longe na alteração dos factores que podem traduzir-se em ganhos efectivos de produtividade. A opção pelo empobrecimento como estratégia económica representa uma ruptura profunda com o caminho trilhado: regressamos aos baixos salários como factor competitivo – o que coloca uma pressão socialmente incomportável e implica saber até onde devem descer os rendimentos do trabalho para nos tornarmos competitivos.
2. Ruptura social. O mapa social do país continuará a alterar-se de modo dramático. Arrastado pelo decréscimo do PIB, o desemprego continuará a crescer, ao mesmo tempo que se mantém congelada a criação de emprego, dificultando a entrada no mercado de trabalho de muitos jovens – a geração mais qualificada que o país teve. O empobrecimento e a degradação do mercado de trabalho corresponderão a uma deterioração da distribuição dos rendimentos, intensificada por uma erosão da protecção social. A consequência será um reflorescimento das formas tradicionais de pobreza, combinado com novos mecanismos de exclusão – desde logo porque a estrutura de despesas das famílias é, hoje, mais rígida do que no passado. Este processo encontrará na diminuição das respostas dos serviços públicos na saúde uma alavanca decisiva e terá como pano de fundo um aprofundar de clivagens. A iniquidade da austeridade será um terreno fértil para a potenciação de ressentimentos sociais, que poderão bem fazer evoluir a conflitualidade social de um registo difuso para expressões bem mais significativas.
3. Ruptura política. As democracias liberais, tal como as conhecemos desde o pós-guerra, assentaram numa ligação próxima entre direitos civis e políticos, expansão das funções do Estado e promoção de direitos sociais com melhoria das condições materiais. A legitimidade política dos sistemas assentou, no essencial, no sucesso desta equação. Também o código genético da nossa democracia radicou no desenvolvimento do Estado Providência e na melhoria das condições de vida dos portugueses. Dificilmente o processo de pauperização deixará de colocar pressões intensas sobre a legitimidade política do regime. Tendo em conta que está em curso uma alteração estrutural no sistema de representação de interesses, patente na secundarização do movimento sindical e numa marginalização dos instrumentos de concertação, assistiremos a uma reconstrução do mapa das relações de poder. O facto de esta transformação ocorrer num quadro de decomposição dos mecanismos tradicionais de soberania só tenderá a tornar mais frágeis e dependentes face ao exterior as novas formas de articulação do poder político doméstico.
publicado no anuário do Expresso/Economist
Em importante medida, o que ocorrerá nos próximos anos é consequência da escassa margem de manobra que resta a um país sob vigilância externa e que se financia através de um plano de resgate, negociado em condições políticas muito frágeis, no quadro de uma crise sistémica na zona euro. Em todo o caso, estes constrangimentos não só não inviabilizam totalmente os caminhos alternativos, como não obrigam a que se opte pela estratégia de enorme risco que Portugal escolheu.
Iremos assistir a processos de desestruturação social e de desmantelamento do Estado sem que se vislumbre um esforço de mobilização em torno de um modelo alternativo. Além do mais, o caminho traçado não assenta em pequenos passos graduais, mas num experimentalismo político contaminado por grandes doses de voluntarismo ideológico – que, aliás, vê a crise como oportunidade para operar transformações estruturais. Ao empobrecimento, que se manifestará no recuo da riqueza produzida em Portugal, estará associado um conjunto de rupturas que pode ser desagregado, para efeitos analíticos, em três tipos: económica; social e política.
1. Ruptura económica. Nas últimas décadas, e com um impulso decisivo após a União Económica e Monetária, as vantagens comparativas da economia portuguesa passaram a depender menos da competição pelos baixos salários e mais da capacidade das empresas em alargar a produção a novos sectores, do investimento na diferenciação do produto em sectores tradicionais e da procura de novos mercados. Este exercício dependeu de um investimento das políticas públicas na qualificação dos activos e numa redução dos custos de contexto, apostando na simplificação administrativa e na adaptabilidade das relações laborais. Não fora a degradação da envolvente externa, este percurso vinha revelando algumas virtualidades (visíveis, por exemplo, na evolução positiva das exportações). Contudo, não estávamos perante uma opção imaculada. Pelo contrário, tornou-se evidente a necessidade de escolher uma trajectória em que a evolução dos custos do trabalho fosse mais sensível às necessidades dos sectores exportadores e urgia ir mais longe na alteração dos factores que podem traduzir-se em ganhos efectivos de produtividade. A opção pelo empobrecimento como estratégia económica representa uma ruptura profunda com o caminho trilhado: regressamos aos baixos salários como factor competitivo – o que coloca uma pressão socialmente incomportável e implica saber até onde devem descer os rendimentos do trabalho para nos tornarmos competitivos.
2. Ruptura social. O mapa social do país continuará a alterar-se de modo dramático. Arrastado pelo decréscimo do PIB, o desemprego continuará a crescer, ao mesmo tempo que se mantém congelada a criação de emprego, dificultando a entrada no mercado de trabalho de muitos jovens – a geração mais qualificada que o país teve. O empobrecimento e a degradação do mercado de trabalho corresponderão a uma deterioração da distribuição dos rendimentos, intensificada por uma erosão da protecção social. A consequência será um reflorescimento das formas tradicionais de pobreza, combinado com novos mecanismos de exclusão – desde logo porque a estrutura de despesas das famílias é, hoje, mais rígida do que no passado. Este processo encontrará na diminuição das respostas dos serviços públicos na saúde uma alavanca decisiva e terá como pano de fundo um aprofundar de clivagens. A iniquidade da austeridade será um terreno fértil para a potenciação de ressentimentos sociais, que poderão bem fazer evoluir a conflitualidade social de um registo difuso para expressões bem mais significativas.
3. Ruptura política. As democracias liberais, tal como as conhecemos desde o pós-guerra, assentaram numa ligação próxima entre direitos civis e políticos, expansão das funções do Estado e promoção de direitos sociais com melhoria das condições materiais. A legitimidade política dos sistemas assentou, no essencial, no sucesso desta equação. Também o código genético da nossa democracia radicou no desenvolvimento do Estado Providência e na melhoria das condições de vida dos portugueses. Dificilmente o processo de pauperização deixará de colocar pressões intensas sobre a legitimidade política do regime. Tendo em conta que está em curso uma alteração estrutural no sistema de representação de interesses, patente na secundarização do movimento sindical e numa marginalização dos instrumentos de concertação, assistiremos a uma reconstrução do mapa das relações de poder. O facto de esta transformação ocorrer num quadro de decomposição dos mecanismos tradicionais de soberania só tenderá a tornar mais frágeis e dependentes face ao exterior as novas formas de articulação do poder político doméstico.
publicado no anuário do Expresso/Economist
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